A tragédia libanesa e a geopolítica mundial

No dia 4 de agosto, terça-feira, o Líbano e o mundo inteiro assistiram estarrecidos a uma explosão, que muito se assemelhava a uma bomba atômica, ocorrida no porto da milenar cidade de Beirute. Dezenas de vídeos – feitos para o que parecia ser apenas um incêndio – acabaram por registrar ao vivo a tragédia, incluindo os danos para quem os filmava. Dias depois, a cidade presenciou manifestações contra o governo e, em 10 de agosto, o primeiro-ministro Hassan Diab renunciou. Para entendermos o significado disso tudo, discutimos como esses assuntos afetarão a geopolítica regional e mundial.

Um pouco da história libanesa

O Líbano é hoje um dos 22 países árabes existentes. Sua população é estimada em seis milhões de habitantes, dos quais dois milhões de palestinos e sírios refugiados(não há exatidão em relação a esta informação). Toda a costa libanesa – estendida até a Turquia ao Norte e aos limites de Haifa atual (em Israel) – na antiguidade era dominada pelo povo chamado fenício, considerado importante devido a seus comerciantes, construtores e navegadores; os “povos do mar” na conceituação de vários estudiosos em geopolítica.

Essa região esteve sob o domínio de vários outros impérios, em especial dos gregos, romanos e macedônios. O Líbano foi ainda ocupado pelos Impérios Bizantino, pelo antigo império Romano do Oriente e pelas Cruzadas, e posteriormente pelos árabes a partir do século VII; e mais recentemente (por 400 anos) pelos otomanos e (por menos de três décadas) pelos franceses. Estes últimos ocuparam a região, a partir dos acordos Sykes-Picot estabelecidos a partir de 16 de maio de 1916, quando a Primeira Guerra Mundial estava para terminar e o Império Otomano em sua fase de desagregação.

Durante boa parte de sua História, o atual Líbano se dividia em dois principados – o Monte Líbano que se estende até o Sul do Líbano e a atual região Norte –, governados por pessoas Ilustres da região indicadas pelo Império Otomano, muitas vezes tutelados por franceses, britânicos e pelo Vaticano. As planícies do Norte (Akkar e a cidade de Trípoli), assim como o Vale do Bekaa, faziam parte do Emirado da Síria, por muitos denominado de A Grande Síria, que em árabe era chamada de Bilad el Shams (região do Levante). A independência libanesa das quase três décadas de tutela francesa ocorreu somente em 22 de novembro de 1943 (2).

O Líbano é uma mistura étnica e religiosa muito grande, iniciada desde os primórdios de sua História. É o país mais heterogêneo de todo o Oriente Médio, com muitas divisões sectárias, acarretando diferenças entre setores da população bastante grandes. Há 17 confissões religiosas oficialmente reconhecidas e todas têm de ser contempladas, direta ou indiretamente, com seus espaços próprios no Parlamento e nas ocupações dos cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão do governo.

Até o fim do Império Otomano, após a Primeira Guerra Mundial, o país era governado por pessoas locais nomeadas com mandato otomano, mas sempre sob a supervisão de um Emissário Otomano. As regiões eram homogêneas e, toda vez que houve um certo grau de diversidade, os conflitos religiosos eram incitados.

Os cristãos maronitas eram maioria na região central do país, seguidos pelos Drusos na região de Al-Chouf no Monte Líbano. Em 1924, por decisão do colonizador francês, foi criado o Grande Líbano, anexando a cidade de Trípoli, as planícies de Akkar e o Vale do Bekaa, surgindo assim uma nova segmentação demográfica que viria a ser a principal reivindicação dessas comunidades, predominantemente muçulmanos, na participação no governo.

Desde a independência em 1943, prevalecia o acordo de que o primeiro-ministro do país teria de ser sempre um sunita, o presidente do Parlamento um muçulmano xiita e o presidente do país um cristão Maronita, com um mandato presidencial de seis anos. Os Maronitas são cristãos apostólicos romanos de rito oriental maronita (rezam a missa e os cantos na língua aramaica, língua de Jesus Cristo), possuem um Patriarca indicado pelo Vaticano e seguem as determinações papais e os sínodos católicos.

Hoje no Líbano são reconhecidas 16 ramificações religiosas cristãs e muçulmanas, além do judaísmo. Essa divisão está enraizada no país e nas suas tradições. Será um processo muito difícil, senão impossível, imaginarmos a implantação de um sistema de laicidade total no Líbano.

Em 1975 inicia-se no país uma guerra civil, que irá perdurar até 1990, decorrente de conflitos agudos entre cristãos e muçulmanos. Por pouco mais de 15 anos, setores e segmentos da população libanesa se digladiaram entre si de armas em punho. Estima-se que mais de 150 mil libaneses e palestinos perderam suas vidas no conflito e aproximadamente 700 mil tiveram algum tipo de ferimento com ou sem sequela, além de um milhão de desabrigados.

A “bandeira religiosa” apenas cobria as reais causas geopolíticas e sociais do conflito e também a ingerência internacional. As alianças entre cristãos e muçulmanos aconteciam em regiões determinadas, enquanto em outras os confrontos eram sangrentos. Ainda mais grupos cristãos se digladiavam entre si, bem como os muçulmanos.

Em 1976, o Exército Árabe Sírio, a pedido do governo libanês, interveio no conflito libanês ocupando o Vale do Bekaa, parte do Norte do Líbano, e uma faixa do Monte Líbano até Beirute, sob a tutela da Liga Árabe, com apoio da Arábia Saudita e dos Estados Unidos. O objetivo era pôr fim aos conflitos; o que de fato aconteceu. Pelo Sul do Líbano e na ausência de uma resistência do Exército Libanês, enfraquecido por suas divisões sectárias e políticas, Israel realiza uma invasão no Sul do país em 1978 sob o pretexto de lutar contra os palestinos e participar de um novo tratado de paz com o governo do Líbano. A partir de 1982, fará nova incursão permanecendo até o ano 2000.

Entre 16 e 18 de setembro de 1982, sob o beneplácito e a autorização do governo israelense, vamos presenciar o triste massacre dos acampamentos palestinos de Sabra e Shatila, apoiado por Ariel Sharon, então ministro da Defesa. Estima-se que morreram em torno de quatro mil palestinos, em sua maioria crianças, mulheres e idosos. Entre 1978 e 1982, iniciava-se o núcleo de resistência libanesa à incursão de Israel, que só seria expulso de todo o território libanês em 25 de maio de 2000 (com exceção de uma pequena faixa, fronteiriça tripla entre a Síria, o Líbano e a Palestina ocupada, as fazendas de Chabaa).

Em 22 de outubro de 1989, na cidade balneária saudita de Taif, é negociado um acordo de paz que reforça a divisão sectária do país. Desse encontro tira-se o documento Carta Nacional de Reconciliação. Encontro patrocinado pelo principal líder sunita do Líbano, Rafic Hariri, um dos homens mais ricos do país e apadrinhado pela Arábia Saudita, custeando as passagens de 63 deputados do parlamento libanês. Hariri se tornaria posteriormente primeiro-ministro e seria assassinado em 14 de fevereiro de 2005, e seu filho Saad Hariri assume o comando do Gabinete Ministerial do país. Saad, nascido na Arábia Saudita, é visto como um dos maiores corruptos do país, amigo dos EUA e de Israel. 

Com a aprovação de uma nova Constituição em 1990, todas as propostas e ideias contidas nesse documento aprovado são incorporadas ao texto constitucional, de forma que, se já não tínhamos laicidade no país, desse momento em diante as divisões religiosas foram cristalizadas. É importante frisar que as eleições libanesas sofrem com mudanças constantes na sua legislação para a eleição dos deputados ao Parlamento e que a eleição presidencial é feita de forma indireta pelo Parlamento e não por sufrágio universal. Em outros termos, não há eleição direta para Presidente. Após 30 anos de vigência da Constituição, o país segue com uma constante instabilidade política, e, se o modelo confessional não for alterado, não vemos nenhuma perspectiva da consolidação de uma verdadeira democracia no Líbano.

O parlamento tem 128 cadeiras, assim distribuídas: as 64 cadeiras dos cristãos são repartidas em 34 para os maronitas, 14 para os gregos ortodoxos, oito para os católicos de rito bizantino, cinco para os ortodoxos armênios e uma para os católicos armênios, uma para os protestantes e uma para outras minorias cristãs. A divisão das 64 cadeiras dos muçulmanos é feita da seguinte forma: 27 para xiitas e sunitas, oito para drusos e duas para alauítas (etnia ou corrente do Islã à qual pertence a família Al Assad, que governa a Síria). O Partido Comunista Libanês não pode concorrer, pois teria de ter registrado na cota de um cristão ou muçulmano. Esse é o paradoxo que vive a política libanesa.

Quando Israel é totalmente expulso do Sul do Líbano, os grandes heróis dessa resistência, reconhecidos em todo o Líbano, são os militantes do Hezbollah, juntamente com os militantes do Partido Comunista Libanês e outras forças de ideologia pró-arabismo e antiamericana. Tive a honra de viajar ao Líbano, em dezembro de 2013, onde visitei o maior museu a céu aberto do mundo, chamado Mleeta, onde estão expostos os tanques e peças de artilharia israelenses abatidos pelos guerrilheiros da resistência libanesa (3).

Todos os países do Oriente Médio compõem um tabuleiro de xadrez. Ainda assim, o Líbano é o que movimenta o maior número de peças possíveis. Mas o exército Libanês, por imposição da Arábia Saudita e de Israel, não pode comprar armamentos mais pesados. O Hezbollah não tem essa limitação. Por isso, o povo Libanês vê nesse movimento de resistência uma forma de proteção do país, numa equação geopolítica em “que se equilibram as forças e criam forças de dissuasão política”.

O Irã é um dos maiores aliados da República Árabe da Síria e tem fortes laços com o Líbano. Estes países juntamente com o Iraque se unem no chamado Eixo da Resistência. A esse eixo (ou arco) de alianças, não formalmente constituídas, se incorporam os comunistas do PCL, os socialistas e nasseristas de várias correntes árabes nacionalistas.

É preciso observar que, pela primeira vez em muitos anos, está sendo possível sair por uma estrada de Teerã no Irã, passar por Bagdá no Iraque, por Damasco na Síria e chegar até Beirute no Líbano. Israel vive um tormento com essa possibilidade, até porque por essas mesmas estradas podem trafegar grandes contingentes de militares e blindados. Esse alinhamento por estradas e rodovias jamais ocorreu em toda a história da região.

As sanções que os Estados Unidos vêm impondo ao Irã são determinadas por Israel, que manda na política externa estadunidense. Em parte, o ódio dos EUA ao Irã provém basicamente do fim da monarquia do Xá Reza Pahlevi e do fim do alinhamento incondicional do Irã com os EUA nas economias asiáticas. Sempre ouvi que existia uma grande dúvida entre analistas internacionais se seria Israel que manda na política externa estadunidense ou vice-versa. Eu nunca tive essa dúvida: Israel determina o que os EUA devem fazer no Oriente Médio.

A explosão do porto de Beirute em 4 de agosto

Na terça-feira, 4 de agosto, às 18 horas (hora local do Líbano), no armazém de número 12 do porto de Beirute, por onde passam 80% de todas as exportações e importações libanesas, ocorreu uma explosão jamais vista no país. Dados ainda não finalizados mostram a morte confirmada de quase 200 pessoas, dezenas de desaparecidos, cinco mil feridos (que foram atendidos em hospitais já lotados por causa da Covid-19) e 300 mil desabrigados. Em 15 anos de guerra civil, um milhão de pessoas foi desabrigada, e, em um só dia, um terço deste total ficou com a sua casa ou totalmente destruída, ou sem condições de continuar habitada.

Os motivos da grande explosão estão relacionados com a estocagem completamente irregular de 2.750 toneladas de nitrato de amônia, substância que tanto pode ser usada para o bem – para fabricar fertilizantes – como para o mal, na fabricação de bombas e artefatos explosivos. O especialista em nanotecnologia e nano-física libanês, Wassim Jaber, estudou o poder dessa quantidade de nitrato de amônia. Para ele, isso equivale a 687 toneladas de TNT (dinamite).

A explosão dessa quantidade de dinamite libera em torno de 1,4 terajoule (medida de energia em geral e energia térmica), que equivale a uma pequena explosão nuclear. A onda de energia liberada destruiu ou danificou resistências, em especial seus vidros e esquadrias, de metade de Beirute. Essa onda de choque atingiu até 10 quilômetros e foi sentida até no Chipre, distante mais de 200 quilômetros. Essa explosão equivale a um terremoto de 4,5 na escala Richter.

A origem de toda a história da explosão

Existem duas versões que foram veiculadas pela imprensa árabe sobre o navio que transportava a carga explosiva. Primeira: o navio Loutfallah, que seria de bandeira turca, teria sido apreendido, no porto em setembro de 2013 (ou 2014), mas esse carregamento de nitrato de amônia teria como destino os terroristas que atuavam na Síria desde 2011 (que a mídia chama de “rebeldes”) (4). A outra versão: o navio Rhosus seria de bandeira moldava e seu destino seria a África (Moçambique), com a embarcação indo a pique e retida junto com sua tripulação (5). Como a apuração ainda está em curso, eu pessoalmente “comprei” a versão sobre apoio aos terroristas. Não foi uma nem duas vezes que navios carregados de armas destinadas aos terroristas foram apreendidos.

É importante ressaltar que não devemos depender jamais de informações que nos são dadas pelos três maiores jornais da burguesia brasileira que, por sua vez, as recebe das agências noticiosas internacionais controladas pelo imperialismo estadunidense. Pessoalmente, recomendo a leitura dos dois jornais mais progressistas libaneses: El Mayadeen e Al manar . Com as facilidades de tradução do Google, não há impedimento da língua para a leitura. Recomendo ainda que leiam e assistam os programas da Hispa TV, televisão estatal do Irã em língua espanhola.

A questão central que se coloca nesse processo de apuração – seja ele acidente, sabotagem ou ataque sionista – é a cadeia de negligência que se verificou em mais de seis anos sob a responsabilidade de quem autorizou que essa imensa carga explosiva – quase três milhões de quilos de nitrato de amônia – ficasse armazenada no porto de Beirute, que fica muito próximo de áreas residenciais, da cidade que tem 2,2 milhões de habitantes.

Como a carga do navio ficou apreendida, o seu proprietário (um cidadão russo) ingressou na justiça pela sua liberação. A partir desse momento, uma batalha judicial impressionante se estabeleceu. Da parte dos advogados, pelo menos cinco cartas de advertência foram feitas aos governantes e juízes nesses anos todos. Listamos a seguir todos que de uma forma ou de outra tiveram relação com a irresponsabilidade do armazenamento irregular: os juízes Nadim Zween, Zulfa Al Hassan, Jad Maalouf e Hala Naga. Dois ex-primeiros-ministros também podem ter responsabilidades: Najib Mikat e o próprio e polêmico Saad Hariri. Da equipe de Mikat (no poder no ano da apreensão da carga), estão sendo responsabilizados o seu ministro de Transportes, Ghazi Al Aridi e o diretor-geral da Alfândega Shafiq Merhi. Da equipe de Hariri (governou o Líbano entre 2016 e 2020), temos o seu ministro do Interior, Raya Al Hassan.

Na própria terça-feira, dia 4 de agosto, o governo do atual primeiro-ministro Hassan Diab formou uma espécie de “quartel-general” para acompanhar os trabalhos de resgate. Foi então decretado estado de emergência, junto com o toque de recolher. O gabinete ministerial reuniu-se na quarta-feira, dia 5, e determinou que o exército procedesse imediatamente a prisões. Nesse sentido, pelo menos 16 pessoas já foram presas desde a explosão.

A situação política e econômica do Líbano

Como vimos na introdução histórica deste artigo, o Líbano vem desde a sua independência, em 1943, adotando um sistema de divisões políticas a partir de religiões que atuam no país. Esse modelo foi reforçado pelos acordos de Taif de 1989, incorporados à Constituição do país em 1990. Mas, particularmente após o assassinato de Shafiq Hariri, ex-primeiro-ministro libanês, em 14 de fevereiro de 2005, as coisas ficaram radicalizadas.

