A questão camponesa na China: uma “nova Era”

No plano de revitalização da China, as políticas para as áreas rurais se adaptaram às necessidades básicas do povo e do país

Agricultura da primavera em Haikou, sul da China | Foto: Pu Xiaoxu/Xinhua

Na terça-feira (2), a convite do pesquisador Edelson Parnov e do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense (CEA/UFF), apresentei o trabalho em conferência por vídeo que agora compartilho transcrito nesta coluna. As publicações neste espaço são destinadas normalmente aos estudos sobre o Partido Comunista da China e às diretrizes estratégicas apresentadas pelo presidente Xi Jinping para o fortalecimento interno do seu país e a elevação do mesmo a condição de grande potência. No entanto, vi nesse convite do Centro de Estudos Asiático uma oportunidade dupla: a de revisitar minha pesquisa de doutorado sobre a questão camponesa e, principalmente, uma oportunidade de conectá-la a esses meus novos estudos.

A questão camponesa na China  

Para fazer essa concatenação, acrescentei ao título anteriormente divulgado dessa minha palestra – “A questão camponesa na China” a expressão “uma nova era”.

A questão camponesa na China: uma “nova era” condensa em si um dos principais desafios atuais da China, se não o principal, em sua marcha rumo a concretização do seu grande objetivo estratégico de revitalização da nação.

Para os que ainda não estão familiarizados com os estudos da política chinesa, adiantaria, de forma bem simplificada, que a “nova era” é um termo diretamente relacionado ao pensamento do presidente Xi Jinping e ao seu desenho estratégico para o desenvolvimento da China nas próximas décadas, como veremos melhor mais adiante.

Nos meus estudos iniciais sobre a questão camponesa, minha prioridade foi compreender a relação entre o Estado chinês e o campesinato. Especialmente, procurei analisar o papel revolucionário do campesinato na edificação e consolidação da República Popular, ou seja, o papel do campesinato chinês na fase revolucionária pré-1949, no processo de industrialização e no processo de consolidação do poder do Partido-Estado.

Uma das principais conclusões dessa minha pesquisa foi que a interpretação inovadora da situação do campesinato chinês feita por Mao Zedong foi um dos fatores decisivos para, sob o seu comando, transformar o Partido Comunista da China em uma força política e militar vitoriosa.

Para Mao, na história chinesa, os camponeses chineses, especialmente a grande maioria desvalidada da posse da terra, sempre foram uma força revolucionária.

Vale observar que nos anos de 1920 e 1930, essa não era a visão predominante dentro das direções dos partidos comunistas. No geral, os camponeses eram vistos como uma força política atrasada, não apenas revolucionariamente, mas em quase todos os sentidos.

Outra conclusão da minha pesquisa foi que apesar da enorme contribuição do campesinato chinês, tanto para o trunfo da revolução liderada por Mao quanto para edificação material da China (principal fornecedor de força de trabalho), esse segmento social continuava (e continua) a ser esse o elo mais frágil da sociedade chinesa, quer economicamente, quer socialmente (nível educacional, seguridade social, saúde e até mesmo da forma que é olhado pelos grupos urbanos que ascenderam economicamente).

Sobre a proeminência da força camponesa, Mao Zedong assim enfatizava: “A maioria da população chinesa é composta de camponeses, sem cujo apoio a revolução não poderia ter triunfado e nem a industrialização do país terá sucesso”. ¹

Vale destacar que essa fala de Mao foi feita em Pequim no dia 23 de junho de 1950 durante a Sessão do I Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo, na qual se aprovou a Lei de reforma Agrária.

Aliás, essa linha de pensamento de Mao reconhecendo o protagonismo do campesinato chinês pode ser encontrada em muitos dos seus outros escritos.

Aproveitando esse tópico sobre a Lei da Reforma Agrária, vejamos o que dizia a referida Lei no Artigo 1º do Capítulo I Sobre as Questões Gerais:

“Artigo 1º – Fica abolido o sistema de propriedade baseado na exploração feudal por parte da classe latifundiária, sendo substituído pelo sistema de propriedade dos camponeses, com a finalidade de liberar as forças produtivas das regiões rurais e desenvolver a produção agrícola, visando abrir caminho à industrialização da Nova China”.

Se observamos bem, as palavras chave da finalidade principal dessa Lei da Reforma Agrária não era a concessão de terras aos camponeses, mas sim “liberar as forças produtivas, desenvolver a produção agrícola e abrir caminho à industrialização do país”.  

Mesmo as terras distribuídas nessa Lei para os camponeses, na prática, ficaram nas suas mãos por pouco tempo, haja visto o surgimento das comunas e coletivização do campo.

