A caminho do paraíso, viva a revolução!

Apenas queríamos matar os gigantes que se levantavam contra a revolução, apenas.

Foto: Oran Oniilari / CCJ Recife

– Mas onde fica Porto de Galinhas?

– Tu não sabes? – Zacarelli joga a culpa de volta. 

– Não – respondo. Escuto as vozes no escuro do carro: “Porra, como pode? Puta que pariu. E agora?”. Mas falo: – Na Estação Rodoviária informam.

O dia começa a clarear quando chegamos à Rodoviária no Cais de Santa Rita. Subimos ao primeiro andar. O guia pergunto:

– Por favor, onde fica Porto de Galinhas?

– Ali, no guichê 13.

– Não quero comprar passagem. A gente quer saber o caminho.

– Estão de carro? Vão até o Cabo, depois peguem à esquerda.

– Certo. E o Cabo…?

– Vocês são daqui? Vão pela Imbiribeira, passem pelo aeroporto e sigam em frente.

Perfeito. Quando Alberto liga o carro, se queixa:

– Estou com um sono danado. Faz dois dias que não durmo direito.

– Mas dá pra seguir, não dá? – pergunto em pura retórica.

– Acho que dá – responde. – Ninguém mais aqui dirige?

– Nosso destino está nas tuas mãos – Zacarelli responde.

– Tu me deixas ir no teu lugar? – pergunto a Narinha, sentada à frente.

Fazemos a troca. Olho para Alberto. A expressão do seu rosto é tenebrosa. Ele tem os olhos abertos como se agarrados por prendedor de roupa. No automático, o carro voa Imbiribeira acima. De vez em quando Alberto pisca, e depois da piscada arregala em punição os olhos. Estão vermelhos, com raios de sangue, esbugalhados. O carro mal toca o chão.

– Vai falando comigo – Alberto me diz.

– Eu estou falando.

– Eu sei… – E o olhos se fecham.

– Alberto! – eu grito. – Você já trepou?

– Ah – e gargalha. – Narinha é que sabe.

– Foder é natural – Zacarelli observa.

– Mas falar para os outros não é – Narinha responde.

– Narinha está certa –Alberto fala. – Na verdade, a gente nem chegou ainda, não foi, amor? Ficamos só no começo…

– Cala essa boca! Que é isso?! – Narinha grita.

– Se ele fechar a boca, o carro vira – digo.

– Calma, não é assim… – ele responde. E o carro oscila para a esquerda. 

– Alberto! – acordo-o. Ele repõe a direção.

Estamos a caminho do Cabo e a estrada é monótona às cinco e trinta da manhã. Passam caminhões com trabalhadores do corte de cana. Há um cheiro de melaço, de fermentação no ar, embriagante, doce, entontecedor. Era bom dormir só um pouquinho,  um segundo, mas a minha tarefa é vigiar os olhos de Alberto, que não podem parar de se mover, ou estará hipnotizado. O ponteiro da vemaguete vai a 120 quilômetros por hora.

– Você está com a velocidade máxima – falo.

– Eu sei. A estrada está livre.

– Se a gente morresse, era rápido – Zacarelli fala. – Vamos todos pra Pasárgada.

O ponteiro da Vemaguete oscila para ir além dos 120. O motor do carro está em plena potência. Ele é como nós, com a diferença de ter seus objetivos alcançados. O vento sopra ensurdecedor na janela. Olho para Alberto. Ele pode dormir feito coruja, e por isso pergunto:

– De que você mais gosta? – Imagino que por falta de imaginação sou ridículo. Mas pior é o choque num carro na outra mão. Ele não me responde, e por isso volto: – Você gosta mais de comer ou de foder?

– Dos dois.

– Sim, mas qual é o melhor?

Ele não responde. O carro sai da reta.

– Alberto! – Dou-lhe uma cutilada na costela.

– Porra, isso dói.

– Abra os olhos!

– Eu estou vendo tudo.

Mentira. Os olhos vermelhos, de fato, estão abertos. Mas resistem serenos, sem vida. Estão fixos e divagam longe arregalados. Os olhos de Alberto estão abertos como os dos mortos quando não se fecham. Ou como os de uma coruja empalhada. Isso vai dar uma merda colossal se eu não gritar:

– Alberto!

