A polêmica dos R$ 325 bi

O discurso do “não temos recursos” caiu por terra há muito tempo. Ao contrário do mantra propagado pelo financismo, o dinheiro existe e está disponível para ser utilizado em programas de governo.

Fotomontagem: PT

A realização da reunião de agosto do Conselho Monetário Nacional (CMN) era aguardada com uma certa expectativa por aqueles que costumam acompanhar a evolução das decisões relativas às políticas monetária e fiscal do governo. Na verdade, atualmente esse tipo de encontro não guarda nem mesmo a possibilidade de revelação de alguma diferença existente entre as diferentes áreas do comando da economia. Mas a conjuntura está complexa e a chapa de Paulo Guedes está cada vez mais quente, o que serve para aguçar as curiosidades e as especulações em torno de cada nova definição na área.

Até o final de 2018, a composição das três cadeiras CMN previa a seguinte distribuição: i) Ministro da Fazenda; ii) Ministro do Planejamento; e, iii) Presidente do Banco Central (BC). Apesar da costumeira subordinação do BC à pasta da Fazenda, sempre pairava no ar uma possibilidade de tensão com relação ao Planejamento. Afinal, esse último mantinha a estratégica Secretaria de Orçamento Federal sob a sua tutela, ao passo que o primeiro controlava a Secretaria do Tesouro Nacional. Por sua própria natureza, uma se volta mais a gastar, enquanto a outra tem por tendência o corte no dispêndio. É compreensível que as “reuniões’ só acontecessem quando tudo já estivesse costurado e acertado previamente nos gabinetes, mas o jogo de especulações prévias sempre corria solto.

Com a chegada de Bolsonaro ao Planalto, tudo muda de figura. A impressionante concentração de poderes na figura de Paulo Guedes foi a senha encontrada pelo então candidato para se assegurar do apoio do financismo durante a sua campanha presidencial. O superministro da economia conseguiu a incrível façanha de chefiar um monstrengão derivado da fusão de 4 poderosas pastas: Fazenda, Indústria e Comércio, Planejamento e Trabalho. Assim, o jogo no CMN passa ser mais caseiro: Guedes representa o Ministério da Economia e tem a seu lado um subordinado da Secretaria Especial da Fazenda, além do representante do BC.

CMN: jogo de cena

Durante os preparativos desta última reunião ocorrida no dia 27, revelou-se de forma cristalina a disputa de poder no interior da própria economia. O BC tinha acumulado contabilmente ganhos extraordinariamente bilionários em sua gestão da política cambial. Com a desvalorização do real frente ao dólar ocorrida ao longo dos últimos meses, o balanço da autoridade monetária passou a apresentar um ganho de R$ 478 bilhões em razão do aumento correspondente do valor das reservas internacionais do Brasil, cuja gestão está sob sua alçada. Com isso, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) se viu no direito de solicitar a transferência desse ganho extraordinário para auxiliar na gestão das contas do governo federal sob sua responsabilidade.

Ora, como era de se esperar, essa disputa de bastidores durou algumas semanas. O discurso duro em prol da manutenção da austeridade a qualquer custo de Paulo Guedes não admitia abrir nenhuma brecha que pudesse oferecer a ideia de relaxamento no controle de gastos. Mas a situação política – e mesmo econômica – pressiona pela flexibilização do teto de gastos imposto pela EC 95, até mesmo no interior da própria equipe ministerial. O recente pito público de Bolsonaro no superministro, a indefinição do que fazer para a viabilização do programa Renda Brasil e a colcha de retalhos improvisada em que se converteu a versão provisória/definitiva da Lei do Orçamento Anual são o pano de fundo dessa questão. 

A solução de compromisso adotada no voto do CMN aponta para a autorização de um valor 30% menor do que o solicitado pela STN (de imediato a transferência contábil foi de apenas R$ 325 bi) e a proibição de que essa quantia seja utilizada para despesas correntes. Com isso, permanece a lógica da prioridade concedida por esse governo – assim como por todos os outros que o precederam – ao cumprimento das despesas financeiras. O compromisso assumido perante o sistema financeiro é sagrado e não pode ser alterado sob o risco de se caracterizar como “quebra de contrato” – uma verdadeira heresia, na cabeça desse pessoal do financismo. Já as demais rubricas não financeiras, como as de saúde, assistência social, educação, previdência social, saneamento, investimentos e salários do funcionalismo, bom esses são gastos que podem e devem ser reduzidos a qualquer canetada. Afinal, tudo é uma questão de saber quais são as prioridades do governo de plantão.

R$ 325 bi para juros ou R$ 600 até o fim da pandemia?

Em meio ao aprofundamento generalizado das condições econômicas e sociais da maioria da população, Paulo Guedes continua só pensando naquilo: como reduzir gastos públicos. Uma loucura! Está mais do que demonstrado que os efeitos nefastos trazidos pela crise da pandemia só podem ser combatidos com o aumento das despesas governamentais. Na verdade, o old chicago boy está sendo derrotado pela realidade e pela pressão de outros integrantes da equipe de Bolsonaro nesse quesito. O núcleo duro da economia tenta resistir em seu apego ensandecido à cartilha da austeridade extremada, mas o fato é que o Palácio do Planalto está começando a pegar gosto por inaugurar obras de programas governamentais maquiados, com os olhos voltados para a reeleição de 2022.

