Arnaldo: Do Alto Vera Cruz se pode ver mais estrelas

Tinha chegado a Belo Horizonte no dia anterior, sexta-feira, 16 de março de 2007, para resolver uns problemas acadêmicos. No sábado fui ao Alto de Vera Cruz, um bairro, um pouco favela, um pouco ocupação, um pouco observatório de estrelas… para um encon

Bárbara Gancia, nesse dia, tinha escrito em sua coluna na Folha de São Paulo que esse movimento era, entre outras coisas, colonizado e feio, repreendendo o governo federal por ''financiar'' (sic) esse tipo de manifestação de ''subcultura''. Fui ver de perto esses ''colonizados''.



Estavam reunidos num centro cultural. Eram em torno de 50 pessoas. Ao fundo uma bandeira com a famosa foto de ''Che'' e uma frase, talvez: ''Os poderosos podem matar uma, duas até três rosas, mas nunca deterão a Primavera''. Não sei se era essa.
A mesa de trabalho estava formada, com o secretário com seu lap top. Na mesa ao lado, um data show projetava na parede fotos das atividades dos meninos (É bom que se diga, havia poucas meninas). No quadro branco, ao lado da bandeira da ''Nação hip hop Brasil'', algumas frases apagadas deixaram rastros e denunciavam a última aula dada naquele centro cultural. Num trabalho quase arqueológico, podia-se ler: ''Cultura grega – arquitetura.''. Fiquei surpreso. Mais espantado fiquei com os nomes dos participantes: Aliado, Oxi, Buraco, Ganso, etc. Dois deles, particularmente, me chamaram a atenção: Pandora e Oráculo.


 



Aí pensei, nada mais justo e adequado, nesta ágora, em plena acrópole que se havia tornado o Alto de Vera Cruz, e onde se estuda cultura grega, que encontrasse alguém que me remetesse ao mundo clássico. Pandora (do Espírito Santo), uma deusa, que, como aquela grega, tinha seu projeto de mudar o mundo. Consta que a deusa grega se deixou enganar, libertando todos os males da humanidade, mas guardou no fundo da caixa apenas a esperança, esse sentimento que nos move e nos ajuda a caminhar cada vez mais e mais longe. Eu acho que a Pandora do Espírito Santo é a guardiã desse sentimento. É só conhecê-la para se convencer disso.


 



Também na reunião estava Oráculo. O secretário da Nação. Bem adequado. Pois uma organização que pretende construir a mudança do país deve se valer, vez ou outra, de um oráculo. Na verdade, me dei conta, ali mesmo, de que não havia apenas um oráculo. Havia vários. Uma legião. Todos aqueles jovens reunidos discutindo o futuro do país e do hip hop eram como Cassandras, prevendo o futuro das juventudes das periferias deste país.


 



É previsível, e é cego, como qualquer bárbaro, aquele que não enxerga a revolução que a periferia está fazendo; a mudança que está ocorrendo nas beiradas das grandes cidades; a transformação que vem crescendo nos corações e mentes desses ''manos'' que, feito legião, se espalham do Piauí ao Rio Grande do Sul; de Presidente Prudente a Vitória; de Santo André à Salvador.


 



Basta dizer que eles aliam discussão política, criação artística, alta tecnologia e vontade de mudar o mundo pelas bordas. Todos sabem usar computadores, câmeras digitais, filmadoras, internet para cantar, gritar, grafitar, escrever e dançar suas idéias, pensamentos, reivindicações e poesias. Isso dá rock, melhor, hip hop.


 



Em determinado momento da reunião, eles empacaram numa discussão. A frase do meio do documento dizia: ''o hip hop é um movimento sociocultural''. Pandora em seu destaque queria que a expressão fosse substituída por ''sociopolítico-cultural''. Uma meia hora de discussão. Pandora, convencida de que nem todo movimento tinha a visão política da Nação Hip Hop Brasil, retira sua proposta. O alto grau de compreensão e argumentação apresentado pelos ''manos'' me deixou gratamente espantado e meu conceito sobre eles melhorou ainda mais.


 



Aí eu pensei: porque então a gente é obrigada a ler pessoas preconceituosas como Bárbara Gancia? Pessoas que não conhecem, que não sabem, que nem ouviram falar direito e não se esforçam para conhecer aquilo sobre o que escrevem? E, ainda, arvoram-se em donos da verdade, vociferam suas convicções sem pruridos, sem conhecer o que, verdadeiramente, essa juventude vem fazendo nas periferias, nas ''posses'', nas baladas do hip hop?


 



Numa tentativa de compreensão desse tipo de atitude, fui procurar saber como funciona o mecanismo do preconceito. Por sorte, em artigo de setembro de 2006, publicado na Revista Brasileira de Educação , pude ler:


 


O preconceito materializa um possível efeito do encontro entre pessoas, quando são acionados mecanismos de defesa diante de algo que deve ser combatido por constituir-se numa ameaça. Num mundo em que o medo prevalece, indicando um perigo objetivo, e, ao mesmo tempo, não possibilitando sua elaboração, as formas de organização social seguem negando, de forma renovada, a diferença. A cultura, que se converteu em mercadoria, renuncia a ser liberdade do espírito para ser veículo da alienação e domesticação, bloqueando gradativamente o pensamento crítico que tornaria viável desvelar os sentidos da sobrevivência constantemente ameaçada e que determinam comportamentos hostis.


 


Talvez essa citação não explique e esgote totalmente o tema sobre o preconceito. Mas ajuda a compreender certas atitudes de medo e preconceito que se expressam volta e meia no nosso cotidiano.


 


Mas, enfim, de uma coisa tenho certeza: se Bárbara Gancia subisse o morro e visitasse o Alto de Vera Cruz, poderia, a exemplo de Pessoa, ver muito mais do que sua aldeia, talvez chegasse a ver, e até ouvir (quem sabe!?), estrelas.


 


1  SILVA, Luciene M. O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência. Revista Brasileira de Educação. V. 11. N. 33 set/dez 2006.


Arnaldo Romero é advogado e professor universitário na Faculdade Diadema. Mestre em educação, e acredita no futuro dos jovens que estão revolucionando o mundo pelas beiradas das grandes cidades.



 

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