Tanto a criação das comunas quanto a coletivização têm por trás a mesma motivação de liberar as forças produtivas e produzir os excedentes necessários para alavancar a industrialização do país.

Nesses casos, o diferencial é apenas o componente ideológico das interpretações do marxismo predominante na época sobre a questão da propriedade.

Aliás, se pode dizer que a procura desse caminho para libertar as forças produtivas foi por muito tempo a necessidade dominante, pois no fundo se tratada de restaurar a capacidade de poder do Estado. Poder esse combalido pelas invasões externas (Guerra do Ópio, invasão japonesa etc.) e pelas desagregações política e social interna (senhores de guerra, a guerra civil etc.).

E essa foi, a meu ver, a grande busca da China de 1949 a 1977.

Uma boa hipótese é de que as respostas de Mao não foram exitosas devido o tensionamento social desencadeado pelo Partido que havia concluído que chegado ao poder, o foco da luta (a contradição principal) era entre o proletariado e a burguesia nacional.

Política de Reforma e Abertura de Deng Xiaoping  

Em um ambiente de grande tensão social, as condições para um incremento necessário ao avanço econômico são geralmente prejudicadas.  

Porém, depois de muitos ensaios e erros, inclusive trágicos, como a política do Grande Salto Adiante, coube a Deng Xiaoping encontrar o caminho e mostrar a direção.

Da sua política de Reforma e Abertura surgiu todo um corpo teórico sobre o Socialismo com características chinesas, base fundamental para se compreender o caminho trilhado pelo PCCh nas últimas quatro décadas.

Entre outras coisas, Deng Xiaoping percebeu que se o Partido já estava no poder, não fazia sentido alimentar o tensionamento de classes, principalmente em um período de debilidade econômica.

Ele também percebeu que se deveria procurar uma fórmula para se trazer para dentro da China as mais diversas conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico presentes no exterior.

Para Deng, o Partido não deveria gastar sua energia com o foco na luta de classe, mas sim atenuar essa tensão e criar as condições mínimas necessárias para o desenvolvimento das forças produtivas.

Na sua visão, naquele momento, a contradição principalera entre as crescentes necessidades materiais e culturais do povo e uma base produtiva e social atrasada. Dito de outro modo, o foco da ação do Partido-Estado deveria ser o incremento da produtividade.

A diretriz política das “Quatro Modernizações” – Agricultura, Indústria, Ciência e Tecnologia, e Defesa– foi o caminho para a instrumentalização dessa sua resposta. Observemos aqui que a Agricultura é um desses quatro eixos. E naquele momento era o principal, pois dela sairia o principal combustível para azeitar cotidianamente todas as outras máquinas: a alimentação.

Nesse processo de reforma rural, tivemos a abolição do sistema de comuna popular e a reformulação do sistema de concessão de terras e a produção de alimentos voltou a subir. Mais uma vez, os camponeses foram a força decisiva, quer trabalhando no campo para produzir alimento, quer saindo para os centros urbanos, para atuar nas fábricas e construir cidades.

Porém, se por um lado, o sucesso material se tornou evidente, por outro, essa linha política adotada por Deng praticamente eliminou a questão camponesa enquanto um problema de classe social. Gradualmente foi se consolidado um tipo de abordagem onde a questão do campesinato passou a ser tratada dentro de uma questão muito mais ampla, com foco prioritário nas necessidades maiores do desenvolvimento do país, especialmente em sua natureza social e econômica.

“Os Três Problemas Rurais” – 农问题

Isto pode ser visto através da fórmula “Os Três Problemas Rurais” (Sān nóng wèntí), que é a maneira agora usada para se abordar a temática da questão camponesa.

Nong min, que é o camponês, ou o morador da zona rural; nong cun, que é a área rural, incluindo o campo; e nong ye, que é a questão da agroindústria e da produção agrícola em geral.

Essa linha de abordagem oficial sobre a questão agrária está bem exposta em uma série de publicações e denominada “Documento Central nº 1”.

Divulgada pelo Comitê Central do Partido Comunista da China e pelo Conselho de Estado, esse documento é a primeira declaração de política das autoridades centrais da China anunciada assim que se retornam os trabalhos depois do Ano Novo Chinês. É um Documento que vem sendo emitido desde 2004 e quase sempre indica as prioridades gerais a serem seguidas durante o ano, especialmente em relação a questão agrária.

Por exemplo, em 08 de fevereiro de 2004, quando teve início a série, o destaque foi para a necessidade de se “aumentar a renda dos camponeses”. A ênfase era de que esse era também um objetivo econômico e político.

