1961 – A audácia de Brizola e a mobilização popular derrotaram o Golpe

De um lado as forças entreguistas, antidemocráticas e conservadoras; de outro as forças nacionalistas, defensoras da ampliação da democracia e de reformas estruturais para o País. Esse foi o pano de fundo da luta da Legalidade

Fotomontagem feita com as fotos de: Arquivo Agência O Globo

Ignorado pela historiografia oficial, o Movimento da Legalidade – que neste mês de agosto comemora 60 anos – impediu de armas na mão o intento de golpe militar de 1961, constituindo-se em uma das mais importantes lutas cívicas do Rio Grande do Sul e do Brasil.

Outro golpe já fora abortado, em 24 de agosto de 1954, pelo gesto extremo do suicídio de Getúlio Vargas, o qual motivou grandes manifestações de massas, que comoveram a nação e bloquearam a ação dos golpistas.

Da mesma forma, o contragolpe preventivo do Marechal Lott em 1955 – afastando o Presidente interino Carlos Luz e o substituindo pelo Presidente do Senado Nereu Ramos – foi a única maneira de assegurar a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitscheck, ameaçada pelas articulações golpistas de Café Filho e Carlos Luz, Presidente da Câmara dos Deputados.

Em todos esses episódios – assim como no golpe militar de 1964, uma constante – de um lado as forças entreguistas, antidemocráticas e conservadoras; de outro as forças nacionalistas, defensoras da ampliação da democracia e de reformas estruturais para o País. Esse foi o pano de fundo da luta da Legalidade.

A tentativa frustrada de auto-golpe

Quando, em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, Jânio Quadros comunicou aos ministros militares a sua renúncia e entregou a sua carta-renúncia ao presidente do Senado Auro de Moura Andrade, na sexta-feira à tarde, não foi nenhum gesto tresloucado do então presidente.

Ao contrário – como ele mesmo confessou, em 1967, no livro História do Povo Brasileiro – foi uma tentativa premeditada de auto-golpe, na expectativa de retornar “nos braços do povo” com poderes absolutos e respaldo militar:

Ex-Presidente Jânio Quadros I Foto: Reprodução/Rádio Senado

“Nessa altura Jânio Quadros não viu como malograr nos seus objetivos, ainda que com sacrifício próprio. Posto em movimento o esquema, compenetrados e ajustados os ministros militares quanto a esse objetivo essencial, a sua consecução não poderia falhar. (…) Seu raciocínio foi o seguinte: Primeiro operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo depois a um outro cidadão – escolhido por qualquer via, presidir o país sob o novo esquema viável e oportuno. (…) O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares. (…) João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentar, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado.”(1)

De fato, o momento não poderia ter sido melhor escolhido: João Goulart se encontrava na China Socialista e era uma sexta-feira – quando o Congresso se encontrava normalmente vazio – formando o panorama ideal para o desenlace planejado.

Só que a artimanha foi mal calculada e “o tiro saiu pela culatra”. Após ter sido sondado pelo Ministro da Justiça, Pedroso Horta, sobre o auto-golpe planejado por Jânio Quadros – Carlos Lacerda, Governador da Guanabara e aliado de Jânio, decidiu denunciá-lo na noite de 24 de agosto:

“Um golpe branco pelo qual, colocando em recesso o Congresso Nacional, abrir-se-ia ao Executivo campo a uma série de reformas, posteriormente submetidas a referendo Nacional. ‘Na hipótese de faltar ao plano o apoio de personalidades significativas da vida pública’, arrematava a denúncia, ‘o Presidente se disporia a guinar para a esquerda, procurando na mobilização do Povo o apoio recusado pelos políticos’.” (2)

Em conseqüência dessa denúncia, os congressistas estavam em peso, em Brasília, na sexta-feira, revezando-se na tribuna para debater os acontecimentos. Após tomar conhecimento da carta-renúncia de Jânio Quadros, entregue só às 15h – onde esse afirmava que “forças terríveis se levantam contra mim” – o deputado Almino Affonso, líder do PTB, denunciou:

Ex-Deputado Almino Afonso I Foto: Arquivo Nacional

“Nada, Sr. Presidente, neste instante permite, sob pena de nos considerarem ingênuos, de aceitar que o documento corresponde à verdade dos fatos. (…) O Partido Trabalhista Brasileiro, neste instante, fiel às suas tradições democráticas, não pode aceitar esta renúncia senão como um golpe em que o presidente da República pretende retornar ao governo à maneira de um ditador, disfarçado ou não, seja sob que forma for.” (3)

