As velhas vozes do racismo

Isso choca a gente, ao mesmo tempo que acende uma luz na escuridão da meritocracia, que nos inculcam desde a infância

Ex-piloto da Fórumla 1, Nelson Piquet, e o piloto Lewis Hamilton | Fotos: Reprodução

Uma fala do grande piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton nos desperta uma reflexão. Quando Hamilton pergunta “Por que continuamos dando espaço a estas velhas vozes?”, com referência a Nelson Piquet, o racista que o chamou de “neguinho” em um vídeo, descobrimos o inesperado. Isto é, não basta a um negro possuir talento genial para uma atividade humana, como o supercampeão Lewis Hamilton, para se tornar um homem admirável. Não. Na ótica racista, o seu gênio maior seria ser branco para só então vir a ser reconhecido. Aliás, maior, não, o seu único gênio deveria ser branco, pois todos os talentos lhe seriam acrescentados por força da sua raça.

Isso choca a gente, ao mesmo tempo que acende uma luz na escuridão da meritocracia, que nos inculcam desde a infância: todos os homens seriam iguais, todos, e se têm gênio e talento incomuns irão aonde quiserem, pois a glória do mundo será sua. Engano absoluto. Porque a sociedade que vem de classes e da mais profunda injustiça, portanto, nos ensina há muito que a cor, a raça e o sexo determinam a aceitação universal. E aqui a idealização briga com a experiência. Mas na verdade isso me chegou sem que eu acordasse para a revelação no pensamento, antes que eu tivesse mais informações e consciência do fenômeno. Por força do visto e sentido, quando escrevi o romance “O filho renegado de Deus”, isso me veio. Destaco alguns trechos desse romance sobre o personagem Filadelfo a seguir.

“A desgraça, a expulsão de Filadefo direto para o inferno, foi destino do gênio e gênero do seu talento. Onde outros, de sua mesma cor e classe, chegavam a um patamar elevado e se recolhiam modestos e humildes – com esperteza, é certo, porque um homem tem consciência do próprio valor –, onde indivíduos de passado de exclusão pediam desculpas nos gestos, na fala, no tom, uma vez que estavam em uma posição tida como inadequada, Filadelfo, não: abria as portas, escancarava a entrada, sentava-se no trono e parecia dizer, em atos e feições, apontando pretendentes que reclamavam trono semelhante:

– Os inadequados são eles. Este cetro, esta casa e este poder são meus, sob o mais estrito critério de merecimento.

Uma loucura, palavra que os privilegiados de fortuna e sangue chamavam de ‘uma descabida provocação’. Aquele negro, como ousava? Em guerra, a ilusão de Filadelfo se dava ao acreditar que por força da sua inteligência, do seu trabalho, da sua vontade, o mundo se abria para ele. O sol nasceu para todos, dizia, repetia-se, não bem para expressar que o sol iluminava mendigos e reis igualmente, mas para dizer que os raios do sol podiam ser arrancados por quem os conquistasse. E os conquistadores eram negros, brancos, amarelos, pardos, índios, netos de escravos, todos que tivessem suficiente força de vontade. Pois a maravilha da vontade fazia o mundo ser justo. ‘Hum, hum, hum…’. Como podia um homem tão machucado ser tão estúpido?

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Ou será, para entendimento mais exato, que existe um limite para a aceitação da dor, da merda de vida em nossa própria imagem? Naquela altura do beco, em que conversava com o espírito de Manoel de Carvalho às seis da manhã, ele já era o homem que melhor falava inglês no Recife. Falar, comer, orientar navios sem megafone no cais, em lugar de um prático naval, mais beber, gargalhar, todas essas mostras e exibições de inglês ninguém fazia tão bem quanto ele no Recife.

Como um pistoleiro do oeste americano, como um herói dos filmes de faroeste, ele não cansava de se medir, de provocar, de corrigir e fazer perguntas aos mais nobres e privilegiados falantes da língua. Se cruzasse o seu caminho um acadêmico, um advogado, um médico, um doutor, enfim, lá estava Filadelfo a se mostrar, a se exibir, impiedoso para os portadores de diplomas de toda e qualquer natureza:

– Não, esta frase não se fala. Ninguém fala assim. Você aprende isso nos livros. A fala na América é outra. No Texas, em Chicago, em New York…

Era cômico, vexatório – para ele uma vitória – ver os cidadãos médicos se tornarem pálidos, brancos sem cor, diante da lição que os desarmava, e lhes dizia além da fala: ‘Olha, este negro aqui sabe muito mais que você. E lá vai um golpe mais de nocaute’. Eles, os privilegiados de nascimento e fortuna, iam à lona. Caíam com um olho de raiva, incrédulos: ‘O que vejo? Como pode? É um trapaceiro’. E beijavam o chão do ringue. Mas uma conta passavam a carregar para um acerto futuro com Filadelfo.

