“A Hora da Estrela”

A hora certa, uma curiosidade, a vinheta, a hora certa de novo, e assim por diante, sem músicas nem notícias. E Macabéa, vinda das entranhas do Brasil para a cidade grande, parecia também uma curiosidade

Filme "A Hora da Estrela"

“23 horas, 10 minutos, zero segundo. Você sabia que a mosca é um dos insetos mais ligeiros e que, se pudesse voar em linha reta, levaria 28 dias para atravessar o mundo todo? Você sabia? Rádio Relógio. 23 horas, 1 minuto, zero segundo…” Essa era uma das horas da estrela Macabéa, fã da antiga “Rádio Relógio” do Rio de Janeiro. A hora certa, uma curiosidade, a vinheta, a hora certa de novo, e assim por diante, sem músicas nem notícias. E Macabéa, vinda das entranhas do Brasil para a cidade grande, parecia também uma curiosidade.

Assim também começa o filme, de 1985, dirigido por Suzana Amaral, inspirado no livro homônimo de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”. Falar dele e da personagem Macabéa, interpretada pela notável paraibana Marcélia Cartaxo, está para mim entre os grandes desafios do que venho escrevendo neste último período, em que descobri ainda mais o prazer de fruir e refletir sobre cinema. E sobre uma filmografia em que mulheres são protagonistas nas mais diversas esferas da vida – pessoal, familiar, amorosa, profissional, educacional, política.

“A Hora da Estrela” é o último livro publicado em vida de Clarice Lispector, em 1977 (há um póstumo chamado “Um sopro de vida”). Li o livro e assisti ao filme. Clarice, uma das maiores escritoras brasileiras, nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 e chegou ao Brasil com a família em março de 1922. Sempre se identificou como brasileira, embora tenha sido considerada uma estranha, uma estrangeira, residindo na obra em revista o sentimento de estranhamento, de não fazer parte do meio, uma inquietude, o desespero constante na personagem com uma rotina inescapável, uma dor surda, a busca de sentido para a vida. Drumond (2010) destaca que: “a Hora da Estrela foi deixada por Lispector como prova do salto que fez de sua inflexão intimista para a leitura desafiadora da realidade” e Cordeiro (2017), afirma que, “Depois de ‘A Hora da Estrela’, Clarice retira-se de cena, como que num gesto de desistência de tentar entender-se, de tentar entender a vida e sua dor, cessa sua busca desesperada de seu eu.”

A produção foi o primeiro longa-metragem de Suzana Amaral (1932-2020), que em novembro de 2015 passou a constar na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Suzana, que já havia realizado vários pequenos trabalhos, dirigiu esse longa quando estava com 50 anos de idade; ela faleceu em 2020, aos 88 anos de idade.

Suzana Amaral I Foto: Jornal da USP

A atriz Marcela de Souza Cartaxo, natural de Cajazeiras (PB), foi descoberta por Suzana Amaral em meio a grupos experimentais de teatro do Nordeste. A atuação no papel de Macabéa lhe rendeu diversos prêmios, como o Urso de Prata do Festival de Berlim (primeira brasileira a ganhá-lo). Protagonizar filme tão envolvente propiciou a Marcela uma primeira consagração e passaporte ao mundo da arte.

Macabéa, personagem central, vive uma existência insignificante e miserável, órfã de pai e mãe, criada por uma tia, que a maltratava e que veio também a falecer. A jovem vai para o Rio de Janeiro, morando em uma pensão, dividindo o quarto com mais três moças. Consegue um emprego de datilógrafa em um pequeno escritório, com salário baixo (que segundo o encarregado do setor, ela foi a única que aceitou trabalhar por aquele salário). Nessa firma, trabalham ainda o seu chefe, o dono da firma e Glória (Tamara Taxman), uma carioca, bonita, expansiva, colecionadora de namorados. O oposto de Macabéa, que é tímida, desairosa, solitária, mal nutrida, pois sua habitual refeição era pão com salsicha e coca-cola, segundo ela, o mais barato e de seu gosto.

A valorização do corpo, da estética, é um acento nesse filme, uma vez que Glória, mesmo na vestimenta, destoa de Macabéa, e utiliza seus recursos para ganhar o coração dos homens, inclusive o de Olímpico de Jesus (José Dumont), único namorado de Macabéa. Olímpico, nordestino, trabalha como operário, é ignorante e rude com a namorada, responde com brutalidade às perguntas ingênuas feitas por ela, a partir da audição das “curiosidades” da Rádio Relógio.

A emissora carioca, fundada em 1956, que funcionava nos 580 Khz, é o passatempo de Macabéa, parece ser sua única companhia. Locutores (a moça que dizia a hora era Íris Lettieri) e solitária ouvinte acumpliciavam-se nos arrastados minutos e Macabéa, depois, ia entreter autênticos monólogos com o namorado, uma vez que ela faz perguntas a Olímpico, que, não querendo aparentar ignorância, replica de modo ríspido. Curiosa e não satisfeita com as respostas vazias de Olímpico, ela sofre uma repreensão em uma cena no metrô, ao inquirir a ele sobre o que é “eugebra” (álgebra) – o áspero namorado, obviamente, não sabe, diz que é coisa de fresco, de viado, que fresco é palavrão e não é coisa de moça direita. Inculto e grosseiro, o operário sonha em ascender socialmente até tornar-se deputado, fazendo discursos nas praças e impressionando Macabéa.

Cena do filme “A Hora da Estrela”

O único carinho real que Macabéa recebe é da cartomante Madame Carlota (Fernanda Montenegro), que lhe vaticina uma possibilidade de amor e felicidade, ainda tecendo elogios e palavras de afeto. É o único momento do filme em que Macabéa sorri, mostrando uma esperança nunca antes expressa. A Macabéa da inocência invencível parece outra.

Os minutos passam, insossos, pela Rádio Relógio, aproximando-se insensivelmente da hora da estrela. “São zero hora, zero minutos, zero segundos. Você sabia…”

Drumond (2010) perscruta: “são milhares de Macabéas, forjadas numa saga que alia trabalho, pobreza, família, sexualidade, tempo; num movimento de produção e reprodução de vidas que se insurgem, mesmo que maneira anônima, à imposição do mando de um tempo controlado, vigiado, disciplinador?”

  • “A Hora da Estrela”
  • Data de lançamento: 1985 (Brasil)
  • Direção: Suzana Amaral
  • História: Baseado no romance homônimo, de Clarice Lispector
  • Género: Drama

Referências

  • CORDEIRO, Gleyda. A representação feminina em A Hora da Estrela: uma análise comparativa das obras fílmica e Literária. https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522197573.pdf
  • DRUMOND, Nagyla. A saga de Macabéa continua: trabalho feminino, gênero e uso do tempo entre as “novas” operárias no interior do Ceará/ Brasil http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278284591_ARQUIVO_FazendoGenero9-texto.pdf

  • A hora da Estrela. https://www.youtube.com/watch?v=MBxAMJvSip0

    https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/
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