O presidente do Senado, Moura Andrade, convocou em seguida uma sessão extraordinária do Congresso, a qual foi aberta às 16h45 com a presença de 45 senadores e 230 deputados. Depois de ler a carta-renúncia de Jânio Quadros, Moura Andrade afirmou: “a renúncia é um ato de vontade do qual deve tomar conhecimento o Congresso Nacional. Nos termos da Constituição, caberá ao presidente da Câmara assumir a presidência da República.” (4) Em seguida, deu posse ao Deputado Ranieri Mazzilli, como presidente interino, tendo em vista a ausência do Vice-Presidente João Goulart, em viagem oficial à China.

Em depoimento dado ao seu neto, em 25 de agosto de 1991, Jânio confirmou o seu plano de auto-golpe e revelou sua surpresa e decepção com o desfecho:

“A minha renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca imaginei que ela teria sido de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à Presidência em 1960 e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo (…). O maior erro que já cometi. (…) Tudo foi muito bem planejado e organizado. Mandei o João Goulart em missão oficial à China, no lugar mais longe possível, assim ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta de renúncia no dia 19 de agosto e entreguei para o Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. (…) Pensei que os militares, os governadores e principalmente o povo nunca aceitariam a renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. (…) Charles de Gaulle renunciou na França e o povo foi às ruas exigir a sua volta. A mesma coisa ocorreu com Fidel Castro em Cuba. (…) Renunciei no Dia do Soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir o apoio deles. Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26, um pouco antes de embarcar no Uruguay Sur. Achei que eu voltaria de Santos para Brasília na glória. (…) Deu tudo errado. (…) O Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, nunca deveria ter contado para o Carlos Lacerda da minha intenção de renunciar. (…) Fiquei surpreendido quando o Congresso se reuniu em sessão extraordinária, aceitou a minha renúncia e pôs o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da república, até o Jango retornar da viagem.” (5)

Ex-Presidente Jânio Quadros I Foto: Reprodução

Tão logo Jânio se tornou uma “carta fora do baralho”, os três ministros militares – Odílio Denyz, Sylvio Heck e Grun Moss – comunicaram a Mazzili que não aceitariam que João Goulart retornasse ao país e assumisse a presidência da República. Obviamente, esse veto militar atendia aos desejos dos Estados Unidos, que temiam que o Brasil adotasse uma orientação simpática a Cuba ou que viesse a ter uma aproximação com a China ou a União Soviética.

Brizola se levanta em defesa da Constituição

Assim que a notícia da renúncia chegou ao conhecimento de Leonel Brizola, ele tratou de comunicar-se com Jânio Quadros, colocando o Governo do Rio Grande do Sul à sua disposição. Esclarecido que ele não fora compelido a renunciar, Leonel Brizola passou a defender o cumprimento da Constituição e a posse de João Goulart. Nesse contexto, no domingo 27 de agosto, Brizola fez um pronunciamento que teve repercussão nacional:

“O Governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave da vida do País . Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da Legalidade Constitucional. Não pactuamos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra a liberdade pública. Se a atual Constituição não satisfaz em muitos de seus aspectos, desejamos o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo. (…) Por motivo dos acontecimentos, como se impunha, o Governo deste Estado dirigiu-se à S.Excia. o Sr.Vice-Presidente da República, Dr. João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que deverá ocorrer nas próximas horas. (…) O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à Pátria comum e de defesa dos direitos humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular–confiemos Rio-Grandenses e os nossos irmãos de todo o Brasil–não desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever.”(6)

Diante da atitude golpista dos ministros militares, Brizola entrou em contato com o Comandante do III Exército – General Machado Lopes – para saber do seu posicionamento. Recebeu a resposta de que “como soldado ficarei com o Exército”. Esse diálogo deixou claro que Machado Lopes se subordinava à postura golpista dos ministros militares. Brizola ainda tentou o apoio de outros comandantes de Exército, no resto do país – como o gaúcho Costa e Silva –, mas em vão.