O divulgado em 06 de fevereiro de 2020 priorizava o alívio da pobreza e melhoria das fragilidades presentes na zona rural: “Venceremos resolutamente a batalha contra a pobreza, aceleraremos os esforços para tratar dos principais pontos fracos da agricultura, áreas rurais e agricultores e faremos nossa devida contribuição para garantir uma vitória decisiva na conquista da primeira meta centenária de construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”. ²

O mais recente, divulgado no último dia 21 de fevereiro de 2021, traz como diretriz principal a revitalização rural, o que pressupõe acelerar a modernização da agricultura e das áreas rurais: “A China elegeu o crescimento integral das áreas rurais como a tarefa mais importante para conseguir a grande revitalização da nação chinesa, e acelerar a modernização da agricultura e áreas rurais com os esforços de todo o Partido e da sociedade”.

Aqui é importante notar que essa linha de modernização da agricultura e das áreas rurais está em consonância com o 14o Plano Quinquenal (2021-2025), que considerou o trabalho relacionado ao problema da agricultura, áreas rurais e agricultores (san nong) como uma máxima prioridade.

A China sabe que sem resolver o problema da segurança alimentar, reduzir o fosso do entre áreas rurais e urbanas, avançar na solução dos problemas ambientais (terra, água, ar e alimentos) ela terá dificuldades de avançar em direção a sua grande meta estratégica de revitalização da nação, objetivo máximo do desenho liderado pelo presidente Xi.

A questão camponesa sob a liderança de Xi Jinping: uma “nova era”

Desde que Xi Jinping assumiu o comando do Partido e do país em 2012, “o sonho chinês de revitalização da nação” passou a ser a sua prioridade máxima.

Para alcançar esse propósito foram estabelecidas duas etapas, denominadas de “as metas dos dois centenários”.

A primeira era a construção de uma sociedade moderadamente próspera até 2021, por ocasião do centenário de fundação do Partido Comunista.

Com a eliminação da extrema pobreza, a primeira meta foi considerada atingida. As comemorações oficiais desse feito ocorreram no último dia 25 de fevereiro.

Note-se que no centro da grande batalha contra a extrema pobreza estava justamente as áreas rurais e eliminação da pobreza era uma condição essencial para o seu triunfo.

Agora, o desafio maior é a concretização da segunda etapa desse processo de revitalização nacional que está projetada para 2049, ano do centenário da fundação da República Popular, quando a China pretende alcançar a condição de um país socialista moderno, próspero, democrático, civilizado e harmonioso.

Assim como ocorreu com a meta do primeiro centenário em relação a questão do combate à pobreza, o êxito dessa segunda grande meta passa necessariamente pela solução das questões relacionadas ao campo.

Observemos que em 2017, o 19º Congresso do Partido definiu também que na atual etapa de desenvolvimento do país, a contradição a principal é “entre o desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as necessidades sempre crescentes das pessoas por uma vida melhor”. 

Nessa leitura, o desenvolvimento desequilibrado e inadequado potencializa os conflitos sociais (mina a harmonia) e limita o desenvolvimento futuro da China (atingir uma soberania plena).

No campo prático, resolver essa contradição é o desafio principal dessa “nova era”, pois só assim a segunda etapa da revitalização nacional poderá ser concluída com êxito.

E é nesse eixo estratégico para revitalização da nação que se insere o “Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era”.

Diante desse eixo move-se agora toda China, qualquer que seja a área – na questão ecológica, restauração de determinados valores da cultura tradicional, no processo de integração urbano-rural, na sua atuação externa etc.

Nesse processo de modernização do campo, se pode esquecer da questão da segurança alimentar, que para China é uma questão de segurança nacional.

Por isso mesmo, o Brasil, como grande país agroexportador, deveria observar com muita atenção esse esforço chinês em relação à questão agrária, pois isso terá uma influência direta sobre todo o mercado internacional de alimentos.

Finalmente, nos passa uma impressão de que a China não olha mais tão detalhadamente para a questão de classe, mas sim a questão do povo. Ou seja, o objetivo maior dessa “nova era” liderada por Xi Jinping é que o Partido continue a conduzir o destino do Estado e da nação, o país seja cada vez mais forte e belo e o povo de todas as etnias e classes sociais prosperem e tenham uma vida harmoniosa e feliz.


[1] Mao Zedond, “Ser un revolucionario completo”. In: Obras escogidas.

[2] Documento Central Nº 1 da China prioriza alívio da pobreza e melhora dos elos rurais fracos. Disponível em: http://portuguese.xinhuanet.com/2020-02/06/c_138760590.htm. Acesso em 28 de fevereiro de 2021.

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