– Tranquilo. Você é medroso.

É demais. O cara cochila na Vemaguete a 120 por hora e eu é que sou medroso. Fico puto e me digo: “eu vou deixar esta merda virar”.

– Alberto, não é isso – Zacarelli fala. – Ele está cuidando da segurança de todos nós.

– A segurança do carro é comigo –Alberto fala. – Eu sou o melhor motorista do Recife.

– Mas os melhores também morrem – Zacarelli retorna.

– Fiquem tranquilos. Estou bem.

– Está bem cochilando a 120 – falo.

– Que absurdo, rapaz. – Alberto responde. – Quem foi que cochilou? Absurdo.

Percebo que é melhor espicaçar o seu amor-próprio. Com raiva, ele se manterá acordado.   

– Você é capaz de se lembrar do que lhe perguntei antes? – pergunto.

– Você não perguntou nada – ele responde. – Você me acusou. Disse que cochilei na direção.

– Todos viram que você cochilou.

– Mentira! Isso é uma calúnia!

E se vira para mim, com o carro voando. Ele retira uma das mãos do volante para ser mais enfático. Neste exato instante o carro se inclina para a esquerda. Vejo do outro lado um grande FNM, que buzina.

– Cuidado!

Ele repõe sem tempo de perceber a mão que havia tirado e lhe dá um leve toque para a direita. O carro volta.

– Porra! – grito. – A gente ia se esbagaçar no caminhão. Para este carro. – Respiro fundo e pergunto: – Gente, não é melhor desistir da viagem? – O carro desce para a margem da estrada.

– A gente podia cochilar um pouco no acostamento – Zacarelli responde.

– Absurdo, rapaz – Alberto fala.

– Talvez voltar tenha o mesmo risco de continuar – Zacarelli pondera.

– Amor, você está bem? – Narinha pergunta. – Quer que eu vá pra frente morrer com você?      

– Absurdo, Narinha. Vamos embora – Alberto responde.

– Então vamos fazer um trato – Zacarelli fala. – Você dirige. Mas Júlio é a nossa segurança. Certo?

– Vamos embora – ele responde.

As mãos de Alberto tremem ao passar a marcha royal da Vemaguete. Acusam o susto. Sinto que a discussão também lhe acabou o sono. Pelo menos logo que o carro sai do acostamento.

– Até aqui o diabo nos ajudou – falo.

– Vamos cantar? – Narinha pergunta. E começa: – We all drive in a yellow submarine…

– Yellow submarine, yellow submarine… – Zacarelli continua.

Mas não sabemos o resto. O silêncio cai por minutos. A tensão ainde existe, até o ponto em que Zacarelli dá o mote:

– É uma aventura.

– Nós ainda vamos contar esta história – falo.

– Será? – Alberto pergunta.

A sua pergunta tem o sentido de “estaremos vivos até lá?”. Então o riso se instala, de volta a alegria. Uma das razões é que já passamos do Cabo de Santo Agostinho. Entramos em uma estrada longa, de barro, com uma seta que anuncia Porto de Galinhas. Mar verde do canavial pelas margens. E passamos a discutir questões práticas, que nem sabíamos existir no paraíso:

– Estou sem calção – Alberto fala.

– Tonhão empresta – respondo.

– Tonhão, com aquela altura, vai dar uma bermuda em Alberto – Zacarelli fala.

– Se as meninas não estivessem lá, a gente podia tomar banho de cueca – falo.

– Tudo bem. As meninas são liberais – Zacarelli responde.

– E eu, Alberto, tomo banho sem roupa? – Narinha pergunta. E Alberto, para se mostrar avançado:

– Toma de calcinha e sutiã, amor.

– Mas eu não uso calcinha, amor – Narinha responde.

– Sabia não, camarada? – Zacarelli pergunta.

– Claro que eu sei – Alberto responde. Todos riem. Alberto, sério,  me pergunta: – Você sabe aonde vamos parar?

– Em Porto de Galinhas.