Posteriormente, em entrevista ao jornalista Adaucto Vasconcellos, Brizola relataria: “Consegui localizar o General Osvino Ferreira Alves, que se encontrava sem comando de tropa, no Rio, e sem condições de se expressar por telefone. Com muita dificuldade consegui um contato telefônico com o general Costa e Silva, que comandava o IV Exército, no Recife. Nosso diálogo foi duro e violento. Respondi com a mesma moeda suas grosserias e agressividades. Localizei no Rio o general Kruel, também sem comando, e convidei-o para vir, de qualquer forma, para o Rio Grande do Sul. Dois ou três dias depois estava chegando e permaneceu incógnito no Palácio Piratini. Era nossa intenção atribuir-lhe o comando militar da resistência, caso o general Machado Lopes não se decidisse a apoiar a legalidade.”(7)

Ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola I Foto: Reprodução

Apesar do quadro adverso, Brizola não se intimidou. Colocou a Brigada Militar e a Polícia Civil em rigorosa prontidão, fez com que ocupassem os pontos chaves da cidade e organizou a defesa do Palácio Piratini. Concentrou a maioria das tropas da Brigada Militar em Porto Alegre e requisitou todos os depósitos de combustível e de pneus existentes.

A Assembleia Legislativa – presidida pelo deputado Hélio Carlomagno (do PSD) –, declarou-se em sessão permanente. Lideranças políticas, sindicais e estudantis reuniram-se na Câmara Municipal de Porto Alegre e decidiram realizar uma manifestação de rua. Saíram da Prefeitura e subiram a Borges de Medeiros, gritando palavras de ordem contra o golpe. Ao chegarem ao Piratini já eram cerca de cinco mil, exigindo o respeito à “Legalidade” e a posse de João Goulart. Falando da sacada do Palácio, Brizola aderiu a essa palavra de ordem. Estava começando o “Movimento pela Legalidade”.

A mobilização popular e a formação dos comitês de resistência democrática

Lideranças sindicais como Eloy Martins, Jorge Campezatto, Álvaro Ayala, Luiz Vieira, Lauro Hageman, Ony Nogueira e José Cezar Mesquita, e outros – a maioria do Partido Comunista – criaram o Comando Sindical Gaúcho Unificado que passou a constituir Comitês de Resistência Democrática. A sede do Sindicato dos Alfaiates era o coração da mobilização sindical.

No prédio do “Mataborrão” – na esquina da Av. Borges de Medeiros com a Rua Andrade Neves – lideranças populares, sindicais e estudantis organizaram o primeiro Comitê de Resistência Democrática – com forte presença de trabalhistas, comunistas, e socialistas – o qual passou a alistar milhares de pessoas para lutar de armas na mão em defesa da Constituição.

Ali estavam a poeta Lila Ripoll, organizando os artistas; o ex-deputado federal comunista Abílio Fernandes; o líder metalúrgico Elói Martins; Fúlvio Petracco, presidente da Feurgs; o líder estudantil Bruno Mendonça da Costa, Fernando Almeida; os advogados Carlos Araújo, Victor Douglas Nuñez e Luís Heron Araújo; e tantos outros lutadores do povo. Logo, os Comitês de Resistência Democrática se espraiaram por todo o Estado. Mais de 100 mil gaúchos se, alistaram para defender a legalidade, dispostos a tudo.

O jornalista gaúcho João Aveline, dirigente comunista, dá o seu testemunho: “O Partido aqui no Rio Grande do Sul assumiu o comando de todo o trabalho de massas, enquanto o Brizola, no Piratini, como governador, fazia uma pregação no sentido da legalidade (…). João Amazonas, que era secretário estadual aqui no Estado, comandou a luta num local que denominamos ‘Mataborrão’ (…) Nós nos instalamos lá e fizemos alistamento militar.” (8)

Resistência do Movimento pela Legalidade no Rio Grande do Sul I Foto: Reprodução

Lara de Lemos – do Comitê de artistas e intelectuais, que contava com 240 participantes – criou a letra do “Hino da Legalidade”, musicado por Paulo Cesar Pereio, que passou a ser irradiado pela Rede da Legalidade e tornou-se um símbolo da luta pela Legalidade: “Avante, brasileiros / De pé / Unidos pela liberdade / Marchemos todos juntos / Com a bandeira que prega a lealdade / Protesta contra os tiranos / Te recusa à traição / Que um povo só é bem grande / Se for livre sua nação”. (9)

Os dias que se seguiram registraram a marcha pelas ruas dos “Batalhões Operários” da Carris, construção civil, estivadores, marítimos, ferroviários, metalúrgicos, bancários, enfermeiros, etc., e dos Batalhões de secundaristas, universitários, intelectuais, artistas, militares reformados, CTGs, escoteiros, enfim a cidadania mobilizada.

