A violência que parte corações, corpos e vidas

O filme ‘Vidas Partidas’ aborda a violência contra às mulheres e reforça a necessidade de políticas públicas de gênero. Análise pode conter spoiler.

Vidas Partidas

Assisti ao filme Vidas Partidas na semana do Carnaval deste ano. Deixou-me atada à tela, me prendeu do começo ao fim, às vezes desesperada e noutras, esperançosa pela liberdade da principal protagonista. O filme é inspirado na história de uma brasileira, dentre dezenas de milhares que sofrem violência de gênero. O enredo se baseia num caso que ganhou projeção no fim do século passado e inspirou a mais importante lei contra a violência doméstica no Brasil, o caso de Maria da Penha Maia Fernandes. Uma Maria, dentre tantas outras, que sofrem abusos reincidentes dentro de seu próprio lar. Maria da Penha resistiu, acabando por dar voz e amparo legal a tantas mulheres do Brasil que sofrem cotidianamente violências diversas. Depois de levar um tiro do ex- marido, Maria da Penha ficou paraplégica, sofreu outra tentativa de homicídio por eletrochoque, mas resistiu e ganhou notoriedade internacional depois de seu caso ter sido levado para a ONU na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Sua luta contra a violência doméstica e pelos direitos das mulheres foi reconhecida muitos anos mais tarde. Em 2006, o então presidente Lula sancionou a Lei 11.340, sobre crimes domésticos, mais conhecida como Lei Maria da Penha.

Neste momento de pandemia da Covid-19, que impõe a necessidade do isolamento social e confinamento na residência, um fenômeno se ampliou, mas ainda não devidamente reconhecido.  Aprofundou-se a violência de gênero contra mulheres, por conta da coexistência forçada e prolongada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus, no histórico contexto nacional de uma sociedade patriarcal, androcêntrica e misógina. Por outro lado, vive-se sob um governo fiador da violência. O estímulo ao ódio e a facilidade do armamento enfraquecem os mecanismos de combate à violência contra as mulheres, decorrente do machismo estrutural. É justamente sobre essa situação dramática atravessada por Maria da Penha que o filme Vidas Partidas se desenrola.

O filme dirigido por Marcos Schechtman se passa nos anos 80 e conta com Graça (Naura Schneider) e Raul (Domingos Montagner), representando um casal comum que construíram seu projeto de vida, tiveram duas filhas e residem em um bairro da histórica cidade de Recife. Graça é a principal fonte de renda da família, uma vez que Raul, professor universitário, encontrava-se estudando para retornar ao mercado de trabalho.

Quando assume o posto de professor de Economia, começa a demonstrar um perfil possessivo e agressivo, comportando-se de forma abusiva com relação às conquistas pessoais de Graça. O primeiro momento de violência ocorre quando Graça está sendo homenageada, premiada por sua pesquisa científica na área de Bioquímica. O marido é tomado de ciúmes e ímpeto agressivo contra um professor que cumprimentava a homenageada e assim prossegue num crescendo quando o casal retorna à residência, furiosamente atacando a esposa Graça muito machucada, amedrontada e humilhada. Na sequência, Graça tem que se submeter a toda forma de truculência do marido, como chantagens e ameaças, inclusive para retirar dela a guarda das filhas.

Raul chega ao ponto de manipular um assalto, se corta, para em seguida atirar em Graça, que fica paraplégica. Dessa forma, exerce seu domínio quase que completo. Continua com sua covardia ao simular um acidente, descascando os fios do chuveiro elétrico do banheiro, até que Graça sofre um choque de grandes proporções. Conseguiu sobreviver, assumindo a decisão de resistir aos abusos.

Ao retratar o machismo predominante da época, quando o “título de posse” do homem sobre a mulher era encarado (quase que) como normal – os ataques de ciúmes dele, a promoção dela no trabalho, a desigualdade entre os gêneros a respeito do que é permitido para cada um, revela que o manto do Código Civil anterior mantinha elementos profundos de subordinação e da visão da mulher como propriedade masculina.

A luta do movimento feminista, em sua longa trajetória na conquista da lei Maria da Penha e na lei do feminicidio, não pode ser derrubada por um governo ultraneoliberal genocida como o de Jair Bolsonaro, que ataca fortemente a democracia, incita a violência em um país de extensa cultura e estrutura patriarcais como o Brasil. Neste país é histórica a opressão do patriarcado, do capitalismo e do racismo, quando se constatam esses números crescentes e alarmantes de violência contra mulheres e meninas.

Vidas Partidas é uma película que convida à defesa das políticas públicas de gênero, atacadas pelo atual governo federal e seus aliados, e um reconhecimento à luta e resistência de Maria da Penha e outras Marias, esmagadas sem poder resistir. Em memória e respeito a estas Marias que não puderam se defender, há que prosseguir as lutas por suas dignidades aviltadas e para que outras possam sobreviver e retomar suas vidas!

“Vidas Partidas” – Filme de 2016 / 1h 30min / Drama
Direção: Marcos Schechtman
Elenco: Naura Schneider, Domingos Montagner, Georgina Castro
Nacionalidade: Brasil

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