A falsa democracia, mas podem chamá-la de Julgamento e Prisão de Lula

Na quarta-feira desta semana, no ônibus ao meio-dia, eu tentava ler “Como funciona a ficção”, de James Wood. E seguia anotando, aos solavancos, trechos dos quais muito discordava, como este:

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível”.

Eu me dizia: “Absurdo, será que não conhece Balzac? Será que esse cara despreza Stendhal?”

Mas de repente uma voz se levanta no ônibus e começa a mexer comigo mais que as besteiras escritas pelo crítico inglês. Era o cobrador, o profissional que no Sul e Sudeste chamam de trocador. Sentado em frente à catraca, ele falava ao motorista, mas se dirigia a todos no coletivo:

– Esse julgamento de Lula eu já sei o resultado. Só não vê quem não quer.

“Sim, o que virá disso?”, eu me perguntei. E fazia de conta que não escutava o cobrador no ônibus, enquanto o seguia, apesar da página do crítico Woods. O cobrador não deixava me perder à Flaubert. Ao seu modo, o trabalhador traduzia o “cesse tudo o que a musa antiga canta”, pois falou:

– Esse julgamento de Lula é político. Não tem nada de lei. É político.

Então eu fecho o livro, que outro valor mais alto se alevanta. E fico a balançar o queixo em sinal de aprovação às palavras lúcidas e sábias do cobrador. Ele me olha, faz que não me percebe, e continua:

– Quer ver, quer ver? Se Lula falar “não quero mais ser candidato”, pronto. Acaba o julgamento e ele vira inocente. Ligeiro.

O motorista gargalha. Um senhor à frente do cobrador, encostado à janela sorri para ele, que repete com mais ênfase:

– É um julgamento político. É tudo política.

Os passageiros permanecem em silêncio. Então um senhor ponderado, comedido, sensato, que eu pensava ser, é substituído pelo educador público. E procurando ser didático, falo:

– Esta democracia é uma farsa. (E corrijo). É falsa. É uma democracia falsa. Nós temos a democracia que a grande burguesia, os ricos, os militares deixam o povo ter. Não viu ontem o comandante do Exército? E o que o outro general falou? Se não fizerem do jeito que eles querem, vai ter derramamento de sangue. Derrubam o governo. Nas armas.

– Eu vi isso – o cobrador responde. – Eu vi.

Nessa manhã do dia do julgamento no STF, eu não podia ter lido os comentários da extrema-direita na internet do outro dia:

“General Eduardo Villas Bôas Intervenção Militar Já…. Defendam Lula, só assim a intervenção militar vem logo… Primeira coisa a ser feita, assim que a intervenção militar vier, é rasgar essa Constituição de merda feita por políticos corruptos em 1988”

Eu não havia ainda nem conhecido o vergonhoso voto da ministra Rosa Weber, que ao manifestar uma opinião afirmou que não seguia a própria opinião. Seguia a do comando militar, ela poderia ter dito. Mas no ônibus eu falava sob a guarda da previsão do cobrador. E continuo, com o máximo de didatismo, numa aula para a qual não me preparei:

– Se Lula voltar, ele para com essa reforma trabalhista. É isso o que os grandes empresários não querem. É incrível como a televisão não mostra o maior desemprego dos últimos anos no Brasil. Ela esconde que o trabalhador está se virando como pode, sem carteira assinada, vendendo churrasquinho na esquina. Então, não temos desemprego, não é? Na França, está o maior protesto contra a reforma trabalhista deles lá.

– Eu vi.

– Aí vem a comentarista da tevê e fala: “os franceses não gostam muito de reforma…”. Então nós gostamos, não é?.

– Eles querem escravos. Trabalhador ficou sem direito. Trabalha por hora – e o cobrador olha para o motorista, que apenas escuta. Os passageiros em silêncio apenas arregalam os olhos, numa expressão de quem vai falar e cala.

Sinto não ser um tribuno público, dos eloquentes, de oratória que levante a indignação popular. Eu não sou o que muito gostaria de ser. Consigo apenas rascunhar à distância, quando a memória organiza o que mal fiz. Então desço do ônibus sem o efeito desejado.

Mas ontem, quando entrei no supermercado ouvi “A triste partida” na voz de Luiz Gonzaga. Que coincidência. 

Me comoveu profundamente. Eu olhava as garrafas de vinagre por disfarce, mas nada via. Só me falava com a visão da música: “ah se o povo soubesse, ah se o povo adivinhasse o que vem”. Então o nada orador foi até o atendente no balcão de frios. Olhei de lado, só estávamos eu e ele. Eu sei a quem me dirijo, pois a maioria dos trabalhadores ali vêm do interior de Pernambuco. E lhe digo:

– Estava tocando há pouco “A triste partida” com Luiz Gonzaga. Você ouviu? É de Patativa do Assaré, um grande poeta. A letra fala do nordestino que foge da seca e não pode mais voltar pra sua terra.

“Do mundo afastado, sofrendo desprezo, Ali vive preso, Devendo ao patrão. O tempo rolando, vai dia vem dia, E aquela família Não volta mais não!..

Faz pena o nortista

Tão forte, tão bravo

Viver como escravo”

– Isso vai voltar –eu lhe digo. – Você se lembra que antes de Lula tinha saque nas feiras, quando havia seca?

– Não, não lembro não.

– É a sua pouca idade. Mas eram multidões de famintos saqueando farinha, charque, feijão, na tora. Feito gafanhoto. Isso vai voltar.

Diante do quadro pintado, o atendente nada me responde. Como alguém pode ser feliz diante do anúncio de morte da cidadania? Saí, e estava até agora sem saber sobre o que escreveria na coluna de hoje.

Agora, infelizmente sei. Depois da pegadinha de Sergio Moro, que decretou a buscada prisão sem esperar os recursos de uma sentença arbitrária, sei até o título da coluna. É “Falsa democracia”, mas podem chamá-la de “Julgamento e Prisão de Lula”.

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