João Amazonas – então Secretário-Geral do Partido Comunista do Brasil no Rio Grande do Sul – relataria, anos mais tarde: “Nós tomamos uma decisão: vamos organizar batalhões patrióticos. Ocupamos um prédio do governo (…) ali, na Avenida Borges de Medeiros (…) organizamos os batalhões patrióticos por categoria profissional (…). Alguns dias depois, fizemos um desfile.(…)Tudo organizado por nós.” (10)

Sem titubear, a UNE decretou uma greve nacional em defesa da posse de João Goulart. Seu presidente, Aldo Arantes – que anos depois foi eleito deputado federal do PCdoB – viajou para o Rio Grande do Sul, onde instalou a sede da UNE. Utilizando a Rede da Legalidade, mobilizou os estudantes de todo o país para a resistência ao golpe. O Governador de Goiás, Tenente coronel Mauro Borges Teixeira, lançou uma proclamação à nação, aderindo ao movimento liderado pelo governador do Rio Grande do Sul.

Na Guanabara, a Comissão Permanente das Organizações Sindicais – dirigida pelos comunistas – deflagrou uma greve entre os marítimos, portuários, trabalhadores em transporte de passageiros e trabalhadores indústrias. Os ferroviários da Leopoldina paralisaram suas atividades. No Rio de Janeiro, o Marechal Lott lançou um Manifesto, denunciando o veto dos ministros militares à posse de Jango e defendendo o respeito à Constituição. Pouco depois, foi preso na Fortaleza da Lage pelos golpistas.

Brizola articula-se com os militares legalistas

Ao comunicar-se com o Marechal Lott, Brizola foi orientado a procurar os generais legalistas Oromar Osório – comandante da 1ª Divisão de Cavalaria de Santiago – e o Gen Peri Bevilaqua – da 3ª Divisão de Infantaria de Santa Maria – as duas mais poderosas do III Exército. Os dois generais se solidarizaram de imediato com a causa da Legalidade e passaram a pressionar Machado Lopes, para que se somasse à defesa da Constituição. O mesmo fizeram os generais Benjamin Galhardo (Curitiba), o general Garcia (Uruguaiana) e o general Sílvio Santa Rosa.

Marechal Lott I Foto: Reprodução

A seguir, Brizola passou a manter contato com as guarnições militares do interior do Estado, a maior parte das quais aderiu à Legalidade, com exceção de Bagé. A cada hora que passava, a posição golpista dos ministros militares perdia terreno no seio do III Exército e o próprio General Machado Lopes tomava consciência disso:

“Assistindo ao entusiasmo do povo gaúcho pelo acatamento da Lei, ouvindo matraquear a Cadeia da Legalidade e auscultando a opinião dos Comandos das Grandes Unidades que compunham o III Exército, confirmei a impressão de que qualquer solução que implicasse o veto à posse do Sr. João Goulart na Presidência da República levaria à guerra fratricida, com todas suas maléficas consequências.” (11)

No dia 27, Machado Lopes informou ao Ministro do Exército:

“Governador Brizola, declarou-me, resistirá contra ação que impeça posse João Goulart. Coordena ação Brigada Militar nesse sentido. Tenho percebido grande número oficiais ideia ser mantido princípio constitucional, inclusive comandantes 3ª Divisão Infantaria e 1ª Divisão Cavalaria. (…) Situação tensa, porém calma todo III Exército.” (12)

Brizola começou, então, a divulgar o manifesto do Marechal Lott, em defesa da Legalidade, junto com seu próprio manifesto, ambos amplamente distribuídos aos jornais, rádios e TVs. Seus discursos e entrevistas tinham enorme audiência e despertavam a cidadania rio-grandense. Um número crescente de pessoas passou a concentrar-se na Praça da Matriz, para defender a Constituição. Em determinadas ocasiões, passavam de 50 mil pessoas.

Mas, a medida que as principais rádios divulgam o manifesto de Lott, os seus transmissores eram silenciados e lacrados pelo III Exército. A Rádio Guaíba, cujos proprietários se negaram a transmiti-lo, foi uma das poucas que permaneceu no ar.

