A febre do rato e a exibição na Netflix

O filme “A febre do rato”, de Cláudio Assis, o streaming de filmes na Netflix e a obra “O lago de lágrimas”, de Tomotaka Tasaka

Cena do filme "A febre do rato"

Quem hoje ainda gosta de ir ao cinema, tenho a impressão de que pode começar a se despedir desse alegre hábito, porque cinema a partir da pós-pandemia será mesmo uma atividade exclusiva de solitários. Ou então de pessoas que ainda têm amigos e combinam com eles para assistirem cada um em seus aposentos filmes em horas combinadas. De repente, fazem uma parada, conversam um pouquinho, comem uma pipoca ou tomam um gole. E ficam felizes.

Me informaram que o “streaming” é o grande sistema hoje de exibição cinematográfica, e, por isso, é que já encontramos bons filmes brasileiros na Netflix, como é o caso de “A febre do rato”, que revi ontem no meu horário predileto. Madrugada.

Como será que o público da Netflix está se aproximando desse filme do Cláudio Assis? Quantos espectadores que gostam do cinema de arte estão se aproximando dele? E quantos que são atraídos pelo erótico existente em “A febre do rato”? Certamente que estes devem se decepcionar, pois não é mesmo o erotismo fácil que vamos encontrar nesse trabalho e em nenhum outro do cineasta Cláudio Assis.

Não tenho nenhuma atração especial por esse filme, mas quando o vi anunciado na Netflix, ganhei nova curiosidade, principalmente pelo fato de que estar um filme em exibição na Netflix lhe dá uma conotação especial. Porém um amigo me avisou que as empresas de exibição através do “streaming” estão atingindo um novo patamar. E elas assim estão atraindo novos públicos dentro dos possíveis espectadores. De qualquer maneira, os burgueses ou os não tão burgueses, mas intelectuais, que estão aí como espectadores do que existe no mundo, já sabem que as telas são cada vez mais especiais e também domésticas. E a arte visual cinema ou outros tipos que utilizam a imagem fazem parte do mercado e só sobrevivem aqueles mais ligados ao Pop, como já estudou o filósofo alemão Adorno.

No filme, um aspecto que causa impacto principal ao espectador é, assim, a própria imagem que temos do Recife, que fica pelas beiras do rio Capibaribe e nas alturas do bairro Coelhos e por ali. Gostaria de saber como espectadores que nunca conheceram o Recife se emocionam com aqueles casebres de madeira na beira do rio. Um lado inteiramente miserável do Recife e que o fotógrafo paraibano Walter Carvalho consegue que surja para ser visto como algo de grande beleza. Das piores entranhas dessa cidade e sem ser realmente parte dela, ele, Walter Carvalho, atinge a construção de uma obra de arte bela. Pois certamente Cláudio Assis não teria como criar esse filme se não contasse com a extraordinária plasticidade que foi atingida pela fotografia de Walter Carvalho.

Cena do filme “A febre do rato”

Também foi fundamental o roteiro estruturado pelo Hilton Lacerda, e que foi jogando uma espécie de literalidade como se a imagem fosse principalmente marcada pela letra, pela literatura presente. A poesia não é só o poema. Ela se torna grandemente presente através de um jornal alternativo chamado “A febre do rato”, ou principalmente da própria poesia que é dita pelo personagem Zizo, vivido pelo excelente ator Irandhir Santos.

Também a partir do roteiro de Hilton Lacerda, mas particularmente pela mão de Cláudio Assis temos a presença do feminismo de grande força na figura dessa jovem atriz Nanda Costa, que desenvolve uma personagem fresca, ágil e também sutil, mostrando a força da mulher, a força que o feminino pode exercer mesmo nesse sistema de vida quase inconcebível.

Verdade que Cláudio Assis é um artista que trabalha quase num espontaneísmo tanto no aspecto técnico quanto estético. Mas ele tem uma grande força emocional dentro de si e assim trabalha com essa força sem precisar de tentar erudição. Ele vai sempre ao fundo da força de criação, mesmo quando necessita de erudição. Como nesse filme “A febre do rato”, onde ele junta vida miserável, vida pobre e criação literária sem dúvida com o que lhe deu a Universidade quando estudava mesmo sem ligar muito para a Economia. Não era poesia que ele estudava rigorosamente. Mas foi o que ele aprendeu.

Um aspecto que ainda me surge nesse “A febre do rato” é que os intérpretes, por sugestão claro que do próprio Assis, não realmente interpretam, mas vivem cada cena. Quem se masturba realmente se masturba. Quem trepa realmente trepa. Quem tira a roupa na rua realmente sofre a ação real da polícia. Seria esse filme um documentário?

Olinda, 27.07. 2021

O lago de lágrimas

Cena do filme “O lago de lágrimas”

O diretor desse filme “Umi no koto” – Lake of tears – , o cineasta Tomotaka Tasaka, sabemos que não está entre os grandes diretores japoneses. E pensamos isso no sentido da fama conseguida. Por exemplo, esse filme poderia ter sido exibido nos anos 60, no Recife, mas não me lembro que tenha sido. Entretanto, quando assisti ao filme hoje, a minha primeira impressão é que foi uma obra expressiva muito boa, como uma espécie de tragédia romântica. Claro que a exibição no computador tem grandes deficiências de imagem e prejudica a visão do ponto de vista além de técnico estético.

É um filme que dependeu muito da beleza da atriz Yoshiko Sakuma, que está aí no seu segundo papel como personagem principal. O filme não teria a dimensão dramática para o espectador se não contasse com a verdade da imagem da atriz como capaz de ser apaixonada por um jovem e por um velho mesmo, um Mestre de música.

Do ponto de vista de sua construção cinematográfica, tem todo o jogo de linguagem de uma produção que segue os padrões tanto dos anos 60 quanto, expressamente, da cultura japonesa. A tragédia em si é shakespeariana, mas o arcabouço cênico é extremamente com características nipônicas. E é interessante notar como o comportamento da jovem se define dentro da questão feminista dos anos 60, mas seguramente apenas deixando que a ação da personagem se firmasse.

Eu não tenho conhecimento acerca da música de autoria japonesa para analisar todo o roteiro musical, mas sei e sinto como justamente aí está uma grande força estética da obra. Inclusive a música tem uma total presença, pois um dos três personagens centrais é um Mestre de música. E a música, expressamente, canções não só sublinham várias sequências, mas se apresentam como momentos fundamentais do filme. A jovem é trabalhadora da indústria da seda e vai ser aprendiz de música. E a moça utiliza as cordas do seu instrumento para tirar a própria vida.

O cineasta Tomotaka Tasaka nasceu em Hiroshima, e ocorreu ser uma vítima da bomba. E começou a fazer filmes em Kioto. Pelo que pudemos ler acerca dos seus outros filmes, fez um cinema sempre de bom nível como obra popular. E muitas vezes nesses não tão famosos artistas encontramos mais forte a presença da forma de ser nipônico. É um filme de 2h10m de duração, mas não mostra uma linguagem excessiva. É sempre enxuto no narrar, pois sabe muito bem como aproveitar os fatos concretos, mesmo trabalhando com uma tragédia romântica.

Está em exibição no portal Making Off.

Olinda, 02.08. 2021

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