Como sabemos, naqueles episódios de 2005 houve grandes manifestações no país, o que acabou fazendo com que as tropas sírias se retirassem do país. Parte da sociedade libanesa – agradecida pela presença síria no país – convocou um ato que pode ser entendido como de “agradecimento à Síria”, país irmão e vizinho, para o dia 8 de março, que reuniu mais de um milhão de pessoas. A direita libanesa, os falangistas (extrema-direita), entre outros grupos, convocaram outro ato de resposta, para o dia 14 de março. E então surgiram as duas grandes coligações, que se alternam em dirigir o país nesses últimos 15 anos.

Da coligação 8 de março, fazem parte o Hezbollah – que em árabe significa Partido de Deus –, mais conhecido como Partido da Resistência. Seu secretário-geral é Sayyed Hassan Nasrallah. Integram ainda a coligação o partido de centro-direita Amal (abreviatura de Batalhão da Resistência Libanesa), de Nabi Berri (muçulmano xiita), e o MPL (Movimento Patriótico Livre), do general Michel Aoun, atual presidente do país e cristão maronita.

Outros partidos, mesmo não integrantes da coligação progressista 8 de março, gravitam em torno dela com suas respectivas autonomias. Um deles é o movimento chamado Marada. O outro é o Partido Social Nacional Sírio, que possui ação em vários países árabes, de orientação mais nacionalista e patriótica. Por fim, o Partido Comunista Libanês, fundado em 1924, a mais antiga organização revolucionária e partidária libanesa. Este, em função de não se integrar a nenhuma religião, está banido de disputar as eleições e por isso não tem nenhum parlamentar. Mas ele tem grande prestígio com as massas, no movimento popular e sindical (6).

Já a outra coligação é integrada pelos seguintes partidos: Falange Libanesa (organização de extrema-direita, vinculada à Igreja Maronita, que inclusive pegou em armas na guerra civil de 1975 a 1990 e perpetrou os hediondos massacres de palestinos nos acampamentos de Sabra e Chatila em setembro de 1982, que vitimou quase quatro mil pessoas), também conhecida como Al Kataib, liderada por Amin Jemayel. O segundo e mais importante partido é o Al Mustakbal (Movimento Futuro), cujo dono é Saad Hariri. O terceiro mais importante é o Kuat (Forças Libanesas), de Samir Jeajea. Por fim, temos o Al Takadumi (Partido Progressista Socialista), cujo líder é Walid Jumblat.

No momento que escrevo este artigo, o chefe do atual governo e primeiro-ministro, Hassan Diab, apoiado principalmente pelo Hezbollah, anunciou a sua renúncia (10 de agosto), abrindo um período ainda mais conturbado na política libanesa. O presidente Michel Aoun já aceitou a renúncia, determinando que Diab fique como PM provisório. É possível que seja formado, como já ocorreu no passado, um governo de unidade nacional (de uma só cor como se diz no Líbano). Até porque, esse foi um recado do presidente da França, Emmanuel Macron, que de certa forma condicionou a ajuda francesa à formação desse governo amplo. Isso talvez acabe sendo melhor, pois a oposição entraria no governo junto com a atual composição de forças. A questão que vai ser debatida é se o Líbano voltará para a órbita de influência dos Estados Unidos e de Israel.

Do ponto de vista econômico, a situação libanesa é devastadora. Se o Estado libanês já se podia dizer um Estado falido, quem dirá de ora em diante com a crise que advém em função da interrupção do comércio exterior e mesmo do comércio interno. Praticamente tudo está parado hoje no Líbano. O movimento que se tem agora é no sentido de saber quem vai reconstruir o porto de Beirute. Já se colocaram à disposição a China, Rússia e o Irã, além de países ocidentais, em especial a França, que já ocupou o Líbano por quase trinta anos. O país já não tinha conseguido arcar com o pagamento das parcelas de seus empréstimos internacionais, vencidas nos meses de abril e junho passado. Sabemos que, se o FMI oferecer empréstimos de “ajuda”, exigirá em troca ainda maiores sacrifícios do povo.

O que mais se fala hoje no Líbano – tal qual em nosso país – é que a corrupção é o maior problema do país. Tanto lá como cá, os corruptos – eles próprios – escondem-se por trás dessa bandeira amplamente popular. Com isso, além de capitalizarem o sentimento popular, deixam de apresentar ao país o seu programa de governo e de desenvolvimento nacional. Para o governo, que tem envidado esforços para combater a corrupção, o tema central deve ser o desenvolvimento nacional, soberania, independência. Uma das falas do PM Hassan Diab foi no sentido de não ter conseguido impedir o modelo corrupto que vigora há décadas. Ele saiu criticando uma espécie de “muro muito grande que protege uma classe que controla as articulações do Estado”.

Sobre a ajuda internacional ao Líbano, é preciso dizer algumas coisas. Os EUA nem lamentaram as mortes decorrentes da explosão, nem muito menos ofereceram alguma ajuda. O que eles têm feito nos últimos meses é impor bloqueios, embargos e mesmo sanções ao Líbano. Contas libanesas governamentais, de empresas e de cidadãos, foram bloqueadas no exterior e, mesmo depois da catástrofe, nenhum desses embargos foi levantado. Isso já observamos desde janeiro quando a pandemia mundial se iniciou, e nenhum dos países sancionados teve levantadas as suas sanções, mostrando o ódio do presidente dos EUA não aos governos de alguns países, mas aos seus povos.

O presidente da França, Emmanuel Macron, visitou o país em 6 de agosto, dois dias após a explosão. Ficou em território libanês apenas quatro horas e afirmou que enviará ajuda humanitária de várias formas. No entanto, sem perder a pose de imperialista e colonizador, disse que de certa forma para essa ajuda havia a condição de que o país faça as tais reformas “necessárias” (batendo na mesma tecla que o FMI bate), ou seja, impondo mais sacrifício ao povo.

Nesse processo de ajuda, a hipocrisia foi a marca maior. Israel se disse consternado e desejou pêsames às famílias dos mortos, inclusive oferecendo ajuda. Na semana retrasada, o próprio ministro da Defesa, general Benny Gantz, ameaçou claramente o Líbano de ataque e invasão, como fazem há muitos anos (é preciso registrar que esse general, líder do Partido Azul e Branco, aceitou compor com o direitista Netanyahu para que continuasse como primeiro-ministro). Certamente, o Líbano declinou dessa ajuda.

Pelas nossas bandas brasileiras, o hipócrita que se apresenta como “nosso” presidente disse estar consternado pelas mortes de libaneses e que ajudaria enviando auxílios (pelas cem mil vítimas da Covid-19 no Brasil ele não se consternou). Ele não tem ideia do significado da comunidade libanesa no país, composta por dez milhões de brasileiros (imigrantes originais e seus descendentes). O Líbano mesmo tem apenas quatro milhões de libaneses. Mas o pior de tudo isso foi a indicação do ex-presidente de triste memória e líder do golpe de 2016, Michel Temer, como representante do governo brasileiro encarregado de coordenar a ajuda ao Líbano.

Mais uma vez, são os de sempre os países que mais estão ajudando: a grande China, a Rússia e o Irã. Todos eles enviaram medicamentos, alimentos não perecíveis, equipamentos hospitalares e – o mais importante – pessoal médico e de enfermagem em grande número para dar conta da tarefa de atender ao imenso contingente de feridos.

É preciso deixar claro que o maior responsável pelos problemas que o Líbano vive são os Estados Unidos e Israel, que infortunam o país desde sempre. Eles hoje ganham muito com essa tragédia, pois impor o caos no Líbano é de grande valia para o imperialismo e o sionismo. Por isso, jamais foi descartada a hipótese de sabotagem interna (a partir de um agente do Mossad israelense ou mesmo de um libanês traidor), ou mesmo de ataque por algum tipo de míssil enviado por Israel. O filósofo francês radicado em Damasco, Thierry Meyssan, afirmou que o porto de Beirute foi atacado por uma “arma nova”, sem dar mais detalhes (7).

Quem ganha com a destruição do Porto de Beirute

Só de uma coisa temos a certeza até o momento: quem mais perdeu, perde e perderá com essa explosão será, em primeiro lugar, o povo libanês e, em segundo lugar, o atual governo que será desfeito para dar lugar a uma nova formação política. Existem várias hipóteses sobre o maior beneficiário. Não tenho dúvidas de que Israel também se beneficia muito, não pela explosão em si, mas pela desestabilização do Líbano e com a queda do governo e uma eventual volta ao poder dos seus amigos da família Hariri. Um Líbano fraco e subordinado ao imperialismo é tudo que Israel precisaria.

