A exceção não pode ser um exemplo de superação

Escrevo para pedir que nunca usemos as exceções como exemplos de superação, porque a minha superação foi doida, não é bonita e continua sendo conquistada às duras penas

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Aos 42 anos ingressei no curso de mestrado e, para a cultura acadêmica do nosso país, isso é considerado um tanto tardio. Esse pensamento é um pouco contraditório, uma vez que o Brasil é um país que pouco investe na ciência, mas é compreensível se olharmos pelo prisma da elite econômica e intelectual, que entende que a universidade não é lugar para todos.

Pois bem, hoje, eu fui até a Unicamp para realizar o exame de proficiência em língua estrangeira (o que também gera um bom debate – o porquê da exigência de dominar mais de uma língua para se estudar algo de forma mais profunda).

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Cheguei cedo e estava apreensiva. Ao me certificar que o local estava certo, fiquei aguardando o início da prova do lado de fora do prédio. Sentada ali, passei a observar o prédio que tinha escrito em letras garrafais a palavra Educação. Eu me levantei, andei um pouco e, olhando ao meu redor, eu vi o símbolo da Unicamp. Nesse momento, eu me lembrei da menina preta, moradora da zona leste de São Paulo, que estudou desde a Educação Infantil até o Ensino Médio na escola pública, que realizou a sua primeira graduação na PUC-SP, porque foi contemplada com uma bolsa de estudos para alunos de baixa renda. Para assistir as aulas às 8h da manhã, ela acordava às 5h40, pois passava duas horas no transporte público até chegar no bairro de Perdizes. Essa menina jovem virou adulta e foi lecionar na rede pública de ensino, sempre com o desejo de realizar um curso de mestrado, mas sempre deixando esse desejo para depois, porque a realidade da sua vida não permitia, uma hora trabalho e outra filho, e todas as outras vezes, porque acreditava que a academia não era lugar para ela.

Me vendo ali, tive um sentimento de realização muito grande. A prova, eu nem sei se deu certo, talvez o meu espanhol não tenha convencido muito a academia, mas isso não me preocupa, pois posso reprovar nesta primeira prova. Escrevo este relato, não para despertar sentimentalismos, não quero receber elogios, felicitações e desejos de sucesso. Escrevo para pedir que nunca usemos as exceções como exemplos de superação, porque a minha superação foi doida, não é bonita e continua sendo conquistada às duras penas. Escrevo para pedir que jamais devemos romantizar histórias como essa, pois fazer isso é legitimar o sistema cruel e desumano em que vivemos, é dizer que é possível alcançar a felicidade e superar obstáculos dentro desse sistema que nos ataca e nos limita o tempo todo e é dizer que basta o desejo e a dedicação individual.

Sim, hoje ao me ver dentro daquele espaço, eu me senti realizada e espero que isso não sirva de exemplo, mas de revolta e que se transforme em luta, para que todos que assim decidam, possam ocupar esses espaços. Não valorizemos a meritocracia usando histórias como essa como exemplo de superação e de possibilidades. A única possibilidade de superação deve ser a transformação dessa sociedade, na qual histórias como essa não sejam exceções, mas caminhos naturais dos indivíduos, que devem viver suas individualidades à serviço do bem comum.

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