A sinistra obsessão dos vagabundos pelo trabalho (alheio)

“O Brasil não pode parar”

“Uma estranha loucura tomou conta das classes operárias nas nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura trouxe consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão agonizante pelo trabalho, levada até ao esgotamento da energia vital do indivíduo e de seus filhos. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os pastores, os economistas e os moralistas preferiram sacrossantificar o trabalho.”

Paul Lafargue

“Quero dizer, com toda a seriedade, que muitos malefícios estão sendo causados no mundo moderno pela crença no caráter virtuoso do trabalho. Mas pelo contrário: o caminho da felicidade e da prosperidade é a sua redução organizada.”

Bertrand Russel

            Os trechos acima citados fazem parte de dois textos clássicos da literatura progressista: “O Elogio ao Ócio”, de Bertrand Russel e “O Direito ao Ócio”, de Paul Lafargue. Os artigos foram reunidos no livro de Domenico de Masi, intitulado “A Economia do Ócio”. Uma excelente sugestão de leitura para quem se viu obrigado ao isolamento nesse período de espalhamento do Covid-19.

            Antes de tudo é forçoso dizer, para se evitar que nossos autores sejam sumariamente insultados como vagabundos, que ambos se dedicavam ao trabalho (produtivo) compulsivamente. Eram o que hoje se convencionou chamar de “workaholic”.

            Bertrand Russell foi um dos mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos que viveram no século XX. Sua produção é fantástica. Uma das personalidades mais respeitadas da história contemporânea. Paul Lafargue, por sua vez, foi um intelectual franco-cubano, escritor e ativista político. Lafargue foi genro de Karl Marx, casando-se com sua segunda filha Laura. Deixou uma vasta obra literária além de ter dedicado boa parte de suas energias em popularizar a obra-prima de seu sogro, O Capital.

            Tanto Russel como Lafargue, se vivos fossem, estariam, por certo, em polvorosa com a estúpida companha “O Brasil não pode parar”, levada à cabo por hordas bolsonaristas.

            O que diriam ao verem, desfilando pelas ruas das principais capitais do Brasil, uma burguesia parasitária que sempre viveu do trabalho alheio, uma vez mais insultando de vagabundos os que prezam pela suas vidas e a de seus entes queridos, em meio a uma pandemia?

            Acontece que o cenário hoje, por um lado, é mais dramático do que nas épocas dos nossos dois autores. Desde a década de 1980 o Brasil pulou de cabeça no pântano neoliberal e, a partir daí, uma nova crença no trabalho informal foi sendo disseminada para se justificar a destruição das grandes empresas públicas e privadas que antes empregavam milhões.

            As privatizações marcharam juntas com um novo modelo de produção privado dito flexibilizado, “just in time”, que fragmentou o mundo do trabalho em proporções colossais. Grandes empresas deram lugar aos pequenos e médios empreendimentos e foi sendo gestado o sonho de cada um ser o seu próprio patrão. A cantilena empreendedora do hermafroditismo entre duas classes distintas, patrão e operário ao mesmo tempo, seduziu milhões de incautos.

            O Brasil, portanto, já está parado desde a década de 1980 quando optou pelo neoliberalismo. Ainda que tenha passado por surtos de crescimento como os vivenciados durante os governos Lula e o primeiro mandato de Dilma, no geral vivenciamos duas “décadas perdidas”. E desde 2015, caminhamos à passos largos para a terceira década perdida.

            E o que parou o país durante todo esse tempo foi outra enfermidade: o Estado Mínimo. Foram justamente as teses neoliberais, que promoveram a mais brutal campanha de desnacionalização da economia e privatizações de empresas estratégicas ao desenvolvimento nacional, precarizando as relações de trabalho e retirando direitos básicos da classe operária, o que impede o trabalhador de hoje o simples direito de se isolar do coronavírus com o risco de morrer de fome.

            Todas essas perdas e retrocessos foram justificados com a mesma ideia da atual campanha “O Brasil não pode parar”. O sentido sempre foi o mesmo: “Avante, Brasil”, “Trabalhando em todo o Brasil”, “Ordem é Progresso”, entre tantas outras.

            Sempre a mesma mensagem de que a classe trabalhadora deve permanecer ordeira, submissa ao patrão, para o avanço de um país que promove uma das maiores concentrações de renda do mundo.

            Mais de um século se passou desde que Russel e Lafargue escreveram reivindicando o ócio como um direito universal. Tempo livre para que amplas parcelas do povo pudessem gozar do resultado de seu suor além de simplesmente sobreviverem. Tempo livre para namorar, brincar com os filhos, ler livros, desenvolver inúmeras aptidões no campo das artes e das ciências, passear, praticar esporte, em suma, viver. Trabalhar o essencial para viver, e não viver essencialmente para o trabalho.

            É bom que se diga, por mais óbvio que seja, que a cada ano que se passa a produtividade do trabalho aumenta estratosfericamente na mesma escala que o desemprego e a precarização do trabalho. As forças produtivas atingem níveis de eficiência jamais imaginadas. Poucas máquinas gastam alguns dias para fazerem aquilo que centenas ou milhares de trabalhadores necessitavam de meses ou anos para realizarem anos atrás. E a jornada de trabalho, por incrível que pareça, vem aumentando disfarçadamente.

            Além das 44 horas semanais da jornada de trabalho formal (uma das mais altas do mundo), computemos uma média (por baixo) de duas horas diárias de locomoção ao local de trabalho, mais horas de trabalho em casa demandados pelo whatsapp e outros aplicativos. Isso sem falar dos bicos e horas extras a que milhões são submetidos para complementarem suas rendas e a ditadura da “moda” que exige, sobretudo das mulheres, horas de “embelezamento” para atender aos padrões de estética burgueses em seus postos de trabalho.

            Todo esse colossal aumento da produtividade é direcionado para o bolso de 1% da população mundial. O tempo poupado, que deveria ser um conquista do trabalhador, passa a ser apropriado pelo burguês que exige ainda mais trabalho de seu assalariado, semi-escravo.

            Dessa forma, é compreensível o desespero de milhões de brasileiros que preferem abrir o comércio e colocarem suas vidas e as de seus entes queridos em risco, pois eles sim, realmente “não podem parar” com o risco de morrerem de fome. Antes de serem expostos ao vírus Covid 19 foram cobaias do experimento neoliberal.

            Nossa economia hoje, cada vez mais desindustrializada, vem perdendo enormemente participação dos setores primário e secundário em detrimento do setor terciário. Foi a gigantesca proliferação do setor de serviços, onde é cada um por si, que nos levou a assistirmos hoje o desespero de milhões de brasileiros que, realmente, não podem parar. A armadilha de terem sido empurrados para a falácia de o operário poder ser o próprio patrão, fundindo-se em duas classes inconciliáveis, nos levou ao abismo.

            Ao rico é permitido o “ócio produtivo”. Ao pobre não se é permitido sequer o direito ao “ócio protetivo”. Ao trabalhador tudo é negado em nome de um trabalho estéril, irracional e direcionado à manutenção de um modelo insustentável e parasitário. A quem questionar esse sistema, é logo insultado como vagabundo.

            Mas vagabundos de verdade são estes filisteus que desfilam em seus carrões importados exigindo, de forma criminosa, a exposição de seus empregados ao coronavírus em defesa não do trabalho, mas da manutenção de seus padrões de vida burgueses.

            O restante da população que de fato está entre a cruz e a espada, entre ficarem em casa ou morrerem de fome, vive a mesma disjuntiva dos tempos de Marx e Engels: “Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossas correntes”.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor