A falácia da política monetária

Ora, parece evidente que a subida da Selic não teria nenhum efeito sobre esse tipo de crescimento de preços. Tratava-se de um processo inflacionário cujas explicações deveriam ser procuradas muito mais pelo lado da oferta do que pelo excesso de demanda

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Dia 2 de fevereiro sempre foi uma data bastante especial para boa parte da população brasileira. Trata-se do momento de homenagear Yemanjá, a mãe dos adultos e dos orixás. A rainha das águas recebe oferendas de seus devotos, na expectativa de verem suas promessas realizadas. Em vários municípios brasileiros, inclusive, é decretado feriado oficial. Apesar de toda a beleza e a alegria envolvidas na celebração do culto, é quase certo que em 2022 as notícias a serem anunciadas ao final desse dia não sejam as melhores.

Pois o fato é que o calendário divulgado pelo Banco Central para o presente ano determinou que a primeira reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) seja realizada entre os dias 1º e 2 de fevereiro. Assim, seguindo o ritual previsto para o final de cada encontro, as deliberações serão apresentadas em documento a ser publicado a partir das 18 horas do dia de Yemanjá. Ao que tudo indica, o colegiado responsável pela definição do patamar da taxa oficial de juros optará pela elevação da Selic pela oitava vez consecutiva.

O ano passado começou com a Selic definida em 2% ao ano. Mas a partir da segunda reunião, realizada em fevereiro, o Copom passou a deliberar por sete aumentos sucessivos, até chegar aos atuais 9,25%, decididos em dezembro. Tamanho crescimento em um indicador tão relevante para o desempenho global da economia brasileira não passou incólume. Na verdade, a intenção da autoridade monetária, ao tomar tal sequência altista, era justamente a de promover ainda mais impacto de natureza recessiva no conjunto das atividades econômicas em todo o território nacional. A definição de tal estratégia estava baseada em um diagnóstico absolutamente equivocado a respeito da natureza do processo inflacionário que estava em curso.

Na virada de 2020 para 2021, o montante acumulado de 12 meses do IPCA estava em torno de 4,25%. Assim, o índice oficial de preços estava dentro das margens previstas para a meta oficial. O Conselho Monetário Nacional (CMN) havia estabelecido que o centro da meta de inflação seria 3,75%, com um intervalo aceito de 1,5% para cima e para baixo. Por outro lado, a aceleração do crescimento de preços verificada desde então não estava ocorrendo por um aumento na demanda agregada. Aliás, muito pelo contrário. O ritmo das atividades ainda nem estava em condições de recuperar as baixas provocadas pela recessão de 2020 e a massa salarial estava ainda negativamente afetada pela continuidade do desemprego em níveis elevados e pela baixa remuneração da força de trabalho, em razão da precariedade e da informalidade. Esse era, inclusive, o intuito explícito da revogação de aspectos essenciais da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – desonestamente chamada de “reforma trabalhista” – aprovada às pressas por Temer & Meirelles.

Selic nas alturas e a inflação continua elevada.

Os grupos de preços que estavam puxando o IPCA para cima eram aqueles ligados às chamadas “commodities”, que têm seus reajustes definidos nos movimentos especulativos verificados no mercado internacional. Além disso, houve reajustes em produtos e serviços específicos, tais como: i) tarifas de energia elétrica; ii) preços de alimentos por conta de queda nas safras em razão da seca; iii) preços dos derivados de petróleo, em função da absurda política de preços da Petrobrás. Ora, parece evidente que a subida da Selic não teria nenhum efeito sobre esse tipo de crescimento de preços. Tratava-se de um processo inflacionário cujas explicações deveriam ser procuradas muito mais pelo lado da oferta do que pelo excesso de demanda.

A onda neoliberaloide que nos assola há um bom tempo resolveu que é preciso eliminar a presença do Estado na economia e destruir os mecanismos públicos de regulação. “Jenial”! Pois então, desde que foi consumado o golpeachment de Dilma Roussef, esse processo se acentuou de forma drástica. Para o que nos interessa nesse tema, tivemos a mudança da política de preços da Petrobrás, acompanhada da dilapidação e privatização de seu patrimônio. Com isso, os preços dos derivados do petróleo (que são estratégicos para nossa sociedade e estão presentes em praticamente todas as atividades econômicas, empresas e famílias) deixaram de ser definidos internamente e foram atrelados à variação dos preços do óleo bruto no mercado internacional. Uma loucura! O governo reduziu a capacidade de refino da empresa e passamos a exportar petróleo bruto e importar derivados. Com a desvalorização cambal em curso, estava armada a bomba relógio para pressionar os índices de inflação. Gasolina, óleo diesel e gás de cozinha, por exemplo, experimentaram aumento de preços expressivos, com reflexos horizontais para todos os setores.

