Ainda sobre o crack

Para a polícia, viciados. Para profissionais de saúde, dependentes. Para o tráfico, clientes. Em São Paulo, nóias; no Rio de Janeiro, ratos; em Porto Alegre, pedreiros. A crescente massa de usuários de crack tem vários nomes. O que não muda são as si

Entre os principais motivos que levam ao uso de drogas psicoativas estão pais ou parentes próximos com histórico de dependência, baixo nível de auto-estima, miséria e instabilidade familiar. E este caldo social está presente em qualquer periferia do mundo capitalista, fazendo com que, apesar das condições de miserabilidade, esta população contribua ainda mais para o acúmulo de fortunas em paraísos fiscais e bancos oficiais. Afinal de contas, tráfico de armas, drogas e seres de humanos são as três atividades mais rendáveis do planeta!


 


 


O crack é uma droga nova no cenário mundial. Surge entre 1984 e 1985, voltado para os guetos negros ou hispânicos de Los Angeles, Nova York e Miami, com precárias condições de vida e empregabilidade. Nesta década em que o consumo da cocaína tinha sua expansão nas classes mais abastadas, havia todo um mercado disponível nas classes carentes. De lá, a nova droga logo se espalhou pelo mundo.


 


 


Segundo o site Álcool e Drogas sem Distorção, a presença do crack começou a ser relatada em outros países no final dos anos 80. Na Espanha, o crack apareceu na região sul do país (Sevilha), decrescendo, gradativamente, até alcançar as cidades do Norte (Barcelona). Portugal e França apresentam índices insignificantes de consumo de cocaína, em termos de saúde pública, além de não fazerem menções sobre o crack. A Itália detectou a presença do crack entre minorias de imigrantes (senegaleses), envolvidos no mercado do tráfico e habitando áreas marginalizadas. No Reino Unido, o crack surgiu em bairros pobres e marginalizados, habitado por minorias de imigrantes, causando disputasde espaço pela distribuição e criminalidade. A substância era relativamente conhecida pelo público jovem e passou a ser utilizada por boa parte dos antigos usuários de cocaína, com predomínio maior entre os negros caribenhos.


 


 


A Alemanha observou a chegada do crack a partir da primeira metade dos anos 90. A Holanda parece não ter sentido a presença do crack até 1993 (permanecendo restrito a minorias de imigrantes do Suriname. Nos países escandinavos não há relatos de uso de crack. Na Austrália, o crack parece ter causado pouca ou nenhuma repercussão. Já nos países asiáticos, tais como Japão, China e Filipinas o consumo de estimulantes se dá preferencialmente com as anfetaminas, não havendo espaço para congêneres. Sinais de crack e drogas sintéticas (club drugs) tem sido detectados na Índia. A África do Sul começou a sentir a presença do crack por volta de 1993, principalmente nas zonas miseráveis de Joanesburgo. (1)


 


 


Impossível, com os dados acima, não reparar na relação crack/pobreza… Onde o capitalismo está mais desenvolvido e as relações de exploração se mostram mais duras. O consumo ocorre nas periferias,entre imigrantes, desempregados. Nos países onde a presença do Estado é forte, ou a economia é mais estável, a presença da droga é menor.


 


 


No Brasil, o primeiro registro de apreensão de crack aconteceu em 1990 em São Paulo (Dados do DISE – Divisão para Investigaçãosobre Entorpecentes de São Paulo). De lá, rapidamente chegou aos principais centros urbanos. Nas cidades, a droga consideravelmente mais barata que a cocaína, foi distribuída nas periferias, substituindo outras drogas como inalantes e a própria cocaína injetável. Uma das táticas usadas foi aumentar oferta de crack nos pontos de tráfico, enquanto a de outras drogas, como maconha e cocaína diminuíram. Com a popularização, a droga alcançou também as pequenas cidades do interior.  


 


 


A mistura da pasta de cocaína com bicarbonato, amônia e outras substâncias, quando fumada, provoca um efeito mais potente e rápido que a cocaína injetável, associando-se ainda alucinações, euforia, sensação de poder, etc. Junto, vêm os problemas físicos: perda de neurônios e da capacidade cognitiva, degeneração muscular (rabdomiólise), pulmonar, circulatória. Na bibliografia disponível é unânime a rapidez da instalação da dependência. E, após um tempo de uso, o dependente passa a usar doses cada vez maiores para poder fugir aos efeitos da abstinência: depressão, irritabilidade, ansiedade. Existem registros de uso de 30 até 50 doses (pedras) por dia. Este ciclo todo, do primeiro uso até a dependência total, leva de dois a seis meses.


 


 


Os efeitos sociais do uso são igualmente perversos. Ao voltar-se exclusivamente para o uso e consumo da droga os dependentes perdem vínculos afetivos, abandonam atividades que porventura desenvolvessem como trabalho ou escola e passam a viver exclusivamente em função da obtenção e do uso da droga trazendo entre outras perdas a elevação da evasão escolar e do aumento da população de rua.


 


 


Hoje, pode-se dizer que o país vive uma epidemia causada pelo consumo desta droga, de tudo o que cerca e se relaciona a este consumo. Num país que sabidamente não consegue ocupar seus adolescentes e jovens adultos com programas sociais, estudo ou trabalho, o tráfico acaba absorvendo parte deste excedente. Mas ao contrário da ponta conhecida do crime organizado, o tráfico do crack tem por características organizacionais ser comandado por indivíduos mais jovens, e muitas vezes também usuários. Aviolência que cerca as regiões de tráfico desta droga, a prostituição, os furtos e roubos necessários para a manutenção do vício, a disputa por territórios são apenas a parte visível da tragédia.


 


 


O que se sabe desta droga é que, ao contrário de outras como o álcool ou a maconha, ela não permite divergências. Em se tratando de crack seria impensável ouvir um presidente ou parlamentar admitir já a ter experimentado, ou seu uso recreativo, muito menos uma marcha em defesa de sua legalização. O crack destrói, mata, e agora que já não demonstra mais preferência só por pretos ou pardos pobres, nos aparece menos distante, muito mais perigoso. A tal “viagem sem volta”. A única saída para lidar com esta droga é a prevenção. Mas engana-se quem pensa em prevenção como um conjunto de palestras, slides e folhetos. A prevenção para acontecer deve combater hipocrisia, envolver os setores comprometidos com a construção de uma nova sociedade num amplo e franco diálogo.


 


 


Prevenção ao uso do crack envolve a erradicação da miséria, com educação de qualidade, com atividades lúdicas e formativas capazes de atrair e manter na escola crianças e adolescentes. Com trabalho digno, capaz de garantir um mínimo de dignidade e estrutura familiar, que impeça crianças, cada vez mais moças, de se tornarem meninos e meninas de rua. Prevenção se faz tratando da saúde e do sofrimento mental, algo quase impossível quando a rede pública de saúde praticamente não disponibiliza profissionais desta área para a população.


 


 


Prevenção se faz com punição prioritária ao grande traficante, porque para cada pequeno traficante preso na “boca”, surgem dez que estão esperando a vaga. Mas o capital necessário para fazer girar o grande tráfico não está na periferia, e o “tubarão” do tráfico raramente é identificado e preso.


 


 


O padre Savério Paolillo, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente Mônica Paião Trevisan, no Parque Santa Madalena – São Paulo, SP – lembra uma menina que, sob o efeito do crack, dizia ver muito verde,belos animais e um rio. Na verdade, estava sentada junto ao mato, entre ratos, na beira do esgoto. “A ânsia de alegria e paz é muito grande”, diz Savério. Concluindo, prevenção é fazer com que a sociedade e a vida sejam suficientes para que as crianças não precisem se drogar para sentir alegria e paz.


 


Nota


 


(1) álcool e drogas sem distorção 

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