Anotações sobre marxismo e classes sociais (VI): classe e lei do valor

A tese do “fim do trabalho” foi popularizada desde a década de 1970 embora seja mais antiga entre os estudiosos. Foi difundida junto com outra, que fala do definhamento do proletariado e da perda de seu papel histórico.

São ideias acompanhadas de outras. Primeiro a de que a lei do valor já não teria vigência na produção capitalista. Depois, a tradicional visão quantitativa do proletariado, fortalecida desde a 2ª Internacional pela autoridade de Karl Kautsky mas com escasso amparo nos escritos de Karl Marx, que via a redução do proletariado e a ampliação da classe média como o “curso da sociedade burguesa”, como escreveu em Teorias da Mais Valia.

Muitos autores, que defendem o “fim do trabalho”, basearam suas análises principalmente no estudo da produção capitalista na Europa Ocidental e nos EUA; deixando de lado o que ocorre na produção capitalista nos demais países, principalmente na Ásia e na América Latina. Sem levar em conta que a produção capitalista se mundializou fortemente depois da Segunda Grande Guerra em busca de novas fontes de mais valia.

As condições da globalização neoliberal, hegemônica desde a década de 1980, refletem as imposições do capital na busca por trabalho barato, por mais valia.

É preciso citar, neste particular, a imposição imperialista, às demais nações, da livre circulação de mercadorias e do capital. E o fortalecimento das barreiras contra a circulação de trabalhadores, imposição dramaticamente ilustrada pelos muros construídos para impedir o trânsito de migrantes rumo a países onde há salários melhores, como a barragem construída na fronteira dos
EUA com o México.

O imperialismo impõe ao mundo liberdade de trânsito para o capital e as mercadorias e, por outro lado, exige a manutenção de estoques de força de trabalho a preços baixos. Exige dessa forma a permanência dos diferenciais de salários entre os países e de condições favoráveis para sua exploração pelo capital.

O conceito de classes sociais derivado das ideias de Marx e Engels não tem lugar na sociologia convencional, que desqualifica o marxismo como pensamento próprio do século XIX. Esta ideia tem sido defendida por autores de grande prestígio acadêmico para quem o pensamento de Marx e Engels já não seria aplicável na sociedade “pós-industrial”, ou “pós-capitalista”, como muitas vezes se referem ao capitalismo maduro desde meados do século XX.

A sociedade atual seria mais complexa e não comportaria o conflito entre duas classes polares, a burguesia e o proletariado. A luta de classes teria perdido a intensidade do passado e teria amenizada pelo estado de bem estar social (vigente principalmente na Europa entre o final da Segunda Grande Guerra e as décadas de 1970/1980), pela melhoria na distribuição de renda, extensão do direito de voto aos trabalhadores e a adesão operária ao capitalismo com a disseminação do fordismo e do consumismo típico do capitalismo maduro.

Esta seria a "sociedade afluente" onde a incorporação do proletariado amortizaria a consciência de classe e a luta social, mesmo persistindo os extremos de grande riqueza e pobreza.

Esta sociedade seria cada vez mais dominada por uma maioria formada pela chamada “classe média” e seu estilo de vida típico, sendo avessa à crítica ao capitalismo e à pregação socialista.

O escritor francês Serge Mallet havia proposto, nos anos 1960, que o proletariado teria sido substituído como vanguarda revolucionária por um segmento técnico e intelectual (tese repetida no Brasil por Jacob Gorender: 1999) que tenderia a acompanhar os setores administrativos e gerenciais, resistindo à identificação com o proletariado. São setores que fazem parte da hierarquia burocrática sendo entrosados com a administração do capitalismo e a extração da mais valia (Mallet: 1969; Swingerwood: 1978).

São tendências controversas. Muitos especialistas esperavam que o proletariado (principalmente os trabalhadores com maior especialização e renda mais alta) adotasse o estilo de vida da classe média. Mas não foi o que ocorreu, como mostrou pesquisa feita entre trabalhadores da indústria automobilística inglesa por pesquisadores da Universidade de Cambridge em 1962 e publicada em 1969 (citada por Swingerwood).

A pesquisa mostrou que aqueles "trabalhadores afluentes" mantinham hábitos proletários. Continuavam a viver em bairros operários, votavam no Partido Trabalhista, filiavam-se principalmente a sindicatos, evitando associações típicas da classe média, e não tomavam os trabalhadores não manuais como modelos.

Estas conclusões relativizam as teses sobre o “aburguesamento” da classe operária, que se demonstraram um “contrassenso sociológico”, escreveu Swingerwood.

É um “contrassenso” antigo. Já na década de 1930 intelectuais ligados à Escola de Frankfurt diziam que a classe operária teria aderido ao capitalismo e perdido suas credenciais como força dirigente da luta social. Embora estas teses lembrem aquelas que se referem à “aristocracia operária”, elas não podem ser confundidas pois estas refletem o fenômeno indicado por Lênin, entre outros, ao descrever o comportamento de setores da classe operária, nunca do com junto dela.

Depois da Segunda Grande Guerra surgiu na Europa grande número de estudos sobre os trabalhadores, e seus autores argumentavam que o relativo bem estar alcançado nos países de capitalismo desenvolvido teria sido responsável por uma certa amenização da luta de classes e pelo “virtual eclipse da consciência política da classe trabalhadora” (Swingerwood: 1978).

Na década de 1960 Herbert Marcuse popularizou essas opiniões e propôs que o lugar revolucionário da classe operária teria sido ocupado por novos agentes históricos como jovens, mulheres, negros etc. (Marcuse: 1969; Slater: 1978).

