Acordos Brasil e EUA – A lembrança de Rui Barbosa e as andanças de JB

Entregar de olhos fechados à política internacional dos Estados Unidos não é o desejável

Na sua famosa contribuição ao Brasil dos começos do século XX “A Imprensa e o Dever da Verdade”, dizia Rui Barbosa que com os Estados Unidos o Brasil deveria ter laços de amizade, porém, afirmava com clareza: “não quero, nem querereis nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos Estados Unidos”

Bem por isso achamos que causaria espanto ao imortal jurista baiano a simbólica imagem do presidente JB com a bandeira dos Estados Unidas às suas costas. É que, na verdade, mas que relações contraproducentes, o Brasil e o EUA por conta do posicionamento do Chefe do Executivo federal mantêm na atualidade uma coabitação perigosa e obscena que apresenta dimensões variadas.

Lembremos como o presidente brasileiro repetiu as palavras que Trump pronunciara meses antes para, de forma irresponsável, caracterizar o Covid-19; logo, como assumiu o negacionismo como fórmula e tratamento da crise sanitária. O resultado, nefasto tanto lá como aqui, está a olhos vistos.  

Em linhas gerais a política externa atual quebra, pelo menos e para não alongar este comentário, dois sentidos daquilo que nos cenários de debate das relações internacionais se caracteriza como a orientação diplomática histórica do Estado brasileiro. Um desses cenários foi a recentemente realizada Brazil Conference Harvard MIT, que contou com a participação do ex-ministro Rubens Ricúpero e dos ex-chanceleres Celso Lafer, Celso Amorim e Aloysio Nunes Ferreira.  

Em um primeiro sentido, lembrado pelo ex-ministro Celso Lafer na oportunidade, há uma constante violação dos princípios da diplomacia nacional definidos alhures. Mencionava o professor da USP que o Conselho de Estado do Império proclamava uma “diplomacia inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”. Esse paradigma, sem dúvida, pode ser com toda tranquilidade complementado com a sustentação contemporânea da “diplomacia ativa e altiva” construída sob a direção do Ex-ministro Celso Amorim, que levou o Brasil a um patamar diferenciado na sociedade internacional. 

E vale também notar que esses postulados se entrelaçam com os dispositivos que se projetam às relações internacionais a partir de 1988.  Com efeito, no artigo 4º da Constituição em vigor se estabelece que o Brasil deverá atender aos princípios, entre outros, de prevalência dos direitos humanos, de defesa da paz e de respeito à autodeterminação dos povos. Não é, de fato, o que se desprende da atuação da “diplomacia presidencial” ou da atuação do próprio Ministro das Relações Exteriores, que permanentemente procuram o confronto com vizinhos e toma partido em lides internacionais nas quais se prestam á defesa do interesse e da política do American first de Trump.  

O outro sentido, onde também há uma quebra, é na perspectiva de relações internacionais que respeitem as diretrizes do sistema das Nações Unidas. Especialmente quando se trata de preservação da vida, da paz e da segurança, valores estampados na Carta de 1945. Neste campo, é onde a questão assume um lastro extremamente negativo, porque envolve posicionamentos geopolíticos.    

Nesse sentido, preocupa a firma do Tratado para a Pesquisa e Desenvolvimento de Produtos Militares, assinado o 9 de março, quando da visita de Bolsonaro ao Comando Sul, porque, simplesmente, materializa a presença continental da OTAN sob a ótica dos acordos RDT&E – tratados para ensaios e avaliações- e objetiva harmonizar a estratégia de contenção de “ameaças” na região  ás potências hegemônicas. Há um bloco de acordos, ao qual se adicionam o RDT&F e o Global Entry, que concedem visto permanente a funcionários dos EUA e abrem as portas ao chamado “novo intercambio de tecnologia”. 

Quem estuda o tema se depara com que estes tratados complementam os firmados em 2015, como o Acordo sobre a Cooperação em Defesa (DCA) para realizar práticas militares conjuntas e o Acordo sobre medidas de Segurança e informações Militares Classificadas (GSOMIA). Ao mesmo tempo se reafirma a franquia para que os EUA desenvolvam atividades no Centro Especial de Alcântara no Maranhão. 

Bem se conhece que a indústria militar é muito mais ampla que a de armas e munições. Compreende a área de satélites e controle do espaço aéreo, a segurança cibernética e de comunicações, as plataformas e controle territorial, naval, fluvial, o setor tecnológico e de pesquisas. Toda essa estrutura pode se dirigir á vigilância preventiva, mas também para, nos termos da OTAN, contra aqueles por ele denominados de “fatores de risco à segurança regional”, que podem incluir Estados ou setores da sociedade civil.

O argumento mais comum para a defesa dessas negociações é o econômico. Os países que firmam o RDT&E tem a vantagem comparativa de que seus produtos ganham um carimbo de sobrepreço. As Estatais EMGEPRON – que promove e executa projetos e comercializa produtos na área naval – a IMBEL– indústria de material bélico do Brasil – e a AMAZUL – de tecnologia de defesa – por cada dólar em investimento podem gerar lucrar dois.

Vamos deixar muito claro que não se trata de debater sobre a autonomia militar brasileira ou sobre a necessidade de ter Forças Armadas nacionais, regulares e permanentes em condições de prestar o serviço que a Constituição determina, especialmente a defesa da pátria. Não se trata disso, senão de muito pelo contrário. 

O que nos chama a atenção é que nessa reunião de março Trump-JB, os Estados Unidos designaram a Brasil e Colômbia como seus “aliados militares preferenciais para atividades no hemisfério sul”. Isso já estava encaminhado na prática quando os países se aliaram na reunião da OEA de setembro de 2019 para reativar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR -.

Depois da reunião, Graig Feller, o conhecido “Almirante do Caribe” manifestou à agência oficial EBC que os acordos são um resultado de um debate sobre “as ameaças que minam a democracia dos Estados Unidos e do Brasil”. 

Como é costume, o texto dos acordos expressa que não há nenhum atentado contra a soberania nacional. Contudo, reiteramos, ainda assim a questão é preocupante se levamos em conta que tratados desta natureza firmados pelos EUA precedem intervenções militares, aquelas que somaram mais de 200 no século XX e que, como afirma o Carnegie Endowment for International Peace, 16 delas foram para criar nation-building através da imposição violenta de instituições consideradas “democráticas” que de imediato passaram a defender os interesses econômicos e de segurança extraterritorial da potência.

Por outro lado, juntando as coisas, temos por um lado a tentativa de provocar e agredir a Venezuela na vergonhosa Operação Gedeon, a partir de território colombiano e, pelo outro, o fato sem precedentes de JB requerer a saída da missão diplomática de Venezuela em Brasília. São elementos que costurados deixam uma impressão sobre o mal posicionado que está o Brasil – e a Colômbia, claro – no contexto dos objetivos tanto expostos na Constituição de 1988 quanto aqueles contidos na Carta de ONU de 1945.

O ex-chanceler Celso Amorim opina que o país está em situação de subordinação, metido numa lógica de confrontação com a China e a Rússia. Nas suas palavras, uma política externa errática, que nem sequer se viu durante a ditadura militar.

Como advertia Rui Barbosa: se entregar de olhos fechados à política internacional dos Estados Unidos não é o desejável. E certamente nunca foi e hoje muito menos. O Brasil está chamado a ocupar um lugar muito diferente, de defesa da paz e da segurança regional, é a sua tradição, sua história e deveria ser o compromisso do Itamaraty e, é claro, do irresponsável que hoje ocupa a cadeira do Executivo.   

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