A ordem para bombardear o Palácio Piratini e silenciar Brizola

Nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, Brizola tomou conhecimento de que os ministros golpistas haviam ordenado ao III Exército e ao 5º Comando Aéreo que submetessem o Governo do Rio Grande do Sul, se necessário bombardeando o Palácio Piratini:

Foto: Reprodução

“1- O gen. Orlando Geisel transmite ao gen. Machado Lopes, comandante do III Exército, a seguinte ordem do Ministro da Guerra: O III Exército deve compelir imediatamente o Sr. Leonel Brizola a por termo à ação subversiva que vem desenvolvendo (…) Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente (…) empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário.” (13)

Brizola tomou, então, a decisão de requisitar a Rádio Guaíba e passou a irradiar diretamente dos porões do Palácio Piratini, convocando o povo a vir até a Praça da Matriz para defender a Constituição. Estava criada, assim, a “Rede da Legalidade”, que chegou a englobar 104 emissoras de todo o país, denunciando os golpistas e convocando o povo brasileiro a defender a Constituição.

Mais de 200 homens da Brigada Militar e da Polícia Civil, fortemente armados, foram enviados para proteger a torre e os transmissores, na Ilha da Pintada. Também a central telefônica foi ocupada e guarnecida por tropas da Brigada Militar. Ao mesmo tempo, Brizola requisitou mais de três mil revólveres à fábrica Taurus, em Porto Alegre, distribuindo-os aos Batalhões Populares. O Palácio e as ruas adjacentes, protegidas por barricadas, são transformadas em cidadelas da resistência.

Os Ministros Militares determinaram, então, um ataque aéreo ao Palácio Piratini, para submeter Brizola e todos os que estivessem com ele. O piloto Oswaldo França Júnior, da Base Aérea de Canoas, informa:

“Dezesseis aviões foram armados para a operação. Pelos meus cálculos, a gente ia pulverizar o Palácio do governo! O armamento que a gente tinha em mãos era para pulverizar o Palácio. (…) nós todos sabíamos que iríamos matar muita gente. (…) bombas e foguetes cairiam na periferia. Muitas pessoas iriam ser atingidas. Além de tudo, Brizola estava com a família no Palácio, cercado de gente. (…) Nós iríamos usar bombas de 250 libras e 15 foguetes. Cada avião iria levar quatro bombas de 250 libras, além de quatro canhões. Eu digo: a gente ia pulverizar tudo!” (14)

Mas, a tentativa dos oficiais aviadores – que obedeciam às ordens dos ministros militares – de levantar vôo e bombardear o Palácio Piratini foi impedida pela atitude heróica dos suboficiais e sargentos da Base Aérea de Canoas que, junto com alguns poucos oficiais legalistas, desarmaram os aviões e esvaziaram os seus pneus:

Foto: Reprodução

“decidiram os sargentos e suboficiais, com apoio de cabos, soldados e taifeiros, apoiar o Movimento Legalista. (…) No comando do 1º do 14º Grupo de Aviação de Caça estava o Major Aviador Cassiano. (…) O major Cassiano resolve acatar a ordem de bombardear o Palácio Piratini dada pelos Ministros Militares. (…) os suboficiais e sargentos do Esquadrão de Caça estavam detidos no hangar, dominados pelos oficiais comandados pelo major Cassiano. Os sargentos que se encontravam no cassino da base, aproximadamente 100, tomaram uma decisão (…) ‘– Vamos libertar os colegas do Caça. Não vamos permitir a decolagem dos aviões, vamos assumir o controle interno da base’ (…) Lá chegando, libertamos os colegas. (…) O Major Cassiano sentiu que a partir daquele momento avião nenhum decolaria, como de fato não decolou. (…) os sargentos e suboficiais, sob liderança do segundo sargento Lague, determinaram aos soldados que esvaziassem os pneus dos aviões, o que foi executado, deixando as aeronaves inoperantes para decolagem.(…) os sargentos de armamento do esquadrão desligaram o sistema de bombas deixando-os, assim, inoperantes.” (15)

A seguir, o Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, assumiu o comando interino da 5ª Zona Aérea e o Major Mário de Oliveira o Comando da Base Aérea de Canoas. Em represália, quando ocorreu o golpe militar de 1964, Alfeu Monteiro foi covardemente assassinado pelos golpistas, no dia 4 de abril, com uma rajada de metralhadoras pelas costas.