Petroleiro segura cartaz em crítica à atual política de preços da Petrobras I Foto: FUP

Por outro lado, os responsáveis pela área econômica também resolveram aplicar seus parcos conhecimentos mal estudados dos manuais de macroeconomia para desorganizar o ramo dos alimentos. Viva a lei da oferta e demanda! E desmontaram as estruturas que operavam há décadas nas instituições públicas do setor, tais como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A política de estoques reguladores, por exemplo, foi abandonada de maneira intencional e o governo passou a não ter mais condições de entrar nos mercados mais sensíveis nos momentos de crise, seja por problemas de seca, quebra de safra ou ações especulativas. Bolsonaro vem fechando de forma sistemática os grandes armazéns da empresa por todo o território nacional. Com isso, os preços dos alimentos também subiram de forma exagerada e sem nenhuma capacidade de controle.

Neoliberalismo destruiu os meios de controle da inflação.

Além disso, tivemos a questão das tarifas de energia elétrica, que tiveram sua elevação autorizada pela agência reguladora do setor, a Aneel. Com a privatização que atingiu o setor em regiões importantes do país, a lógica do funcionamento desse importante serviço público passou a ser única e exclusivamente o lucro das empresas. Como o acesso à eletricidade é condição elementar de cidadania e de capacidade produtiva, os impactos dos aumentos também se generalizaram e isso tampouco ocorreu, a exemplo dos casos anteriores, por problemas associados a eventual excesso de demanda.

No entanto, apesar de todas estas evidências, o comando econômico insistiu na criminosa tese da necessidade de um arrocho monetário para segurar a inflação. Mais uma vez, vemos o negacionismo também presente e influenciando esse importante campo de políticas públicas em nosso País. Ao longo do ano passado, a Selic subiu de 2% em janeiro para 9,25% em dezembro. Esse crescimento da taxa oficial de juros, que foi quase quintuplicada em menos de 12 meses, não encontrou similaridade em nenhum outro país do mundo. De acordo com levantamento realizado pelo economista Emilio Chernavsky, a disparidade é impressionante. O Brasil teve esse aumento de 7,25% ao longo de 2021, enquanto o segundo lugar, que é ocupado pela Rússia, apresentou um crescimento de 3,25% em sua taxa oficial de juros. Na sequência, surgem República Tcheca com 2,5% e Chile e Peru com 2,25%. O restante da lista divulgada pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) apresenta países com crescimento de suas taxas a um nível inferior a 2%, nulo e mesmo negativo.

Apesar disso, os atuais responsáveis pela política econômica tupiniquim não parecem preocupados em alterar a rota do arrocho e da austeridade. Para esse pessoal vinculado ao financismo, pouco importa se os resultados daquilo que foi implementado ao longo do ano passado caminharam no sentido de reduzir o crescimento dos preços. Esqueçam a realidade; o que vale é o respeito doutrinário à austeridade a toda a prova. Nesse sentido, a leitura da ata da última reunião do Copom revela-se, a um só tempo, ilustrativa e assustadora. O colegiado indica que pretende promover mais um aumento na próxima reunião, na mesma magnitude do encontro de dezembro. O financês utiliza a imagem da “ancoragem das expectativas”, mas a verdade é que o Titanic segue à deriva, fazendo água e sem orientação de rumo para corrigir a rota.

“(…) O Copom considera que, diante do aumento de suas projeções e do risco de desancoragem das expectativas para prazos mais longos, é apropriado que o ciclo de aperto monetário avance significativamente em território contracionista. O Comitê irá perseverar em sua estratégia até que se consolide não apenas o processo de desinflação como também a ancoragem das expectativas em torno de suas metas. (…) Para a próxima reunião, o Comitê antevê outro ajuste da mesma magnitude. (…)” (GN)

Ora, o Comitê não poderia ser mais explícito em sua promessa de promover mais uma elevação da Selic de 1,5% no encontro marcado para 2 de fevereiro. Caso esse intento seja efetivamente confirmado, a taxa oficial passará para o patamar de 10,75% ao ano. Trata-se de persistir pela oitava vez consecutiva no mesmo erro, com todas as consequências trágicas para maioria da população. Enfim, estamos diante da continuidade da falácia a respeito da suposta eficiência da política monetária do arrocho.

Que Yemanjá nos proteja desse pessoal e de suas políticas criminosas!

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