Antepassados da concepção pós-moderna da história
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Publicado 19/05/2020 11:28
Muitos escritores contemporâneos não aceitam que o conhecimento da história seja possível, se recusam a aceitá-la como ciência e a apresentam sob uma ótica literária, como apenas uma narrativa. Vale a pena examinar os escritos de alguns deles devido à sua grande difusão e influência. Entre eles Karl Popper, Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault ou mesmo um marxista como o francês Louis Althusser. Eles podem ser alinhados entre os antepassados daquilo que se chama uma concepção pós-modernista da história.
O neopositivista Karl Popper tentou enquadrá-la no tradicional paradigma das ciências exatas e concluiu que não há de leis na história pois, pensava, ela não pode ser submetida aos critérios de verificação e previsibilidade próprios de uma ciência como a física, que modela o paradigma científico desde os tempos de Galileu Galilei, Isaac Newton e René Descartes, há cerca de quatro séculos. “Uma história concreta da humanidade, se houvesse, teria que ser a história de todos os homens. Teria que ser a história de todas as esperanças, lutas, sofrimentos humanos. Nenhum homem é mais importante que outro. É claro que essa história concreta não pode ser escrita”, assegurou.
Na aparência esta é uma tese democrática pois reivindica o relato das experiências de todos os seres humanos e de cada um deles. Mas essa aparência democrática se desfaz quando, na sequência, ele revelou sua descrença em mudanças históricas progressistas. Descrença própria de um ultraliberal como ele que, depois do fim da Segunda Grande Guerra, foi um dos fundadores – juntamente com Friedrich Hayek, Milton Friedman e outros – da Sociedade Mont Pèlerin, que está na origem do neoliberalismo que se tornou hegemônico desde o final da década de 1970.
Para Popper, a história não é uma ciência e não pode ser conhecida objetivamente e, por isso, os homens seriam incapazes de atuar sobre ela nem de mudá-la.
Filosoficamente ele foi um positivista lógico, um neopositivista que rejeita a dialética. Acusa toda generalização de incorreta, de ser um erro: ele recusa o universal (todos os homens) e, assim, ficou prisioneiro do particular (cada um dos homens).
Hegel já havia ensinado que sem o universal não há ciência, pois ela exige esta categoria que resume, no pensamento, o particular, as qualidades próprias de cada fenômeno, cujo reflexo, na mente (no cérebro), é justamente o universal, que só existe idealmente (Hegel: 1995).
Além disso, para Popper, a ciência só trabalha com experimentos que podem ser medidos, repetidos e verificados em condições de laboratório.
Mas a história se baseia em fatos únicos e irrepetíveis, cujo registro é sempre incompleto e aproximativo, feito por observadores que têm uma visão de mundo própria, que orienta o exame do mundo objetivo.
E este é, para Popper, o grande problema que a fragiliza como ciência: “na história, só raramente pode ser obtida uma teoria que possa ser testada e seja, portanto, de caráter científico.” (Popper: 1980).
Popper, vimos acima, despreza a dialética. Em sua visão de ciência não há lugar para tendências nem generalizações. Ele ampliou a abrangência de seu pensamento idealista e afirmou que toda ciência social é incapaz para orientar a ação humana transformadora, num nítido ataque ao marxismo e às correntes que colocam o conhecimento histórico a serviço da mudança social.
Popper foi claro nesse ponto e afirmou, de maneira categórica, ser “errado acreditar que possa haver uma história no sentido holista [da totalidade – JCR], uma história dos estágios da sociedade”, englobando “todos os eventos sociais de uma época”. Isto é, recusou o conceito de totalidade. “Essa ideia decorre”, disse, “de uma intuitiva concepção da história da humanidade como vasta e global corrente de desenvolvimento”. E insistiu: uma história assim “não pode ser feita”. “Cada história escrita é história de certo e limitado aspecto desse desenvolvimento ‘global’ e é sempre história muito incompleta.” (Popper: 1991).
Outro problema, para Popper, é que a história não teria o atributo da previsibilidade que há no paradigma das ciências ditas exatas; nem mesmo teria a capacidade de formular interpretações gerais válidas pois elas não seriam empiricamente verificáveis.
Na verdade, ele não aceitou nenhuma interpretação geral que possa dar fundamento a projetos de mudança histórica e social.
Como E. P. Thompson notou, há em Popper uma ambiguidade: ele admitiu a verificabilidade de alguns fatos ou evidências particulares mas rejeitou peremptoriamente o reconhecimento da existência do processo histórico, ideia que, criticou Thompson, ele pôs no limiar de um reino onde impera a culpa do “historicismo”. Para Popper, criticou Thompson, a história só permite conhecer, no máximo, fatos isolados. E toda interpretação feita a partir deles não passaria de um ponto de vista subjetivo, que pode até ser legítimo mas não pode ser chamado de ciência. (Thompson: 1981).
Referindo-se a David Hume, Engels já havia qualificado o empirismo como um materialismo envergonhado. Em Popper, esse “acanhamento” tem a forma do reducionismo neopositivista revestido de uma exigência “científica” que, ao fim, é um obstáculo ao conhecimento objetivo. Se fosse possível seguir o programa que Popper propõe para a história, o resultado seria semelhante ao dos cartógrafos referidos num conto de Jorge Luis Borges que, tentando fazer um mapa que refletisse a realidade de forma cada vez mais precisa e fiel, acabaram produzindo um que tinha o tamanho exato do país mapeado e que, portanto, não servia para nada (Borges: 1986).
Referencias
Borges, Jorge Luiz, “História Universal da Infâmia“. Editora Globo, Porto Alegre, 1986
Hegel, G. W. F.. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, Vol. 1, A ciência da lógica, São Paulo, Edições Loyola, 1995 (obra também conhecida como “A pequena lógica”).
Popper Karl. “A sociedade aberta e seus inimigos“. São Paulo, Abril Cultural, (Coleção Pensadores), 1980.
Popper, Karl. “A miséria do Historicismo“. São Paulo, Cultrix, 1991
Thompson E. P.. “A miséria da teoria – ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de Althusser)”. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981