Mas, a ordem dos golpistas foi reafirmada: calem Leonel Brizola! Tropas do III Exército se deslocaram, então, até os transmissores da Rádio Guaíba, na Ilha da Pintada – que estavam guarnecidos por tropas da Brigada Militar – com o objetivo de silenciar a “Cadeia da Legalidade”. Porém, no momento em que se preparavam para agir, o General Machado Lopes desautorizou a ação e determinou o seu retorno aos quartéis (informação que me foi fornecida pelo Cel. Américo Leal, que comandava a referida tropa e foi meu colega de vereança, em Porto Alegre).

Tudo indica que a ordem dos ministros militares para bombardear o Palácio Piratini – com todas as conseqüências que isso acarretaria – foi um elemento decisivo para que o general Machado Lopes rompesse com os golpistas e assumisse a bandeira da Legalidade.

O III Exército adere à Legalidade

O general Machado Lopes solicitou, então, uma reunião com Brizola. Este aceitou, desde que a mesma ocorresse no Palácio Piratini. Não sabendo qual seria o posicionamento do General Machado Lopes, Leonel Brizola fez um pronunciamento patético, defendendo a Legalidade e afirmando que lutaria até o último alento contra qualquer golpe militar:

“nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade do seu povo! Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores, mas não será silenciada sem balas. (…) Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto (…) Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra da desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. (…) Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo.”(16)

Leonel Brizola durante o Movimento Pela Legalidade I Foto: Reprodução

O povo respondeu ao pronunciamento de Brizola afluindo em massa ao Palácio Piratini e à Praça da Matriz. Em pouco tempo eram mais de 100 mil pessoas. Pressionado por essa grande mobilização popular e por seus principais comandantes, Machado Lopes tomou a decisão de não mais acatar as ordens dos ministros militares e apoiar uma saída Constitucional para crise.

Como relatou o jornalista Adaucto Vasconcellos: “O general Machado Lopes, comandante do III Exército, à frente de um grupo de oficiais, se aproximava do Palácio lentamente. A massa começou a deslocar-se na direção dos militares. Foram segundos da mais alta dramaticidade. O Hino Nacional, brotado da garganta de milhares de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram com o povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo. O III Exército estava aderindo à Legalidade.” (17)

Unificado o Rio Grande do Sul com a adesão do III Exército, com seus 120 mil homens – o mais poderoso do País –, reforçado pela Brigada Militar e com o apoio massivo da população, equilibraram-se as forças no tabuleiro nacional, ainda mais que os próprios golpistas não confiavam na unidade do seu campo, onde cada vez mais se levantavam vozes dissonantes.

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul exigiu de Mazzili a exoneração dos Ministros Militares, no que foi seguida pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Em Brasília, por 300 votos contra 12, a Câmara rejeitou o pedido de “impeachment” de João Goulart. O deputado Adauto Lúcio Cardoso, líder da UDN, encaminhou um pedido de impedimento de Ranieri Mazzili e dos três ministros Militares, por crime de responsabilidade.

Quando o Presidente Mazzilli – submisso aos Ministros Militares – nomeou para o Comando do III Exército o General Cordeiro de Farias, em substituição a Machado Lopes, este afirmou: “prenderei o substituto, tão logo ponha os pés no Rio Grande do Sul!”

Rapidamente foi montada a defesa de toda a região Sul. Divisões do III Exército, oriundas do Rio Grande do Sul, atingiram em marcha batida Santa Catarina e o Paraná, tendo por destino a fronteira com São Paulo. O litoral gaúcho foi ocupado por tropas da Brigada Militar. A imprensa noticiou a obstrução da barra de Rio Grande, pelo afundamento (fictício) de navios, de forma a impedir o acesso das belonaves inimigas à Lagoa dos Patos e a Porto Alegre. O grupo antiaéreo de Caxias do Sul deslocou-se para Porto Alegre e entrincheirou-se no Palácio Piratini.

Quando o general Murici, favorável aos golpistas – que havia sido enviado para falar o Ministro da Guerra e obter maiores informações sobre a situação – retornou de sua viagem e tentou convencer o comandante do III Exército a viajar para Brasília, “onde o Marechal Denys o porá ao par de tudo”, Machado Lopes, consciente de que era uma armadilha para prendê-lo, dispensou Murici da Chefia do Estado Maior e o liberou para sair do Estado.

O Governo do Estado congelou os preços dos gêneros de primeira necessidade e imprimiu dinheiro papel – as chamadas “brizoletas” – para fazer frente às necessidades financeiras. Estas não chegaram a circular devido à solução da crise.