O exemplo mais cristalino de tal tensão pode ser confirmado na trajetória do debate e implementação do auxílio emergencial. No início de tudo, o governo pretendia que fossem apenas 2 parcelas de R$ 200. Ridículo ou absurdo? Porém, ainda em março por iniciativa da oposição, o Congresso Nacional multiplicou o valor para R$ 600 e ampliou o prazo de vigência da medida para 3 meses. Em seguida, o prazo foi estendido em mais 2 meses. Por isso, é relevante o debate agora a respeito de nova prorrogação a partir de setembro. E Paulo Guedes volta a insistir em sua perspectiva reducionista. Aponta para apenas mais 4 pagamentos de R$ 300. Aguardemos qual será a solução definitiva a ser adotada pelo parlamento. Com certeza a proximidade das eleições municipais deverá pesar na hora da votação da medida. A oposição, que foi a principal responsável pela ampliação no primeiro trimestre, não abandona sua palavra de ordem para o momento atual: R$ 600 até o fim da pandemia!

O discurso do “não temos recursos” caiu por terra há muito tempo. Essa autorização de transferência dos R$ 325 bi entre BC e STN é a mais pura expressão de tal falácia. Ao contrário do mantra propagado pelo financismo, o dinheiro existe e está disponível para ser utilizado em programas de governo. A polêmica não se dá em torno da existência ou não dos recursos, mas sim em torno de qual o tipo de uso que vai ser feito do mesmo. Paulo Guedes prefere que o valor seja completamente destinado ao pagamento de juros da dívida pública – a tal da prioridade da despesa financeira sobre as demais. E assim foi feito com o voto na reunião do CMN.

Conta única: queda de R$ de 1,4 tri para R$ 1 tri

Ocorre que a coisa é bem mais complexa do que a recomenda a cartilha da ortodoxia, esse conjunto de dogmas que orienta a ação do superministro e a parte da sua turma que ainda permanece lá nos gabinetes da economia. O governo federal sempre teve – e ainda tem – à sua disposição um valor considerável de recursos para dispêndios necessários. Trata-se da famosa “Conta Única do Tesouro Nacional” junto ao BC. No auge do discurso em prol de uma austeridade fiscal ainda mais arrochada, por exemplo, o saldo em 31 de dezembro de 2019 exibia nada mais nada menos do que R$ 1,4 trilhão. E Guedes insistia no discurso negacionista do “não temos dinheiro”, tudo isso ainda antes da explosão da crise da covid 19.

Pois o último balancete divulgado pelo BC a esse respeito nos apresenta um saldo bem menor. Em 30 de junho de 2020, o valor da conta caiu para pouco menos de um trilhão, exatamente R$ 997 bi. Ora, o mesmo governo que passou o primeiro semestre todo bradando que não podia gastar, fez exatamente o contrário do que sempre pregou. Ao longo de 6 meses, entre outros instrumentos usados para a política fiscal, a equipe de Guedes promoveu aquilo que ele chamaria de “gastança” em outros tempos: foram R$ 440 bi às custas da Conta Única. E não podia ser diferente, aliás. Para atravessar o período da pandemia, as despesas governamentais precisam mesmo serem aumentadas. E como as receitas tributárias caem com a maior recessão que o Brasil já enfrentou em sua História, o déficit nas contas públicas cresce mesmo. Já há previsões de que ele pode se aproximar a R$ 1 trilhão ao longo desse ano.

É uma realidade difícil, mas não temos como escapar da mesma. Assim, ao invés de lançar falsas polêmicas a respeito de como gastar o recurso que dizia não existir até anteontem, o governo deveria assumir que errou desde o início e que o caminho da austeridade cega e burra não oferece nenhuma perspectiva de superação da crise. Em primeiro lugar, é preciso deixar de lado essa prioridade absoluta à destinação financeira do gasto. Em segundo lugar, é necessário abandonar o discurso hipócrita da “responsabilidade fiscal” fora de contexto e revogar urgentemente a EC 95.

Já essas transferências contábeis entre BC e STN não mudam absolutamente nada na essência da política econômica. Na verdade, trata-se de uma falsa polêmica. Ambas são instituições subordinadas ao Ministério da Economia, ambas operam com recursos do governo federal. Assim, basta que seja sinalizado para o conjunto da sociedade – e de forma transparente – o que se pretende fazer com o dinheiro que existe. Afinal, não faz sentido continuar sacrificando o gasto social para que os recursos sejam direcionados apenas para o pagamento de juros da dívida pública. No entanto, como passou a vida criticando de forma irresponsável qualquer tipo de uso de recurso público, Guedes está preso agora na própria armadilha do que ele mesmo sempre criou para condenar quem estivesse à frente desse tipo de decisão de governo. Por mais uma dessas ironias da História, ele agora está protagonizando algo que antes acusava de ser a tal da “pedalada fiscal”.

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