Aos EUA interessa também que o Líbano se desestabilize, que se enfraqueça. Tirar esse país fronteiriço do Eixo da Resistência será isolar a Síria, o Iraque e o Irã. No entanto, ainda que Trump tenha de pronto declarado que a explosão foi decorrente de um ataque direto externo (por bomba), pode acarretar uma unidade nacional ainda maior contra o vizinho sionista.

De todas as declarações que tenho visto, vindas de diversos setores, são poucos os casos em que o dedo da acusação é apontado diretamente para Israel. Ainda mais se por um míssil, já que nada foi detectado nos radares da defesa aérea libanesa. Nem mesmo o Hezbollah, que Israel tem como seu principal inimigo, por saber ser ele o maior defensor da soberania libanesa, fez essa acusação.

O secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, também não descartou essa possibilidade em nenhum momento. No discurso que fez na sexta-feira, 7 de agosto, afirmou que nenhuma hipótese está descartada e deixou no ar que tem meios de realizar uma investigação própria, independente. Se for comprovado que foi mesmo um ataque israelense, é imprevisível o que poderá ocorrer. A situação ficará extremamente explosiva e poderemos até assistir a um conflito armado regional (8).

A posição do Hezbollah

Como vimos, o Hezbollah é uma organização da resistência armada libanesa que defende a soberania e a independência nacional do Líbano, assim como é partido político com 12 cadeiras no parlamento (entre 128, ou seja, 10%) e dois ministérios (em um total de 30). No entanto, EUA, União Europeia, Canadá, Inglaterra e até a Liga Árabe o consideram uma organização terrorista. O Partido de Deus foi fundado em 1982, três anos após a revolução iraniana. Dele participam em sua maioria – mas não na totalidade – militantes muçulmanos de orientação xiita.

O discurso realizado às 11h30 (hora local), do líder e secretário-geral do Hezbollah – que era muito esperado –, a cujo conteúdo traduzido tivemos acesso, e em conversas com amigos libaneses, podemos resumir da seguinte forma: 1. Foi curto, objetivo e de certa forma conservador; 2. por não terem sido concluídas as investigações, afirmou que seria injusto condenar qualquer ente ou pessoas sem as devidas provas; 3. acusa a mídia a serviço dos EUA de apontar o dedo para a sua organização, a que menos ganharia com a explosão; 4. afirmou que o seu Partido não tem nenhuma base, atividade ou depósito de armas na região portuária; 5. disse ser uma imensa irresponsabilidade jogar libaneses contra libaneses neste momento; 6. acusou ter havido uma imensa negligência em função de um material desses ter permanecido depositado por quase sete anos no Porto e espera punição a todos os responsáveis. Finaliza confiando que um dia após outro, a verdade sempre virá à tona (9).

Bandeira do Hezbollah, partido da Resistência libanesa.

Para complicar ainda mais a situação, a comissão especial de juristas da ONU, formada em 2005 para investigar o assassinato de Hafic Hariri, que atua sob o manto do Tribunal Penal Internacional (TPI) – que deveria ler seu veredito na sexta, dia 7 de agosto –, em função da explosão, adiou para o dia 17 de agosto. Ao que tudo indica, o “veredito” deverá ser uma acusação formal para quatro libaneses supostamente pertencentes ao Hezbollah. Um deles já falecido e os outros vivendo em locais incertos. Sem prova alguma. Eles já tentaram acusar a Síria pelo assassinato. Agora, fazendo o jogo do imperialismo estadunidense e do sionismo, o TPI/ONU deve voltar-se contra o Hezbollah, em uma ação orquestrada com os EUA e Israel visando a enfraquecer o Partido libanês da resistência. Se isso se confirmar, o tiro sairá pela culatra. Não vislumbro nenhuma organização que deva se sair tão fortalecida desse trágico processo da explosão.