Brizoletas I foto: Reprodução

A disposição de luta e a consciência popular cresciam à medida que o tempo passava. A resistência ao golpe transformava-se cada vez mais em um levante popular que envolvia as próprias Forças Armadas e punha em risco o regime.

Diante do imponderável, tanto as elites dominantes quanto os altos mandos militares passaram a trabalhar por uma saída negociada que evitasse a guerra civil. Essa saída foi a casuística emenda parlamentarista, votada em dois turnos nos primeiros dias de setembro e aceita a contragosto pelos ministros militares golpistas.

Vitoriosa a luta, Jango assume a presidência em um regime parlamentarista

Finalmente, em 7 de setembro de 1961, João Goulart assumiu a Presidência da República sob um regime parlamentarista. O povo, os trabalhadores, os militares democratas – conduzidos por um grande e destemido líder – haviam vencido! A vitória não havia sido completa, mas, talvez, tenha sido a possível naquelas circunstâncias. O povo havia mostrado a sua determinação e a sua força.

Resumo em poucas palavras as causas da vitória: mobilização popular, amplitude e unidade, destemor e audácia!

O Movimento pela Legalidade foi por muito tempo ignorado pela grande imprensa e pela historiografia oficial. A ordem era manter o episódio no mais completo esquecimento, para que não fosse lembrada essa vitoriosa mobilização patriótica e popular que – liderada pela figura intrépida de Leonel Brizola – alterou os rumos da história do Brasil, impedindo o golpe que se gestava e derrotando os planos das elites reacionárias.

Neste ano em que comemoramos os 60 anos da Legalidade e que novas ameaças à democracia surgem no horizonte, orquestradas pelos mesmos que sempre se opuseram a qualquer avanço social, o exemplo de determinação e de coragem que Leonel Brizola e o povo gaúcho demonstraram em circunstâncias tão difíceis devem servir-nos de modelo e inspiração. Com certeza, em momentos como esses não há espaço para tibiezas e vacilações!


Notas

  • (1) QUADROS, Jânio e FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História do Povo Brasileiro – Vol. VI. São Paulo: Jânio Quadros Editores Culturais S.A., 1967, pp. 241-242.
  • (2) MACHADO LOPES, José. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1980, p. 34.
  • (3) MARKUN, Paulo e HAMILTON, Duda. 1961: que as armas não falem. São Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2001, p.115.
  • (4) Idem, p. 116.
  • (5) QUADROS NETO, Jânio e GUALAZZI, Eduardo. Jânio Quadros, Memorial à História do Brasil. São Paulo: Rideel, 1996, pp. 45-46.
  • (6) BRIZOLA, Leonel. In: MACHADO LOPES, José. O III Exército… Idem, p.41-42.
  • (7) FELIZARDO, Joaquim. A Legalidade – último levante gaúcho. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1988, p. 47.
  • (8) BUONICORE, Augusto. Meu verbo é lutar – a vida e o pensamento de João Amazonas. São Paulo: Fundação Maurício Grabois, Anita Garibaldi, 2012, p. 149.
  • (9) COSTA, Bruno Mendonça. Mata-Borrão, Legalidade e acadêmicos da UFRGS (crônica de uma época). In: SOUZA, Blau, NEUBARTH, Fernando e CUNHA, Franklin. Médico (Pr)escrevem 4. Porto Alegre: AGE Editora, 1998, p. 48-49.
  • (10) OLIVEIRA, Pedro (Org.). João Amazonas – 1912-2002. Brasília: Edições Câmara, 2011, p. 71.
  • (11) MACHADO LOPES, José, idem, p. 45.
  • (12) TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 99.
  • (13) Mensagem do gabinete do Ministério da Guerra ao III Exército, às 6h da manhã do dia 28.08.61. In: FELIZARDO, Joaquim, idem, p. 32.
  • (14) MORAES NETO, Geneton. Dossiê Brasil – As histórias por trás da História recente do país. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1997, p. 89, 90.
  • (15) CALIXTO, Ney de Moura. Os Sargentos da Legalidade. Canoas: Prefeitura de Canoas – Secretaria de Comunicação, 2011, pp.17-22, 34.
  • (16) LEITE FILHO, Francisco das Chagas. El Caudillo Leonel Brizola. São Paulo: Editora Aquariana, 2008, pp. 121-124.
  • (17) FELIZARDO, Joaquim, idem, p.41.
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor