A vitimização israelense e os ataques em Paris

Para não ignorar o já vasto debate sobre a tragédia dos ataques à revista Charlie Hebdo e ao mercado judaico em Paris, na semana passada, aqui vai um conjunto de pensamentos sobre as falas que se seguiram, o espetáculo montado na mídia e pelos líderes das potências mundiais e o roubo da cena pelo primeiro-ministro de Israel.

Neste domingo (11), aquela já apresentada como a maior manifestação da história da França reuniu cerca de 60 chefes de Estado e Governo na capital, entre os quase dois milhões de franceses. No país todo, estima-se que quase quatro milhões se manifestaram em “unidade” e solidariedade às vítimas, num apelo contra o terrorismo.

Muito já foi dito sobre: 1) a legitimidade da “sátira” desenvolvida em uma trajetória diversa da revista; 2) mais um episódio que coloca os muçulmanos no centro das represálias já ocorridas, mas pouco noticiadas, em um país cada vez mais islamofóbico; 3) as repercussões do e no envolvimento do “Ocidente” e suas agressões pelo Oriente Médio em nome do que se apresenta como “guerra contra o terrorismo” e 4) as elucubrações sobre liberdade de expressão versus a “permissão para ofender” versus o respeito às religiões, ou ainda, a persistência dos ataques contra o Islã. Para resumir: os paladinos da “liberdade de expressão” insistem em ignorar o contexto em que os muçulmanos não gozam da mesma situação social que os cristãos, donde a comparação entre charges sobre Jesus e Maomé para questionar a “falta de senso de humor” dos primeiros não é justa.

O que se segue à condenação necessária contra o terrorismo e o massacre de seres humanos (assim como na Nigéria, na Palestina, na Síria, na Colômbia, nos Estados Unidos e tantos outros lugares)? Foi surpreendente ver surgir com rapidez a crítica à campanha “Eu sou Charlie” (“Je Suis Charlie”) com uma análise da hipocrisia da revista e das retóricas acompanhantes. Aqueles que classificaram as vítimas como “mártires da liberdade de expressão” no afã da resposta comovida pelo massacre dos cartunistas, do policial e do transeunte poderão reavaliar sua posição. É óbvio, entretanto, que criticar o desrespeito preconceituoso e generalizante (como todo preconceito) da publicação não significa justificar a violência ou racionalizar a morte das vítimas. O ataque foi abominável.

As religiões, como já se argumentou exaustivamente, são frequentemente instrumentalizadas por líderes (“hábeis artesãos do terror”, como disse Amartya Sen em seu livro “Identidade e Violência”), para mobilizar grupos em torno de uma agenda política frequentemente encoberta. Também já se analisou a mesma prática na construção de teses simplistas e manipuladoras sobre os “choques de civilizações” (“profecias” auto-realizadoras?), tão bem-sucedidas na empreitada imperialista pela suposta “guerra global contra o terror” e tantos outros massacres derivados.

O que surpreendeu foi a manifestação massiva na França, assombrada pelo intensificar da retórica e da violência xenófoba da extrema-direita de Marine Le Pen (presidente do partido anti-imigração Frente Nacional e que viu na tragédia uma oportunidade eleitoreira). A marcha em busca pela “unidade” (atendida inclusive por imãs, líderes muçulmanos), destacou a presença do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Afinal, o ataque contra o mercado judaico, onde quatro pessoas morreram, serviria de plataforma para um premiê no rumo das eleições antecipadas devido ao abalo do seu governo. Um exercício enfadonho, mas ainda assim relevante, é a cínica comparação matemática sobre 12 vítimas serem mais do que quatro para questionar a ênfase que Netanyahu deu ao antissemitismo e à vitimização dos judeus em geral, já em Paris, quando discursou em uma sinagoga, com um convite aos franceses judeus à emigração para a “sua terra”, Israel. O premiê francês Manuel Valls respondeu pedindo que os judeus não abandonem o país, pois sem eles “a França não seria a França”. Não se noticiou a mesma ênfase à importância da população muçulmana, com mais de cinco milhões de pessoas integrando uma população total de quase 67 milhões.

Interessante foi um artigo desta segunda (12) no jornal israelense Haaretz que explicava o pedido do presidente francês François Hollande para que Netanyahu não fosse a Paris. Hollande teria indicado preferir a ausência do mandatário sionista para evitar que a solidariedade à França contra o terrorismo divergisse para a situação em Israel e na Palestina.

Entretanto, ao saber que seus rivais, o Chanceler Avigdor Lieberman e o ministro da Economia Naftali Bennett, extremamente agressivos contra os árabes, compareceriam, Netanyahu decidiu não ceder o palanque. Hollande então convidou o presidente palestino Mahmoud Abbas, que também esteve na marcha dos dois milhões. O governo israelense condenara os atentados em Paris como “amostras” do que é capaz o “Islã radical” (ainda que líderes religiosos tenham enfatizado a contradição inerente dos atos com os valores islâmicos) e comparou-os com o movimento de resistência e partido palestino na Faixa de Gaza, Hamas, “contra Israel”. A seguir, o Hamas condenou o ataque à Charlie Hebdo e rechaçou a tentativa israelense “desesperada” de comparar suas ações de resistência com o terrorismo global. O Haaretz, entretanto, notou apenas uma ausência da condenação, por parte do Hamas, contra o ataque ao mercado judeu.

Como se vê, Charlie Hebdo e a tragédia na França não podem ofuscar a vitimização israelense e sua investida em uma “hasbara”, ou propaganda, sobre “a ameaça” permanente enfrentada por um heroico Israel ou pelos judeus, o que só pode ser resolvido com a empreitada sionista de emigração para e a colonização “da terra”, com os consequentes massacres e opressão dos palestinos (cuja identidade é reduzida a de árabes e muçulmanos violentos) num conflito pretensamente religioso e de “choque” entre “o civilizado e o bárbaro”. Está aí uma das principais correlações entre o pensamento imperialista ocidental e o sionista. As vítimas da Charlie Hebdo ou do mercado, o terrorismo, a “liberdade de expressão” e os limites da sátira irresponsável viram mero pano de fundo.

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