Anotações sobre marxismo e classes sociais (II): sujeito e objeto

Faz parte da análise materialista dialética, marxista, das classes sociais a compreensão seus fundamentos sociais, objetivos. O caminho indicado por Marx e Engels procura-os na produção social, nas relações de cooperação e conflito que se dão em seu interior, relações que compreendem a produção da riqueza material, sua organização, e a distribuição de seus produtos e serviços.

Marx e Engels definem as classes a partir das relações de produção, da forma como está organizada a produção dos bens necessários à vida, e estão baseadas nas diferentes formas de exploração do trabalho que caracterizam os diferentes modos de produção.

A exploração do trabalho é objetiva, e o fundamento da existência de classes antagônicas é a oposição entre os proprietários dos meios de produção e os produtores diretos expropriados.

A definição marxista de classe social foi sintetizada por Lênin, principalmente em um pequeno parágrafo do artigo Uma grande iniciativa (1919): "Chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado de economia social" (Lênin: 1980).

É uma definição de grande precisão e abrangência. Nela a determinação econômica das classes sociais está claramente exposta, sendo o fundamento básico da explicação. A forma de produção é articulada com as formas de repartição, circulação e consumo. E, na forma de produção, as relações de propriedade dos meios produtivos estão em ligação com as relações de trabalho. Lênin teve ainda o cuidado de distinguir entre a propriedade jurídica e a propriedade real dos meios de produção e dos produtos.

A definição de Lênin permite considerar o tamanho e a maneira de aquisição, por cada classe, da parcela da riqueza social que lhe cabe. Permite também incorporar na delimitação das classes e de seus estratos, outras características (como as enfatizadas pelas teorias convencionais de estratificação social), entre elas o nível de instrução, o local de moradia, ou o prestígio das ocupações.

Mas acima de tudo a definição destaca, com justeza, a exploração do trabalho como base objetiva que diferencia qualquer classe de proprietários exploradores da classe correlacionada de trabalhadores expropriados. Isto é, o mesmo princípio explicativo mencionado anteriormente.

A visão leninista leva em conta, articuladamente:

• o lugar ocupado no sistema de produção
• a relação com os meios de produção
• o papel na organização social do trabalho
• a maneira de obtenção e o tamanho da parte da riqueza social

É preciso levar em conta que os clássicos do marxismo não reduziram a compreensão das classes sociais apenas aos aspectos “objetivistas” de sua expressão, mas enfatizaram continuamente a relevância dos aspectos subjetivos que fazem parte deste fenômeno social, traduzidos na consciência de classes e se materializa na organização dos trabalhadores com base em um programa político para a defesa de seus interesses contra a opressão capitalista e na própria luta política de classes orientada por esse programa e dirigida pelo partido de classe.

A consideração dos aspectos “objetivistas” para a compreensão das classes sociais é uma das dimensões da compreensão marxista das classes socais.

A outra dimensão fundamental é a percepção subjetiva da exploração e das contradições baseadas, ou decorrentes com a realidade material das condições de produção e da própria existência concreta, objetiva, dos seres humanos que compõem as classes, e das relações que estabelecem entre si na produção material.

Esta dupla dimensão, subjetiva e objetiva, fundamenta e constitui a consciência de classes.

Na análise marxista, a compreensão das classes não se reduz aos aspectos estatísticos (propriedade, renda, padrões de consumo e comportamento, entre outros), nem à percepção subjetiva de pertencimento a um agrupamento humano.

Ela exige a unidade, num nível superior, desses aspectos objetivos e subjetivos, articulando as contradições concretas de existência que incluem as relações de produção e distribuição (condições objetivas) à percepção das contradições e da necessidade e possibilidade de superá-las (condições subjetivas), como demonstrou enfaticamente Swingewood (1978) ao analisar o conjunto da obra de Marx.

Sendo a dominação de classe econômica e politica, e também ideológica e cultural, a consciência da dominação e da necessidade de lutar contra ela e superá-la é um aspecto essencial da teoria marxista sobre as classes sociais.

Num momento mais desenvolvido a consciência de classe é materializada na ação unificada cujo ponto mais alto é a organização política constituída pelo partido de classe. Esta dimensão tem inúmeros registros nos escritos de Marx e Engels.

O combustível para o despertar da consciência de classe é a contradição que todo trabalhador assalariado vivencia cotidianamente nas suas relações com a estrutura de poder dentro da empresa, formada pelo patrão e seus representantes. E, fora da empresa, no âmbito social mais amplo, formada pelo Estado e seus organismos que refletem, a nível jurídico e institucional, as relações de dominação que alimentam e mantém a ordem social capitalista.

A percepção desta realidade contraditória e antagônica que atua no coração da produção capitalista, a contradição capital-trabalho, é a centelha que pode se transformar em chama no desenvolvimento da consciência de classe. Ela pode se transformar em luta contra o capital (variando desde as formas originarias e primárias de ação até a contestação mais aguda do sistema capitalista) e alcançar, numa fase mais avançada, a forma da consciência de classe socialista e revolucionária, cristalizada num partido de classe que representa a junção do programa de reordenação social que preconiza a ultrapassagem do capitalismo através da ação política consciente e unificada da classe. Marx e Engels explicitaram esta tese em inúmeros textos.

No Manifesto, na seção Burgueses e proletários, Marx e Engels (1987) rastrearam o despertar da consciência de classe dos trabalhadores ao descrever as diferentes etapas do desenvolvimento do proletariado que, partindo de lutas iniciais e ainda isoladas em uma mesma fábrica, avança para a formação de associações e sindicatos, evolui para a centralização da resistência em uma luta nacional de natureza política.

A organização do proletário em classe, dizem Marx e Engels, é sua organização em um partido político próprio e classista (Marx: 1975).

Referências

Lênin, V. I. “Uma grande iniciativa”. In Obras escolhidas, vol. 3. São Paulo, Alfa Omega, 1980.

Marx, Karl. “Carta a F. Bolte” (23/11/1871). In Marx, Karl, e Engels, Friedrich. Obras Escogidas, tomo II; Madri, Editorial Ayuso, 1975.

Marx, Karl, e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Moscou, Edições Progresso, 1987.

Swingerwood, Alain. Marx e a teoria social moderna. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978.

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