Desdobramentos e perspectivas na geopolítica regional

Não tenho a menor dúvida de que a explosão ocorrida terça-feira, dia 4 de agosto, em Beirute, vai alterar e muito a geopolítica regional do Oriente Médio e até mundial. O Líbano é uma peça fundamental no tabuleiro de xadrez da política internacional árabe, e mesmo asiática, pois tem relações com Irã, China e Rússia, países que primeiro se colocaram à disposição de ajudar na reconstrução do Porto destruído.

Ainda que as apurações sobre as causas da explosão estejam em curso, acredito que, além da possibilidade real de que tenha sido um ataque externo, cresce a suspeita de que possa ter sido sabotagem, ou seja, de que algum libanês a serviço do Mossad israelense, da CIA, possa ter ateado uma pequena fogueira próximo ao depósito das quase três mil toneladas de nitrato de amônia.

De qualquer forma, o grande objetivo era desestabilizar o governo atual, que não é amigo nem dos EUA e nem de Israel, bem como enfraquecer e voltar a opinião pública contra o Hezbollah, o principal bastião da resistência libanesa. De certa forma, com a renúncia do PM Hassan Diab, esse objetivo foi alcançado. A meu ver, a renúncia tem algo parecido com a de Jânio por aqui, ou seja, para se ligar ao povo e tentar se fortalecer, não necessariamente para voltar ao governo, mas para formar um novo mais forte e coeso, de unidade nacional.

O Hezbollah sairá desse episódio ainda mais popular e ainda mais fortalecido. Se Israel se atrever a tomar qualquer providência no campo militar, poderá se amargar duramente. Não foram um, nem dois generais israelenses de alta patente que já declararam que se uma guerra fosse feita hoje contra o Líbano, Israel seguramente perderia. Não tem poder militar de fogo suficiente para derrotar a força e a garra da resistência libanesa, seja ela muçulmana (sunita e xiita), seja ela cristão, comunista, patriótica ou qualquer outra e mais o exército regular libanês.

A todos nós, internacionalistas e solidários com as causas justas dos povos de todo i mundo, cabe levantar nossas vozes e nosso apoio material para o povo libanês, bem como aos companheiros do Hezbollah. Tudo faremos para que o imperialismo não volte a influenciar esse estratégico país.

(1) MIRHAN, Lejeune. Reflexões sobre o Oriente Médio: para entender a geopolítica daquela região. Campinas (SP): Apparte, 2019, p. 195-200.

(2) Tal qual vários países árabes, o Líbano tem duas datas de independência. Uma dita “declarada”, no caso 26 de novembro de 1941, e outra “reconhecida” (pela França) de 22 de novembro de 1943, dois anos depois. Um verdadeiro absurdo (<https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADbano>).

(3) Conheça mais sobre esse museu: <https://en.wikipedia.org/wiki/Tourist_Landmark_of_the_Resistance>.

(4) Leia matéria sobre isso em: <https://bit.ly/2XOqYQ1>.

(5) Veja aqui a opinião de outra visão sobre o navio: <https://bit.ly/2XOuh9T>.

(6) A minha viagem ao Líbano, em 2013, resultou em um livro intitulado Relatos de viagem à Síria e ao Líbano, da Editora Anita Garibaldi, em 2015, que pode ser adquirido, entre outras obras de minha autoria, no site da Editora Apparte <www.apparteditora.com.br>.

(7) A reportagem sobre a opinião do filósofo francês pode ser lida em: <https://bit.ly/2FaA8zP>.

(8) Pepe Escobar, um dos melhores analistas internacionais que conheço, fez uma extensa análise sobre a explosão que pode ser lida em: <https://bit.ly/3aarmx0>.

(9) A íntegra do discurso traduzido pode ser lida em: <https://bit.ly/31G2Hg7>.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor

Um comentario para "A tragédia libanesa e a geopolítica mundial"

  1. Álvaro Martins disse:

    Excelente exposição, como de costume, do Camarada Prof. Lejèune Mirhan. O que não fechou, no texto, para mim foi a composição da Coligação “8 de Março, pois de 64 membros foram relacionados 37 e em texto na sequência que o Hezbollah possui 10% das cadeiras(6,4 ~7)… Restariam ser identificados 20 membros, porquanto. Forte abraço, Camarada Prof. Lejèune.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *