“A Cor Púrpura”, o Julho das Pretas e a resistência das mulheres negras

O filme “A Cor Púrpura” levanta questões essenciais para a luta das mulheres, em especial para as mulheres negras latino-americanas e caribenhas

Cena do filme "A Cor Púrpura"

O dia 25 de julho foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data foi escolhida em 1992 durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas na República Dominicana como marco internacional da luta e resistência da mulher negra. No Brasil homenageia-se Tereza de Benguela, mulher negra, líder que comandou a estrutura política, econômica e administrativa do Quilombo de Quariterê na atual fronteira entre Mato Grosso e Bolívia. Por meio da Lei 12.987/2014 a data tornou-se o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

O julho das pretas vem se tornando uma referência fundamental para a luta das mulheres negras e para todo o movimento social, pois se ancora e se constrói na luta solidária das mulheres negras em sua longa história no mundo e em nosso país, com denúncia da violência racista e misógina do capitalismo em aliança com o patriarcado e o racismo. O Brasil, país com a segunda maior população negra do mundo, atrás somente da Nigéria, apresenta um quadro de profundas desigualdades que atingem a essa população, em particular as mulheres, resultado de histórica opressão e sofrimento imposta pelo colonialismo como sistema de escravização, genocídio e de negação da dignidade humana e de perpetuação do racismo estrutural em nossa sociedade.

Uma homenagem e profundo reconhecimento às bravas resistentes: Dandara, Tereza de Benguela, Antonieta dos Santos, Maria Firmina dos Reis, Ruth de Souza, Carolina de Jesus, Laudelina de Campos, Sonia Guimarães, Dona Ivone Lara, Marielle Franco, Elza Soares, Leci Brandão, Marta da Silva, Elza Soares, Olivia Santana e muitas mulheres que quebraram o silenciamento e privação da vida imposto pelo colonialismo e resistiram contra o apagamento brutal de suas trajetórias. A amazonense Bruna Brelaz, eleita a primeira presidenta negra da UNE (1), uma jovem brilhante e arrojada dirigente, entrará com certeza na lista das mulheres pretas que marcará história como milhares delas em nosso país.

Apresento nessa semana o filme “A Cor Púrpura” que foi assistido e debatido por alunas na Unibrasil e foi tema de discussão no Grupo de Estudos, Pesquisa, Trabalho, Gênero e Violência (Getravi), grupo que coordenei nessa Instituição de Ensino em Curitiba. A película é baseada em livro do mesmo nome de autoria de Alice Walker, escritora negra, poetisa e ativista feminista estadunidense, filha de agricultores e que fez sucesso em sua vida acadêmica, conseguindo projeção mundial com essa obra. Sua literatura tem como elementos as exclusões raciais, de gênero, sociais e econômicas. Suas convicções políticas, relações entre mulheres e feminismo, lutas políticas, reveladas em seus fortes escritos, registra a realidade vivida no cotidiano de mulheres negras e a complexidade das relações humanas. Alice ganhou o Prêmio Pulitzer, eternizando o legado para a literatura. É uma história de racismo, machismo, violências e outros preconceitos. Quando esteve no Brasil durante a Bienal em Brasília em 2012, Alice Walker se manifestou dizendo: “não sou escritora porque fiz faculdade. Sou escritora porque tenho coração”.

Alice Walker, em visita ao Brasil I Foto Junior Aragão/ Portal Geledes

O filme, de 1985, dirigido por Steven Spielberg, trata da história de Celie, interpretada por Whoopi Goldberg, que foi indicada ao Oscar de melhor atriz. Mulher negra, pobre, constantemente abusada por seu pai, tendo sido mãe de duas crianças, que são dadas a um casal de missionários. Ela própria é entregue, pelo seu pai, ao personagem Albert (Danny Glover), um viúvo que a trata como escrava, a obrigando a cuidar e manter a casa e seus enteados. Celie sofre a separação da irmã mais nova, Nessie, por quem nutre um grande amor. Novamente, Celie é abusada, estuprada e maltratada por Albert e seus filhos. Um episódio importante são as cartas escritas a sua irmã, que nunca são enviadas por Albert.

Albert, que nutria uma paixão por Shug Avery (Margareth Avery), a leva para sua casa, o que passa a ser um alívio para Celie, a qual, após um período de algumas humilhações, começa a ser tratada com respeito, do que decorrem algumas mudanças em sua vida. Shug representa o papel de uma linda cantora que se apresenta com belas roupas e desenvoltura é o oposto de Celie. Ela conhece outras mulheres que estão lutando contra a opressão racial e de gênero. Na amizade com Shug, passa a valorizar-se e começar a descobrir-se como mulher. Sua relação com Shug, inclusive sexual, traz novas perspectivas, o que faz com que Celie vá modificando sua realidade e começando a sair do espaço violento onde se encontrava, criando novas possibilidades, juntando forças para um novo caminho. É Shug que vai contribuir para a reviravolta na vida de Celie, garantindo-lhe autonomia, independência e até mesmo felicidade. Além desses aspectos, que causam indignação ao assistirmos, é somado uma carga profunda de desumanidade e perseguição racial pela elite dominadora americana, que aparece na interpretação de Sofia, uma personagem marcante. Uma mulher determinada se impõe contra o machismo do marido, que não impede que ela seja presa por confrontar-se com a esposa do prefeito da cidade. Sofia é violentamente agredida e presa. Quando retorna da prisão, está profundamente triste com cabelos brancos transparecendo dor e desesperança.

Cena do filme “A Cor Púrpura”

A Cor Púrpura não marca apenas por ser uma bela história com uma linda fotografia, mas é também uma obra que nos faz refletir profundamente e despertar um forte repúdio e tristeza face às ações desumanas, a aversão à crueldade, à violência de gênero e ao racismo. E pensar que mesmo em 2021 presenciamos cenas terríveis de racismo, de estupro, violências e feminicídio que recaem de forma mais intensa sobre as mulheres negras.

Tive oportunidade de conhecer o ator e ativista norte-americano, embaixador da ONU para os Direitos Humanos e Assuntos Raciais, Danny Glover, aliás passar o dia todo no assentamento do Contestado, na Lapa, junto a dirigentes do MST, ficará registrado na memória. O ator esteve na vigília Lula Livre e emocionado pediu a libertação de Lula. Importante deixar nítido que Danny é o oposto de Albert do filme!

Danny Glover om militantes do MST no assentamento do Contestado – Paraná em maio de 2018

O filme Cor Púrpura nos faz refletir nossa realidade e nos chama a desnaturalizar e impedir a banalização de tanta violência e injustiça. Cuidar das feridas que o racismo estrutural perpetrou nos corpos e nas almas, enfrentar o racismo patriarcal estruturado no poder e arraigado nas instituições e na sociedade é uma exigência cotidiana. Como Celie que encontra na amizade e na solidariedade força para superar seus dramas e sofrimentos, tornando-se assim agente do seu próprio destino, adquirindo independência financeira e voz dentro da sociedade na qual vive, todas as mulheres devem também conquistar.

  • Título original: The Color Purple – EUA, 1985
  • Direção: Steven Spielberg
  • Elenco: Danny Glover, Woopi Goldberg, Rae Dawn Chong

(1) Registra-se que a UNE foi liderada por Moara Correa Saboia, também negra, em 2016, que substituiu Carina Vitral por um ano.


Referências:

  • http://www.palmares.gov.br
  • https://www.cfemea.org.br/index.php/artigos-e-textos/4821-julho-das-pretas-viva-a-forca-resistencia-e-luta-das-mulheres-negras
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