A presença que hoje somos

Quando lhe foi perguntado se seria de direita ou de esquerda, o médico explica-se através de uma metáfora: na esquerda, está o coração, sede da emoção e da generosidade (pode conter spoiler)

Filme "A ausência que seremos" I Foto: Divulgação

Iniciamos 2022 com a mensagem impactante, emocionante, do filme “A Ausência Que Seremos”, dirigido pelo espanhol Fernando Trueba, acessível no streaming da Netflix. A história baseia-se no livro de mesmo nome escrito pelo filho do médico colombiano Héctor Abad Cámara (interpretado por Javier Cámara). O cenário é a cidade colombiana de Medellin, entre 1971 e 1987.

O médico sanitarista, militante dos direitos humanos e atuante na União Patriótica (uma frente ampla), não era somente um ativista político e social. Foi também pai exemplar. O filme mostra encontros (mais) e desencontros (poucos) entre ele e o único filho ao lado de cinco irmãs. Assim, a película nos envolve tanto pela mostra do ambiente familiar como pela atuação do profissional médico, que se indigna com o descaso de autoridades com as populações vulnerabilizadas nas favelas, suas batalhas para que se faça saneamento básico e se atenda as necessidades mínimas desse povo, explorado e fragilizado em seus direitos mais elementares como a alimentação a saúde incluindo doenças preveníveis. Em suma, um médico notável defensor da justiça social e lutador contra as imensas desigualdades da Colômbia.

É cativante a demonstração de amor, paciência, ensinamentos e trocas que o médico estabelece no cotidiano familiar, em especial com o filho pré-adolescente (no  começo do filme), mais tarde o jornalista e escritor Héctor Abad Faciolince (Nicolás Reyes Canor). Mas, ao longo da história ocorre uma tragédia na família, cujas cenas transcorrem sobre a trilha da música dos Rolling Stones “Ruby Tuesday”.

Filme “A ausência que seremos” I Foto: Divulgação

O médico Héctor, intransigente defensor da saúde pública, respeitado pela comunidade acadêmica, visita favelas de Medellín, acompanhado de seus alunos e muitas vezes leva o único filho. Em suas caminhadas pelas vielas da comunidade abandonada pelo governo, analisa a água podre do lugar, avalia a saúde precária das pessoas, todas flageladas por fome, a diarreia, as barrigas grandes (por falta de proteína), os corpinhos esqueléticos das crianças desnutridas largadas nas camas das enfermarias, agonizando à espera do fim.

Sabe-se que a Colômbia, como poucos países da América Latina, não atravessou uma ditadura militar que retirasse liberdades, torturasse e matasse diversas pessoas, militantes ou não de organizações políticas. Na Colômbia grupos paramilitares de extrema-direita são os responsáveis pela maior parte das violações de direitos humanos resultantes de conflito armado.  De acordo com vários grupos de direitos humanos internacionais e organizações não-governamentais, os grupos paramilitares de direita têm sido responsáveis por pelo menos 70 a 80% dos assassinatos políticos na Colômbia por ano. Segundo a Wikipedia, as demais mortes foram cometidas por guerrilheiros de esquerda (Farc) e forças do governo. Esses grupos paramilitares controlam a maior parte do narcotráfico de cocaína e outros alucinógenos em conjunto com os principais cartéis de drogas colombianos. Esse mesmo site destaca que os primeiros grupos paramilitares foram organizados pelos militares colombianos seguindo as recomendações feitas por conselheiros militares de contra-insurgência estadunidenses, enviados para a Colômbia durante a Guerra Fria para combater a militância de esquerda, armada ou não.

Segundo o pesquisador Marcelo Santos, para se compreender a história da política exterior colombiana, é necessário admitir que, em grande parte do tempo, ela esteve permeada por intervenções dos EUA. Ele destaca em seu artigo (1) que a doutrina Respice Polum orientava o país a um alinhamento incondicional às diretrizes dos EUA em matéria de política externa. Evidencia que essa política teve início no governo de Marco Fidel Suarez (1918-1922) e predominou na diplomacia colombiana ao longo do século XX. No período 1949-1974 o Brasil se destacava nessa questão. Segundo Santos, no pós-Segunda Guerra, a Colômbia foi grande receptora de recursos econômicos dos EUA. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, a essência da Respice Polum continuou orientando várias gestões na Colômbia.

