Bolsonaro, a vacina e a China

Quando pautas inconvenientes ao clã Bolsonaro entram em evidência, o presidente da República trata de fazer alguma declaração polêmica. Mais uma vez, o ataque é direcionado ao principal parceiro comercial do Brasil

Foto: Flickrs

Bolsonaro parece ter uma estratégia de comunicação muito bem articulada para desviar o foco das questões que mais dificultam sua vida política. Sempre que a situação ameaça chegar mais próxima à sua família ou a seu grupo político mais fiel, ele lança uma nova “bomba”, em geral sob a forma de alguma declaração polêmica e que atua para mobilizar sua turma mais extremada dos bolsominions ardorosos.

O desemprego segue dramático e bate novo recorde atingindo 14 milhões de trabalhadores em nosso País? A inflação começa a penalizar cada vez mais fortemente a população de baixa renda, com o crescimento acelerado dos preços de bens essenciais, como alimentos e remédios? As mudanças na legislação trabalhista introduziram a precariedade e a informalidade como o novo normal e provocaram redução generalizada no rendimento dos trabalhadores? O auxílio emergencial foi bruscamente reduzido pela metade, caindo de R$ 600 para apenas R$ 300 mensais?

Mas para o ex capitão nada disso é relevante. E então, eis que atual ocupante do Palácio do Planalto se sai com mais uma das suas tiradas inesperadas. A crise econômica e o drama social cedem espaço para o debate a respeito da origem e da obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. Apesar de se arriscar em um terreno escorregadio que oferece o desastre próximo a 160 mil mortes em nosso País, ele opera uma mistura de terraplanismo, negacionismo e anticomunismo para apresentar pela enésima vez um discurso contra a China e seu poderio no mundo econômico contemporâneo.

A briga pela vacina

Bolsonaro aproveita o tema para se contrapor a um dos seus inúmeros adversários políticos e um potencial concorrente nas eleições presidenciais de 2022. Refiro-me a João Dória, governador de São Paulo. O neo tucano orientou o Instituto Butantã, instituição secular de pesquisa e integrante da estrutura do governo do Estado, a celebrar um acordo com a empresa chinesa Sinovac para produzir também em seu laboratório na capital paulista a vacina Coronavac, por eles desenvolvida mundialmente.

O presidente lançou a polêmica com mais uma acusação contra o país asiático e o governador desafeto. Acusou publicamente o Ministro da Saúde de ter promovido uma traição, ao autorizar a aquisição pelo governo federal de 46 milhões de doses de tal vacina. Com isso, humilhou o general da ativa Pazuello que ocupa o cargo desde a saída do segundo ministro exonerado da pasta em plena crise da pandemia. Bolsonaro afirmou que seu governo não iria mais comprar a “vacina chinesa de um certo governador”.

Ocorre que essa declaração tem toda a cara de ser mais uma das inúmeras bravatas lançadas pelo pai do Flávio, Eduardo e Carlos. Essa tem sido a regra nos debates de temas mais sensíveis desde a época da campanha presidencial em 2018 até os dias de hoje. Nesse caso em especial, Bolsonaro avança um peão também para tentar socorrer seu parceiro Donald Trump, que enfrenta sérias dificuldades para sua reeleição nos Estados Unidos. Como se sabe, são grandes as chances de o resultado dos próximos dias apresentar o democrata Joe Biden como o vencedor do pleito para Presidente dos Estados Unidos.

Trump foi um dos primeiros a menosprezar os riscos da pandemia, chamando-a por muitos meses de “vírus chinês” ou “gripezinha”. Essa estratégia criminosa e irresponsável foi copiada literalmente por seu aprendiz de feiticeiro por aqui. Não por acaso, ambos os países saltaram para a os primeiros postos em termos de número de casos e de óbitos causados pela doença em todo o mundo. Além disso, Trump fez da agressão retórica e comercial à China uma marca de seu governo. As pressões contra o modelo da rede 5G protagonizada pela Huawei, por exemplo, encontraram no atual governo brasileiro um aliado de todas as horas.

Com Trump contra a China e o Brasil

Bolsonaro apresenta o que pode para ajudar Trump de forma desesperada em seus últimos momentos, mas corre o risco de promover e receber um verdadeiro abraço de afogado. Caso o conservador republicano não vença a corrida para se manter na Casa Branca, o Itamaraty e todo o governo brasileiro serão obrigados a promover uma mudança nada trivial no conjunto da política de relações exteriores. E isso terá implicações também na questão sanitária, pois Bolsonaro corre o risco de ficar falando cada vez mais sozinho na arena internacional. Mas talvez isso não seja tão problemático para ele, pois seu Ministro das Relações Exteriores afirmou recentemente que não vê com maus olhos o Brasil permanecer como um pária no mundo atual. Uma loucura!

Mas se tem alguma coisa contra a qual Bolsonaro não pode se levantar são seus aliados políticos internos mais cativos e a realidade do mundo globalizado. Se realmente pretende levar à frente essa cruzada contra a China, o Presidente precisa ser informado a respeito da presença expressiva de produtos chineses na sociedade brasileira e da importância estratégica do país asiático para a economia nacional. Talvez o superministro da Economia tenha ficado um pouco envergonhado de apresentar para seu chefe a realidade dos números do comércio internacional brasileiro.

A China é o principal parceiro comercial do Brasil. Ponto final! Podemos e devemos discutir o modelo que está por trás de tal relação, uma vez que cada vez mais nos especializamos em exportar “commodities” de baixo valor agregado e importamos crescentemente serviços e bens manufaturados de alto valor agregado. Uma reedição do pacto pós colonial em pleno século XXI. Mas o fato concreto é que não cabem bravatas irresponsáveis como essa da discriminação contra a “vacina chinesa”. Talvez Bolsonaro sonhe ainda com o mundo de mais de duas décadas atrás. Em 1997, a corrente de comércio entre Brasil e China realmente era pouco expressiva. O total de exportações e importações entre ambos os países perfazia apenas US$ 3 bilhões, ou seja, menos de 3% do total do comércio internacional brasileiro.

China é nosso principal parceiro comercial

No entanto, a partir de então, a situação foi se modificando de forma relativamente acelerada. Pouco a pouco, os principais parceiros comerciais brasileiros vão sendo alcançados. Em 2008, a China ultrapassa o Mercosul no total de trocas comerciais, quando foi atingido o valor de US$ 39 bi de corrente de comércio. Apenas dois ano depois, em 2010, a China alcança os próprios EUA na corrente de comércio, ano em que registramos com o parceiro oriental um total de US$ 59 entre exportações e importações. Finalmente, em 2014, a China ultrapassa a União Europeia, com o patamar de US$ 82 bi de corrente de comércio.

O gráfico abaixo ilustra de forma bastante cristalina a evolução da importância das relações comerciais do Brasil com a China a partir de 1997. No início do período, o total de importações e exportações para o país asiático representava apenas 2,8% do total do comércio internacional brasileiro. Ao longo de pouco mais de duas décadas, a situação se transformou de maneira expressiva. A cada ano o peso chinês se eleva, chegando a se multiplicar por quase 10 vezes. Em 2019, a porcentagem chega a 25%.

% Corrente de Comércio com a China no total do Comércio Internacional do Brasil  –  (1997- 2019)

Fonte: SECEX/Ministério da Economia

Por outro lado, as exportações para a China superaram a marca de US$ 65 bi em 2019, representando 29% de todas as nossas exportações. Ora, a bravata de Bolsonaro muito dificilmente pode seguir adiante. Boa parte de sua popularidade e de seu capital político está ancorado nas áreas onde o agronegócio é forte. Qualquer deslize nas exportações de nossos produtos de origem agropecuária vai cobrar uma fatura política pesada. No entanto, sempre vale o alerta que há dois anos o seu governo insiste em desconsiderar os alertas generalizados emitidos por todos os cantos do mundo a respeito do desmatamento, uso de agrotóxicos e outros temas ambientais. Aqui também há sério risco de perdas para os exportadores.

Os riscos da bravata

Mas o fato concreto é que a origem chinesa está presente em grande parte de nosso padrão de consumo e de nossa estrutura produtiva. São os celulares e computadores que os filhos do capitão tão bem manipulam para destilar notícias falsas e para orientar o gabinete do ódio. São as roupas com que o presidente se veste para promover o desrespeito às regras de isolamento e distância, com o fim de evitar a propagação do coronavirus. São as máscaras, as vacinas, os equipamentos e os medicamentos que o Sistema Único de Saúde (SUS) utiliza para minorar os efeitos da pandemia e também em seu cotidiano de oferecimento de condições de tratamento para a maioria da população. São os componentes até mesmo da vacina ainda em desenvolvimento pelo consórcio de Oxford, à qual o capitão se agarra de forma desesperada para apresentar como a sua, em contraposição à “vacina chinesa” de Dória.

A sorte para economia brasileira talvez resida na forma peculiar com que os chineses têm tratado até o momento suas relações comerciais com o Brasil. Parecem relevar os arroubos de Bolsonaro e sua equipe, privilegiando sempre a racionalidade dos interesses comerciais em jogo. Mas não convém continuar esticando a corda, como tem feito o atual governo. Não precisa ser especialista no assunto para perceber que o Brasil tem muito mais a perder em um cenário de maior tensão, em que os asiáticos passem a endurecer o jogo e também a buscar eventualmente parceiros mais interessantes para seus intentos.

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