A transgressão, na Arte, virou norma?
Affonso Romano de Sant’Anna, poeta e crítico de arte, fez uma palestra no dia 25 de fevereiro, na Escola de Magistrados da Justiça Federal de São Paulo, sobre as transgressões atuais da chamada Arte Contemporânea. No texto abaixo, uma síntese das idéias defendidas por ele, com as quais – em muito – comungo.
Publicado 11/03/2011 14:45
A Fonte, Marcel Duchamp | |
Affonso Romano de Sant'Anna |
Primeiro, uma historinha ilustrativa…
Em 1917 houve em Nova Iorque uma exposição de vanguarda para a qual o artista francês Marcel Duchamp mandou um urinol de parede, sob o pseudônimo de R.Mutt. O júri dessa exposição ficou perdido sobre o que fazer com aquele urinol e, numa reunião onde estava presente o agente de Duchamp, o presidente do júri, George Bellows, questionou: “- Nós não podemos expor este urinol, porque este urinol é apenas aquilo que ele é”. Ao que o agente de Duchamp disse: “- Mas esse urinol, é mais do que um urinol, é uma ideia.” O presidente do júri respondeu: “Você quer dizer que se alguém enviar esterco de cavalo colado numa tela, nós vamos ter que aceitar?” O agente de Duchamp respondeu que infelizmente achava que sim.
Desde essa época, iniciando-se pelo próprio Duchamp, vem se falando que a Arte está morta, assim como o autor. Na década de 1980 Francis Fukuyama, pensador norte-americano afirmou, dentro da onda neoliberal, que a História também tinha morrido. Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer do banho de sangue provocado por duas guerras mortíferas. Um século onde a morte fez presença tão marcante, precisa ser analisado. Nesse sentido, diz Affonso, “habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido” e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo.
Nesse contexto, dentro da Arte Contemporânea (que vamos chamar de AC neste texto) todos seriam artistas e qualquer coisa pode ser considerada arte. Tendo como base dois de seus livros, Desconstruir Duchamp e O enigma vazio Affonso Romano desnuda a situação atual das artes. Segundo ele, a AC tornou-se tão complexa que necessita ser avaliada através da intervenção de outras disciplinas – que não só a Estética – como a Antropologia e a Psicanálise, para tentar explicar o que é essa produção que segue à risca o que foi prescrito por Duchamp, um dos intocáveis ícones pós-modernos.
Como artista e como escritor que desde a juventude se envolveu com os movimentos de vanguarda dos anos 50 e 60 e, portanto, conhece por dentro o mecanismo da constituição desses movimentos, Affonso Romano, também como um teórico, tenta desvendar esses enigmas que cercam a questão da criação artística. Nesse sentido, depara-se com um certo tabu atual sobre se fazer uma revisão da história da Arte do século XX, apesar de atravessarmos uma situação histórica que deveria interessar a todos.
As apregoadas morte da arte e do autor são dois sofismas contemporâneos: se não existe arte não existe autor. Mas há um paradoxo tragicômico: por um lado a AC vive de matar-se a si mesma e, por outro, demonstra uma vitalidade econômica assombrosa, pois uma arte que se mata o tempo todo anda rendendo muito nas Bolsas de Valores!
No plano da autoria – continua Affonso Romano – embora alguns digam que o autor está morto, (esta afirmativa deve-se sobretudo a dois autores: Michel Foucault e Roland Barthes – dois autores dizendo que o autor está morto), pode-se dizer que nunca houve um festival de narcisismos como nesta época da chamada sociedade do espetáculo. “Aí os mortos – vivíssimos! – disputam seus 15 minutos de glória”, diz o poeta, que acrescenta: “estamos num cemitério originalíssimo, onde os artistas, embora zumbis, estão mais vivos do que nunca!”
Ele levanta também uma questão interessante sobre os famosos Manifestos lançados desde os princípios da Arte Moderna, que adiantavam que tipo de produto estava sendo colocado na praça. Deles, a arte do século XX caminhou radicalmente em outra direção: constituiu a Arte Conceitual, privilegiando o conceito em relação à obra, até chegar o momento, muito atual, de que o Conceito passou a dispensar a obra! “Como se a bula dispensasse o remédio”, reflete ele. A ideia da obra passou a ser a própria obra, instituiu-se que qualquer conceito lançado pelo artista é digno de ser observado e discutido, como se qualquer conceito fosse autosustentável ou tivesse uma dose de genialidade implícita.
Para empreender uma análise de todo esse processo, basta fazer o que ele chama de deslocamento de conceitos. Ele observa que todas as grandes transformações teóricas da história e da cultura foram deslocamentos de conceitos, como em Copérnico, Kepler, Einstein, Freud e Marx, pensadores que deslocaram conceitos, deslocaram o conhecimento e a perspectiva, instalando novos paradigmas.
Affonso Romano de Sant’Anna, refletindo sobre o urinol de Duchamp destaca um silogismo intrigante: se um urinol, como qualquer coisa, é obra de arte, então cocô de cavalo, como qualquer coisa, é obra de arte, e o mínimo que esse sofisma faz é acabar com a idéia de diferença e de identidade, o que traz conseqüências terríveis. Prega-se a mesmice. Hoje tanto na Arte quanto no Direito, há uma glamourização do culpado. Se Duchamp é o grande responsável pela morte da Arte (os livros de história da arte dizem isso) nunca o autor foi tão glamourizado, nunca se escreveram tantos livros interpretativos e elogiosos da sua obra. E assim como Duchamp, Andy Warhol e Joseph Beuys, quanto mais radical e mais “assassino” da arte for o artista, mais glorificado passa a ser.
A transgressão parece ter se tornado norma em nossa sociedade, entre os artistas, como se pode ver nas últimas Bienais de São Paulo. Mas quando um grupo de grafiteiros quiseram preencher o “vazio” da 28ª. Bienal, acabaram sendo presos a pedido dos organizadores da própria Bienal. De repente, diz Affonso, a Bienal não é mais um assunto de artista, mas um assunto de justiça!
Essa ideologia do tempo atual precisa de uma profunda revisão e de um profundo deslocamento, pois o pensamento pós-moderno envolucra tudo o que está acontecendo com a AC e impõe alguns comportamentos, o que leva à pergunta que ele fez em seu último artigo sobre a 29a Bienal de 2010: “é o artista um cidadão acima de qualquer suspeita?” E acrescenta: “o artista pode se comportar como um bebezão, que estraçalha brinquedos, que interrompe o que seja para chamar atenção?”
Há um traço da pós-modernidade que cria paradoxos que confundem a todos. O poeta cita um exemplo de um episódio recente da guerra de traficantes no Rio, quando um matou o outro e colocou sobre o cadáver da vítima um cartaz escrito assim: O lado certo da vida errada. “Isto é a síntese da pós-modernidade”, diz Affonso, e a AC nada mais é do que o sintoma de que algo mais grave está acontecendo em nossa época e que exige reflexão. A sociedade atual diz o tempo todo: transgrida! E aí surge o paradoxo: se a transgressão virou uma norma, não transgredir passou a ser a exceção. Se se diz atualmente “seja livre”, esta afirmativa é uma condenação.
O século XX trouxe grandes alterações nas formas da vida social mas nos jogou uma série de paradoxos que ainda não conseguimos resolver. E isso implica fazer uma profunda revisão na Arte de hoje, mesmo que seja para destronar os ícones que o pensamento atual protege como a uma religião, como Duchamp, por exemplo. Precisamos de um novo deslocamento teórico, portanto. E Affonso Romano convida a uma visão crítica, pois “só podemos avançar se tivermos nitidez sobre o que está acontecendo atualmente com o pensamento dominante, inclusive na AC”, criando um novo patamar onde possamos não só questionar a arte do nosso tempo quanto a ideologia vigente.
A maneira de resolver esse conflito é pensar isso pelo deslocamento, pela tentativa de um novo enfoque que agora privilegie, não mais a morte, mas a vida.