Batman: Os Três Coringas – um novo olhar sobre o crime nas HQs do personagem

Autor: Thiago Modenesi

A minissérie Batman: Os Três Coringas (DC Comics, 2020; no Brasil Panini Comics, 2021), de Geoff Johns (Roteiro), Jason Fabok (Ilustrações) e Brad Anderson (Cores) consegue um feito cada vez mais difícil em um personagem com mais de 70 anos de idade ao inovar na abordagem do Coringa, suas motivações, relação com o homem-morcego e a maneira dos dois personagens se relacionarem e verem o mundo que os cerca.

Numa análise cuidadosa, tentando não dar spoiler, a HQ nos mostra uma premissa ousada: será mesmo que nesse tempo todo só existiu um Coringa? A partir disso são apresentados ao leitor 3 Coringas: o comediante, o palhaço e o criminoso. Ao fazê-lo, Johns captura nuances que foram dadas ao palhaço do crime em seus também 70 anos de existência e dá materialidade a 3 distintos personagens, resolvendo a contradição do motivo de tantas mudanças de personalidade no criminoso, embora isso deveria ser algo normal, já que se trata de um psicopata.

Mas o grande charme da história é a maneira de encarar o crime e suas consequências, fugindo da simplificação e banalização da relação superficial entre o “bem” e o “mal” o roteirista dá profundidade ao assassino dos pais de Batman como personagem, cria contexto e narrativa para a ação que levou a criação do homem-morcego, explorando a violência da cidade contra o criminoso e a opressão social das desigualdades contidas na mesma, o faz sem justificar ou glamourizar o crime, mas mostra que o mundo e a sociedade é mais cinza hoje do que parecia na época da criação das HQs.

O criminoso de rua Joe Chill, quando assassinou Martha e Thomas Wayne, o fez apenas em busca das joias? A violência que praticou não tinha contexto? Ele também não era uma vítima de uma cidade violenta e desigual como Gotham? Isso é explorado aqui de maneira sublime, mostra um Chill angustiado com tais desigualdades, que tenta expropriar os que tem riqueza roubando, e toda as consequências e equívocos do seu ato contra os pais do futuro Batman.

Esse conflito consigo mesmo se espraia para os demais personagens da história, onde Jason Todd (Capuz Vermelho) precisa se confrontar com o seu suposto “assassino” (na HQ A Morte de Robin, 1988) e Bárbara Gordon (Batgirl) com a versão do Coringa que quase a aleijou (em A Piada Mortal, 1988). Batman, Batgirl e Capuz Vermelho conseguem se apresentar ao leitor com mais humanidade, complexidade e realismo do que o usual, inclusive nas relações entre os heróis, são personagens mais plenos, em que a dor está presente, e Gotham tem responsabilidade nisso tudo. Isso está destacado em Os Três Coringas, o leitor também degusta aqui uma HQ com traço realista, muito próximo ao clássico de Brian Bolland em A Piada Mortal.

Gotham acaba sendo um personagem central na trama, uma cidade excludente no conceito pleno do termo, com suas explorações e contradições aguçadas, presentes no crime e na segregação social, política e com sua alta corrupção. A corrupção é parte fundamental de Gotham, está na politica, na polícia e em parte razoável das elites da metrópole, enfrentar o crime nas ruas, contra os bandidos pé-de-chinelo, que estão em busca do dinheiro para comer e alimentar suas famílias, não resolve essas contradições, e o Batman vai percebendo isso ao passar dos anos.

A obra conclui com a busca de uma versão mais moderna do personagem Coringa, isso é feito por iniciativa do próprio, que entende ser preciso moldar um Coringa para o mundo atual, colocando mais uma vez em dúvida quantas versões do personagem existiram, se não há apenas 1 por trás disso, se sempre foram sempre 3. 

A certeza que fica é que Gotham é impiedosa, praticou violência de classe, social, econômica, política e afins com todos os personagens, o próprio Coringa foi engendrado nisso, filho da violência de uma sociedade que não inclui, não apoia, não dialoga com sua periferia e é movida por uma elite corrupta e cínica.

Para quem é leitor antigo do Batman sugiro que se lembrem que os grandes criminosos das HQs do herói nunca foram pinguins, crocodilos, palhaços e bonecos de ventríloquo, a cidade é marcada por quadrilhas, possui sua máfia de paletó, sem poderes e loucuras, e essa tem raízes na política local e na maneira como a sociedade ali está organizada. Na verdade, Gotham é apenas uma cidade que reflete toda a violência de seus poderosos, que assim o são por terem enriquecido de maneira ilícita e operarem a corrupção e opressão de classes numa típica grande cidade capitalista.

Thiago Modenesi é licenciado em História, Especialista em Ensino de História e Ciência Política, Mestre e Doutor em Educação, é professor e pesquisador sobre charges, cartuns e histórias em Quadrinhos e editor do selo de histórias em quadrinhos Quadriculando, além de presidente do PCdoB em Jaboatão dos Guararapes/PE e colunistas do Portal Vermelho.

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