Analistas soviéticos dos anos 1960 e 1970 também contribuíram para fortalecer a ideia de que o papel histórico da classe operária sofria mudanças. Melnikov, por exemplo, distinguiu uma concepção “ampla” e outra “restrita” da classe operária e incluiu no conceito ampliado os trabalhadores intelectuais, científicos e administrativos (Melnikov: 1978).

É preciso lembrar, finalmente, a tese, paralela a essas, do ex-trotskista norte-americano James Burnham (A revolução dos gerentes, 1941). Segundo ele os métodos de gerenciamento levarão à superação do capitalismo por um modo tecnocrático de produção, devido a uma virtual separação entre propriedade privada e controle dos meios de produção, que estariam sendo crescentemente assumidos pelos gerentes, isto é, pela tecnocracia.

É preciso revisitar estas concepções para lembrar alguns pressupostos básicos da avaliação, no âmbito do marxismo, do papel histórico da classe operária, sua relevância e as condições para sua superação.

Marx, Engels e Lênin jamais afirmaram a necessidade do predomínio numérico ou quantitativo da classe operária para dirigir a luta dos trabalhadores do campo e da cidade. A credencial para esse papel histórico é qualitativa e decorre da natureza de sua atividade, da sua relação coletiva, social e não proprietária, com os meios de produção. Trata-se de um estilo de vida que prepara um futuro onde não haverá a propriedade privada dos meios de produção.

Antes de afirmar a tese de que a lei do valor já não vigora na produção capitalista, ou que a mais-valia teve uma transformação essencial, é preciso demonstrá-la.

O que está na base da afirmação do “fim do trabalho” (e da “classe operária”) é a crença de que a lei do valor já não vigora na produção capitalista pois na apregoada sociedade pós-industrial (ou do conhecimento) a agregação de valor se daria essencialmente através do trabalho intelectual. Isto é, o trabalho direto já não seria essencial para a produção e, portanto, a lei do valor e a mais-valia teriam vigência reduzida.

Mas essas ideias se defrontam com algumas dificuldades. Uma delas decorre do fato concreto de que os grandes monopólios capitalistas procuram, cada vez mais, incorporar em sua cadeia produtiva a mão-de-obra barata dos trabalhadores da China, Taiwan, Coréia, México e outros países da periferia pobre do mundo capitalista.

Essa realidade mostra não que o trabalho tenha acabado mas que foi “desterritorializado” e mudou geograficamente na busca, pelo capital monopolista, de força de trabalho com remuneração mais baixa.

Um exemplo desta realidade foi citado pelo sociólogo James Petras, da Universidade de Birghamtom, N. York, EUA. Em 2005 cerca de metade das exportações da China para os EUA procediam de empresas multinacionais estadunidenses instaladas naquele país asiático. Citando o jornal Financial Times Petras mostrou que a China era “o último estágio” da cadeia produtiva de “grande quantidade de produtos exportados da Ásia aos EUA” pois importava, para produzi-los, componentes dos demais países da região, inclusive do Japão. O valor agregado localmente, nas exportações chinesas aos EUA, era “de apenas 15 %” (FT. 11 de outubro de 2005, citado por Petras: 2005).

Na célebre equação da composição orgânica do capital, Marx mostrou que, quanto maior for o capital constante menor será a taxa de lucro do capitalista. As mudanças tecnológicas impõem, como sempre ocorre no capitalismo, o aumento do volume de investimentos em maquinarias e matérias-primas (capital constante) e a redução do volume da mão-de-obra empregada (capital variável).

Essa é a realidade visível em qualquer empreendimento capitalista e acena com o sonho dos capitalistas de todos os tempos, a fábrica sem operários.

Se a tese de Marx é correta – e continua sendo – a pergunta decorrente das ideias que sobrevalorizam as mudanças tecnológicas é a seguinte: se é certo que a alteração na composição orgânica do capital gera a tendência à queda na taxa de lucros, de onde sairá o lucro capitalista, a valorização do capital numa economia cuja base tecnológica e produtiva esteja fundamentada em semelhante composição orgânica do capital, onde o capital variável (os salários, o trabalho direto) seja cada vez menos presentes?

Esta é a grande dificuldade que as teses que falam do “fim do trabalho” enfrentam para sua comprovação. Dificuldade ligada à análise feita por Marx em O Capital das condições de geração e apropriação da mais valia na produção capitalista, onde demonstrou que o lucro capitalista decorre do trabalho não pago extraído aos operários, e formulou a célebre equação da composição orgânica do capital para explicar como essa apropriação ocorre nas entranhas da produção.

Marx mostrou que o ganho do capitalista não vem da parcela do capital constante (matérias primas e meios de produção) mas da parcela do capital variável (os salários). Por isso, quanto menor o capital variável (os salários) menor também o lucro do capitalista, que resulta da diferença entre a parcela de capital variável desembolsada na forma de salários e o valor apurado pelo capitalista ao vender os produtos obtidos.

Esse comprometimento do lucro representado pela crescente incorporação da tecnologia que poupa mão de obra leva à questão crucial de que, sem o trabalho vivo dos trabalhadores diretos (designado naquela equação como capital variável) o capitalismo não sobrevive. Isto é, sem proletariado não há capitalismo.

Referências

Gorender, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo, Ática, 1999

Gorz, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro, 1982

Harvey, David. A condição pós-moderna. São Paulo, Editora Loyola, 1994

Mallet, Serge. La nueva condiccion obrera. Madri: Tecnos, 1969

Marcuse, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969

Melnikov, A. N. A estrutura de classes nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978

Petras, James. Estados Unidos-China: Libre mercado o intervencionismo estatal (31/10/2005). In Voltairenet.org: http://www.voltairenet.org/article130162.html, consultado em 10/08/2015

Slater, Phil. Origem e Significado da Escola de Frankfurt. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1978

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