Arraes e o PCdoB

A interlocução constante entre Arraes e o PCdoB em Pernambuco forjou um relacionamento pautado pela confiança mútua e pela amizade

Luciana Santos e Miguel Arraes I Foto: Reprodução/Instagram/Luciana Santos

Ontem, os pernambucanos celebraram os 105 anos de nascimento de Miguel Arraes – de marcante presença na cena política nacional. Presto aqui minha modesta homenagem republicando o texto que segue (publicado no Vermelho em 18/08/2005 e incluído no meu livro de crônicas “Como o lírio que brotou no telhado”, publicado pela Editora Anita Garibaldi).

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Meados de 1986 ele se preparava para disputar pela segunda vez o governo do estado, na condição de franco favorito. E, muito ao seu estilo, montaria a chapa majoritária como bem quisesse. Mas, numa conversa de fim de tarde no terraço de sua residência, em Casa Forte, nos pediu uma declaração pública desestimulando determinado pretendente a uma das vagas ao Senado.

— Doutor Arraes — coube-me refutá-lo —, até que concordamos com a sua opinião, mas não temos condições de fazer isso, falta-nos força e seria uma atitude quixotesca.

Para surpresa nossa, estávamos eu e a Alanir Cardoso, ele explodiu possesso e aos gritos protestou:

— Não estou pedindo atitude quixotesca coisa nenhuma! Pois vou chamar a imprensa e retirar minha candidatura. Vou dizer que a esquerda consequente não quer me ajudar!

Foi quando apareceu, vindo da biblioteca, o bom e sempre cordato Ximenes, que prontamente apagou fogo:

— Olá, pessoal, boa tarde! Vou pegar uma garrafa de whisky e os copos para aliviar o clima…

O próprio Arrais rio do bem humorado cunhado e retornou a conversa, agora de forma descontraída.

À noitinha, quando fomos embora, ele nos levou até o portão e, com um forte abraço, justificou-se:

— Vocês desculpem por eu ter me alterado. É que na minha idade é preciso ter com quem polemizar. Em vocês eu confio, posso discutir a vontade.

Foi desse modo o nosso relacionamento com esse grande militante da luta democrática durante quase 26 anos, desde que ele retornou do exílio – até falecer em 2005.

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Na trajetória de lutas de uma nação há combatentes que se salientam em algum momento. Poucos, entretanto, têm presença marcante por largo período – como Miguel Arraes, influente líder político por mais de cinco décadas.

Muito se tem escrito sobre ele, após o seu falecimento, sábado último, aos 88 anos. Mas pouco se tem comentado sobre três das suas melhores qualidades: a defesa persistente e conscienciosa da soberania nacional; uma enorme sensibilidade para com as condições de existência do povo e a manutenção de duradoura aliança com os comunistas, mantida em diferentes situações.

Firmeza na defesa de suas convicções é sem dúvida uma virtude, quando não resvala para a intransigência cega ou o anacronismo infenso às transformações da realidade. A compreensão de Arraes acerca da questão nacional – nas suas diversas dimensões -, ao contrário de alguns outros nacionalistas, jamais cheirou a naftalina. Ele cuidou de atualizá-la no tempo histórico e de fundamentá-la através do estudo acurado dos problemas.

Foto: PSB

A paciência para ouvir e a sensibilidade para captar o sentimento e as necessidades dos habitantes das periferias urbanas e do meio rural, em muito atenuou, nas três vezes em que governou Pernambuco, as limitações inerentes a um governante apegado a concepções e métodos de gestão antiquados, ultra centralizadores. Isso se refletia no trato com membros do governo, que considerava ineficientes se incapazes de aliar a competência técnica ao relacionamento direto com o povo.

Líder inorgânico, praticamente sem intermediários na sua relação com o eleitor, nunca se empenhou em organizar partido político. Frequentou alguns e só se ocupou em dirigir, de alguns anos para cá, o PSB, que presidia. No entanto, queixava-se da fragilidade da estrutura partidária brasileira e costumava mencionar o PCdoB como exemplo de organização lúcida e disciplinada. Em ocasiões de crise, quando a dispersão das correntes populares parecia predominar, sugeria que o Brasil poderia romper com a dominação estrangeira se se unissem os comunistas e as Forças Armadas em torno de um projeto nacional capaz de galvanizar o povo e amplos segmentos da sociedade.

A interlocução constante entre Arraes e o PCdoB em Pernambuco, há precisos vinte e seis anos, desde que retornou do exílio – um rico aprendizado – forjou um relacionamento pautado pela confiança mútua e pela amizade, inabaláveis mesmo quando afloravam divergências e seguíamos caminhos discrepantes.

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