A bondade negra de uma vagabunda

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Para o dia de ontem, 13 de maio, lembro de uma pessoa grande que fiz personagem. Sobre ela, compreendo o que os fascistas chamam de vagabundo, palavra definida nos dicionários como um ser infame, canalha, desonesto, ordinário, inferior. Um insulto atirado, enfim, por bandidos contra a decência, que age por justiça. Em resumo, eu quero apenas dizer Severina, do romance A Mais Longa Duração da Juventude em uma página:    

Penso na cozinheira da pensão, dona Severina, uma senhora negra, analfabeta, que lia como ninguém as necessidades dos fodidos. Mais e melhor que a Irene de Manuel Bandeira, “Irene boa, Irene preta, Irene sempre de bom humor”, maior foi Severina, porque a sua bondade era ativa. Ela não era aquela bondade da criada perfeita, sempre a serviço dos patrões, que por isso entrará no céu, apesar de negra. Não, sob risco, na conspiração sem palavras e sem bandeira, muda, quanto devemos a ela? Severina lia em nossos olhos a angústia, e um sorriso se insinuava em seu rosto, quando nos olhava com olhos graúdos como se nos dissesse: “Eu te compreendo, futuro, se para a humanidade houver algum, eu te compreendo futuro camarada”. Esta lembrança vem na escrita. A gente tem que escrever para não ser um filho da puta, ou um ingrato, pior que os gatos domésticos. Por quê? Eu pagava somente a minha vaga e alimentação. Almoçava lá embaixo, mas lá em cima, Luiz do Carmo estava trancado sem comer. Então eu comia até a metade do meu prato. E ao me levantar da mesa com os meus 50% deixados, eu falava para me justificar do modo exótico de comer:

– Levo para o meu lanche, mais tarde.

Severina doce, Severina bondosa, Severina indispensável, sorria com os olhos para minha desculpa, eu podia ver. A partir do terceiro dia do almoço pela metade, ela punha mais feijão e mais pedaços de carne em meu prato, “por engano”. Na hora da refeição, a velha dona fiscalizava a quantidade de comida posta para os inquilinos. Severina atrasava o momento de pôr a minha refeição até que a dona saísse, e quando mais não era possível, escondia o excesso de carne sob camadas de feijão e arroz. Eu, percebendo a cumplicidade, comia rápido os meus pedaços, de tal modo que na volta da megera dona o meu prato estivesse equilibrado. Se pudesse fazer mais, Severina nos levaria para a sua casa, nos cobriria com a sua saia para esconder aqueles terroristas sem futuro, a não ser a morte. Que chegaria para todos, é certo, mas não tão cedo. Para mim, agora, a sua cara negra e redonda cresce. Com os olhos grados e um sorriso bom. Nela poderíamos ter a unidade com o povo tão sonhada, e não víamos, porque buscávamos o popular idealizado, macho, de armas engatilhadas como o exército vietcongue. Mas o popular estava no sorriso de Severina. Ela apenas queria ser nossa irmã naquela hora repleta de angústia. Ela apenas nos cobria como uma negra fugida abrigava os seus negros perseguidos. Enquanto nós, os perseguidos delirantes, procurávamos o popular sublevado. O engraçado é que tão criminoso me sentia pelo furto de comida sob a vigilância da senhoria, que eu fazia de conta que o almoço vinha a mais por acaso, embora repetido, e Severina fingia que errava a mão, sempre no mesmo prato. Na verdade, eu era o seu negro preferido, o filho especial da negra Severina, que para os outros era madrasta. Estrela Vésper riscava no céu até nós, e a sua luz era negra, num deserto branco de ossos.

Eu me perguntava: será que ela sabia o destino daquele “lanche para mais tarde”? Hoje, penso que sim, porque conheço o que os patrões dão o nome de “rádio corredor”. Ou seja, a comunicação subterrânea, oculta, que os empregados e excluídos têm à margem do controle dos chamados superiores. Os conhecidos como subalternos veem, leem e conhecem a vida, mas como são tidos como cegos, surdos e estúpidos, podem melhor observar o que passa despercebido aos senhores.

Um abraço e beijo tardios, Severina.

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