Com os populares, com os conhecedores de inglês como ele da beira do cais, o trato era outro. Eles apanhavam de Filadelfo por força mesmo do gênero do aprendizado deles da língua.

Enquanto os consertadores de sacos furados de carga, enquanto os estivadores, os arrumadores de fardos de açúcar, empunhavam um inglês imediato, do ‘estou com fome’, ‘dê-me isto’ ou ‘tu queres sexo? eu sei onde tem sexo’, e assim falavam e se dirigiam a trabalhadores norte-americanos da mesma condição que eles, Filadelfo, por ambição servil, aprendera a falar com os de condição mais alta, os oficiais na segunda guerra, e depois com os comandantes de navios mercantes. Ou seja, sem desconhecer o baixo inglês, conhecia os modos e frases de gente mais educada. A isso ele se impôs uma escola de língua, um aprendizado que somente 50 anos adiante o filho pôde entender o acerto. Filadelfo ia ao cinema para acostumar os ouvidos. Lá chegando, encostava a cabeça no espaldar da cadeira e fechava os olhos. Apesar de no começo desse método muita fala fosse incompreensível, ele captava os volteios, o ritmo, a entonação, o acento, com uma mente plástica e ágil. Assim posto, ficava com o cérebro que era ele todo, de olhos fechados e em absoluta atenção, aprendendo e pagando caro pelas imagens do filme perdido, sem se importar com as legendas na tela que poderiam dispersá-lo.

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Os processos mnemônicos também eram empregados. Mesmo sem saber o nome desse caminho de aprendizagem, nem como isso se dava, a sua intuição o guiava para uma ciência antes da ciência. Pois dizia e contava para os encantados com a sua facilidade para línguas:

– A primeira palavra que aprendi em inglês foi ‘I’. Eu me disse: ‘engraçado, quando a gente tem dor, grita: ai!. Eu em inglês é ai Engraçado. Ai, eu!’.

A sua história voltava para a nova língua. Era um aprendizado que envolvia todo o ser. Às dificuldades naturais, de sua condição, ele respondia com as conquistas multiplicadas por sua vontade e inteligência. Aprender o inglês não era então uma coisa à parte, de horas arquivadas do dia, era e se tornou em determinado ponto de sua vida uma, mais que uma, a razão de viver.

‘No inglês ele é um maníaco, um tarado’, diziam dele os inimigos. No que, descontado o desprezo, tinham razão. Movido pela vontade de comer – atenção, abstratos, atenção, formais, atenção, só espíritos, a fome é uma pedagogia primária que move para os mais finos conhecimentos –, ele passou a misturar a língua ao leite, pão, feijão, arroz, ovos, roast beef e concluiu: ‘a língua é boa’. Passou a amar aquela material, desejá-la, querê-la, com todos seus lixos, caralhaços, sangue e virtudes. De cambulhada assimilou a bandeira norte-americana, pois o inglês era a pátria do império, sob as listras vermelhas e estrelas do pano; passou a gostar dos rostos dos States, aos quais assimilava sem deixar de lhes perceber a diferença; a ser fascinado pelo modo de vida da gente dos Estados Unidos, a quem copiava com toda sorte de bugigangas que pudesse trazer dos navios; e por força da ideologia desse mundo, ganhou um novo e repugnante anticomunismo, que era a mais caricatural propaganda da guerra fria…

Do mau e do bom, do bem e do mal a sua competência linguística era feita. Em lugar da ilusão que crê no aperfeiçoamento espiritual somente pelos livros, como se a educação se desse por partenogênese, dos livros para os livros, da escola para a escola, de citações para as citações, uma autorreprodução de ensino formal, ele punha em seu aprendizado toda a ganga bruta de que é feita a sobrevivência. ‘Com toda a vontade’, ele poderia dedicar numa foto que espelhasse tal esforço. E nisso vinha uma dor fina no filho, uma vergonha misturada a raiva, por ter nas veias um sangue, um lodo de tamanha magnitude. Pois era fatal, inegável, o filho se diz de passagem, enquanto rola na cama lá no alto da Pensão 13 de Maio, ele se diz sem ver, enquanto tenta a leitura de John Reed com o mesmo fervor com que lia as vidas dos santos na infância”.

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