Charge sobre a política “Respice Polum” I Ilustração: Reprodução

O médico Héctor Abad Gómez foi assassinado no dia 25 de agosto de 1987 justamente quando o acordo Respice Polum estava em pleno vigor. Foi vítima de uma emboscada, logo após participar de uma entrevista coletiva onde se posicionou sobre suas convicções políticas. Quando lhe foi perguntado se seria de direita ou de esquerda, o médico explica-se através de uma metáfora: na esquerda, está o coração, sede da emoção e da generosidade; no centro, o cérebro, sede da racionalidade; na direita, o fígado e a vesícula biliar, sedes da produção e do depósito da bílis (fel), que desde Hipócrates representaria a raiva, o ódio.

O desfecho do filme lembra muito o final da produção de Gianfrancesco Guarnieri (primeiro peça teatral, depois levada ao cinema) “Eles não usam black-tie”. No filme brasileiro, dos anos 80, o encerramento mostra uma enorme passeata em São Paulo, em protesto contra o assassinato, num piquete de greve, do personagem que alude à morte real, no DOI-Codi da ditadura, do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976).  Aliás, no final desse mesmo ano, a repressão militar chacinaria, também em São Paulo (bairro da Lapa), os dirigentes do PC do Brasil Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Em “Ausência que Seremos”, também há uma passeata popular protestando contra a morte do médico, pedindo justiça e punição dos crimes das milícias colombianas. Ao ver a passeata, a câmera focando no rosto do filho Hector, subentende-se que ele, antes cético e relutante, subitamente toma consciência da necessidade da luta política.

O filme mostra ainda, em off, uma fala do médico (na verdade, um trecho  de poema de Borges) sobre “el olvido que seremos” (nome original do filme), que no Brasil ganhou título aproximado. Mas o correto seria “O esquecimento que seremos”, pois o médico na verdade se entristece por saber que futuras gerações podem não saber nunca, ou então olvidar-se, quem teriam sido militantes como ele e tantos outros que lutaram por justiça social. Idem, idem no Brasil, onde sempre precisamos trabalhar para que nossa história não se apague. Pois, com isto, a chama da luta por mudanças a favor do povo sempre se reacenderá.

“Não há tempo a perder, eu a ouvi dizer
Agarre seus sonhos antes que eles escapulam
Morrendo o tempo todo
Perca seus sonhos
E perderá sua cabeça
Nada gentil a vida, né?”

(Trecho da música “Ruby Tuesday”, dos Rolling Stones, composta por Mick Jagger e Keith Richards, disco de 1967, tocada e cantada no filme por uma das filhas do médico)

A ausência que seremos (“El olvido que seremos”)
País: Colômbia
Ano: 2020
Gênero: Drama
Elenco: Javier Cámara, Juan Pablo Urrego, Patricia Tamayo
Duração: 02h16min

Disponível na Netflix


Referências

(1) Passado e presente nas relações Colômbia-Estados Unidos: a estratégia de internacionalização do conflito armado colombiano e as diretrizes da política externa norte-americana. https://www.scielo.br/j/rbpi/a/KBsJ58cBRfKRF8kjgBpGJvf/?lang=pt#

SANTOS, Marcelo. Passado e presente nas relações Colômbia-Estados Unidos: a estratégia de internacionalização do conflito armado colombiano e as diretrizes da política externa norte-americana. https://www.scielo.br/j/rbpi/a/KBsJ58cBRfKRF8kjgBpGJvf/?lang=pt#

https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9ctor_Abad_G%C3%B3mez

https://vertentesdocinema.com/a-ausencia-que-seremos/

https://www.hectorabad.com/a-ausencia-que-seremos/

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