– Mas eu pergunto em que casa, em que rua.

– Este é o problema. Não sei – respondo. De vários pontos do carro ouço “que irresponsabilidade”. – Vamos em frente. Da força da nossa união acharemos a resposta.

– Grande! Era só o que faltava… – fala o coletivo. 

No entanto, quando o carro descobre a linda praia de Porto de Galinhas, todo nosso receio e mau humor vão embora. Em 1972, ali existia o lugar mais próximo do paraíso. Mar azul, o que já era para nós uma revelação, porque o mar no Recife era verde. A praia é de mar azul e areia branca, que parecia açúcar refinado, pensávamos. Jangadas, coqueiros e ar puro, uma brisa que soprava e envolvia o rosto como uma carícia. Éramos bem-vindos em bem-aventurança. Como ser infeliz aqui? Nós nem nos olhávamos nem víamos as nossas caras de ressaca, sem dormir, com hálito explosivo de álcool. Para quê? A nossa cara, que víamos, era o mar brilhante em um sol que transmitia felicidade, calor no rosto e no peito melhor que a onda de cerveja na véspera. Os coqueiros moviam folhas à semelhança de pás de moinhos de vento, mas com seus verdes luminosos não nos deixavam quixotes. Apenas queríamos matar os gigantes que se levantavam contra a revolução, apenas. A sua visão parecia nos pôr fortes, renovados. E jovens, com o poder jovem, que nos enchia de um ser de criança.

– Viva a revolução! – gritamos.

– Bicho, o século é nosso – Zacarelli fala do fundo do carro. – Esta é a nossa hora e vez.

– Podíamos descer um pouco aqui, curtindo esta hora – falo. – Vamos?

O carro para, Narinha é a primeira a sair. Pula, salta no short, que sabemos agora nada ter embaixo. Que importa? Faz parte do mar e do sal. Alberto a segue feito o cachorrinho que acompanha a sua dona. Estamos todos bobos, olhamos o céu, o mar, o sol, águas mais belas quando recebem a primeira luz tropical. “Aqui Deus criou o mundo”, sentimos. Mas nos encanta, além da beleza da praia quase deserta àquela hora, nos deixa tontos o contraste com uma soturna intuição de que a felicidade ali fosse o nosso último instante. Por que a sensação do feliz tem que se contrapor à mágoa, como pano de fundo ou anúncio de tormento? Tínhamos um difuso sentimento que muitos chamam de precognição. Mas pelas condições da ditadura, a precognição era uma experiência já vista. Tão natural, que não nos predizíamos uma idade madura, com os cabelos brancos. Essa possibilidade era uma impossibilidade. Só agora descubro por que o nosso peito estoura de alegria, quando Zacarelli abre os braços tentando abraçar o oceano:

– Somos jovens.

E começamos a rir, como se ríssemos de um absurdo, porque aos 20 ou 21 anos não podíamos ser outra coisa. Esse era o nosso pretexto de rir. Mas ríamos de fato era com a hora que foge, que partia de nós como um trem-fantasma a penetrar no escuro.

– Podemos fazer tudo que queremos? – pergunto.

– Acho que quase tudo – Alberto responde, olhando para Narinha.

– Por mim, é tudo. Podemos fazer tudo – ela lhe diz.

– Desde que a gente saiba dosar, não é? Em princípio, é tudo. Na prática, quase tudo – Alberto fala.

– Quando se ama, pode-se fazer tudo – ela responde. Faz-se um silêncio.

– Nós somos jovens e o mundo é nosso, não é, Zacarelli? – Alberto pergunta e sorri.

– Sem dúvida – ele responde. E sem transição: – E os nossos amigos? Não vamos ficar aqui sem eles.

– Acho que Iza já deve estar aflita na solidão: “Meu Deus, o que fazer sem Zacarelli?” – brinco.

– Não duvides, bicho – ele me responde.  – Tu verás como ela me recebe. Os teus olhos incrédulos serão testemunhas. 

– Então vamos – Alberto fala.

– Calma – respondo. – Nós ainda temos que saber para onde.

*Do romance “A mais longa duração da juventude”

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