“A Luz no Fim do Mundo”: Metáforas sobre a mulher
Em drama sobre a preservação da espécie humana, cineasta estadunidense Casey Affleck discute o duplo papel da mulher
Publicado 05/11/2019 12:28
Desde os primórdios da humanidade, o papel da mulher reveste-se de dogmas, moral e criacionismo. Inclusive por centrar em Eva o princípio da povoação da Terra. Não é de estranhar que o cineasta estadunidense Casey Affleck (12/081975) use a metáfora de Noé e sua arca cheia de animais para matizar a preservação das espécies e inclusive do ser humano. Neste “A Luz no Fim do Mundo”, ele centra sua narrativa na luta do pai para proteger a filha da ira dos homens.
Affleck deixa a cargo do espectador entender esta paranoia. Muito mais quando o pai (Casey Affleck) e a filha Rag (Anna Pniowsky) trocam ideias sobre como Noé orientou os animais até eles se acomodarem na gigantesca arca. Experiente, ele busca dar-lhe noção do que representou salvar centenas deles, sem entrar na questão puramente religiosa ou simplesmente bíblica. E ela demonstra estar atenta ao que representou Noé ter tomado aquela atitude. Ali está o motivo da sobrevivência dos animais como espécie durante a construção da humanidade.
Deste modo, Affleck traça um paralelo entre Noé e a garota Rag de 12 anos. Enquanto ele preservou as espécies então existentes nos primórdios da sociedade, Rag (Anna Pniowsky) é seu espelho. Não só por estar imune à contaminação como ser a única a garantir a sobrevivência dos seres humanos como espécie. Os aterrorizados homens das cidades e do campo e os que trafegam pelas rodovias nem atentam à simbologia de tê-la em suas proximidades e os motivos de ela ter sobrevivido.
Menção à mulher leva à perseguição
Toda a culpa de a pandemia ter-se espalhado rapidamente pelo Planeta em dez anos foi atribuída às mulheres de todos os continentes. Tanto elas quanto os homens foram contaminados e não resistiram. Nem a mãe de Rag (Elisabeth Moos) escapa. A filha é a única mulher a sobreviver na Terra. Nem ela ou o pai conseguem viver sossegados, são perseguidos por seus caçadores país afora. Daí o temor de serem trucidados para que as imposições dos dogmáticos homens terminem se impondo.
Qualquer menção à presença feminina desencadeia a paranoia dos homens da cidade e do campo. E pai e filha têm de escapulir para a floresta onde enfrentam os mesmos que perseguem mulheres para eliminá-las. Numa emblemática sequência os quatro homens que vivem num sobrado distante da cidade entram em pânico ao ver o pai. Logo o enchem de perguntas por acharem haver alguma mulher com ele. Temem que a peste, nela configurada, possa levá-los ao cemitério.
Como diretor e roteirista, Affleck constrói personagens multifacetados e ligados ao que ocorre ao seu redor. O pai se esforça para transformar a fuga com a filha no rito de passagem dela. E aproveita cada momento, mesmo na floresta sob chuva, para expor-lhe como enfrentar seus perseguidores. Ela se torna, assim, capaz de identificar os mínimos movimentos deles. Chega ao ponto de se defender sozinha e até o pai, como na sequência que enfrentam os quatro do sobrado, se surpreende.
Pai discute ética e moral com Rag
O mais interessante nestas conversas entre pai e filha é ele a levá-la à reflexão sobre ética e moral na sociedade capitalista. Principalmente ao diferenciar uma e outra para Rag se situar e não cometer os mesmos erros. E ela se mostra capaz de saber onde estão seus limites e as razões dos outros seres humanos. E ele ainda lhe ensina a se defender durante o confronto pela sobrevivência em situação limite, igual à que usa a arma para escapar da eliminação por ser mulher marcada para morrer.
Com estas configurações de Rag enquanto mulher em amadurecimento, Affleck se põe a desmontar os mitos sobre as suas vulnerabilidades. Não só dela, as fragilidades femininas podem advir das construções machistas, dogmas religiosos e imposições das forças conservadoras que exigem delas seguir a moral e a ética das classes dominantes. Em suas orientações, o pai prepara-a para defender a si própria e ela vai evoluindo. O mesmo pode ocorrer com todas as jovens quando preparadas.
Diferente da maioria dos cineastas/roteiristas em seus primeiros filmes, Affleck procura escapar das complicadas estruturações dramático-narrativas. Neste “A Luz no Fim do Mundo” prefere conduzir sua narrativa num contínuo, ao eliminar as sub-tramas e desenvolver o leitmotiv, fato motivador da ação, sem precisar de ações paralelas. Isto termina por levar o espectador a construir em sua mente as motivações dos complexos personagens de sua história através de imagens.
Rag é a única a se salvar da pandemia
Ainda assim seu filme tem como tema central a luta do pai para proteger a filha Rag dos ataques dos homens prestes a extinguir a espécie humana. Seu subtema é o significado da Arca de Noé para a sobrevivência do ser humano. Contudo, Rag resiste aos dogmas ao se tornar a única a fazê-lo sobreviver em meio à pandemia. Uma forma de Affleck tratar a mulher não como estereótipo, mas como agente de transformação político-social. E mais: numa sociedade de classes que a estigmatiza.
Mesmo com esta mescla de personagens bíblicos e ficcionais, Affleck não deixa de utilizar as técnicas de filme de ação em “A Luz no Fim do Mundo”. É que se vê nas sequências de estrada quando Rag e o pai estão prestes a serem presos. Enquanto o confronto decorre das perseguições na intrincada floresta sob chuva para se livrarem dos homens que os caçam feito animais. E a violência dita as regras da sobrevivência sem qualquer temor de a morte do inimigo ser preferível à ética.
Desfecho do filme estimula reflexão
O espectador termina por ficar diante da tela a alternar sequências de filmes policiais, aventura, thriller e, porque não, drama. Ainda assim, o desfecho estimula sua reflexão sobre o papel da mulher na sociedade no Terceiro Milênio. Rag, fruto do que ainda se chama democracia burguesa, demonstra aprender rápido sobre como sobreviver sob a constante ameaça de ser marginalizada apenas pelo fato de ser mulher. Não é fácil!
“A Luz no fim do mundo”. (“Light of my life”).EUA. Drama, aventura, policial. 2019. 119 minutos. Ficha técnica: Trilha sonora: Daniel Hart. Montagem: Christopher Tellefsem. Fotografia: Adam Arkapaw. Direção/roteiro: Casey Affleck. Elenco: Casey Affleck, Anna Pniowsky. Elizabeth Moss.