Bolsonaro e a fratura da nação: o risco do despedaçamento do Brasil

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(Foto: Carolina Antunes/PR)

O Brasil do século XXI é um enorme legado deixado para nós pelos nossos antepassados. Não é um legado simples. É contraditório, repleto de abismos sociais profundos. Um território gigantesco, o quinto em extensão; a décima economia mundial em 2019 (já fomos a sexta, na transição do governo de Lula para o de Dilma Roussef). Somos uma das nações com as maiores desigualdades sociais, originárias de uma economia cuja apropriação sobre a riqueza socialmente produzida é restrita em grande parte a uma classe dominante que conseguiu manter em suas mãos uma estrutura concentradora oriunda do período colonial. Salvo erro ou engano, somos o nono país mais desigual da Terra, segundo dados do IBGE divulgados em Novembro de 2020. Mas subimos nessa escala, conforme outros institutos analisam a estrutura social e econômica brasileira. Posso ficar horas citando dados sobre as desigualdades nacionais, incluindo aí os desequilíbrios regionais, os índices de criminalidade, o feminicídio e os elementos centrais daquilo que nominamos como “racismo estrutural”. O capitalismo brasileiro é duro, cruel, nefasto. Sabemos disso!

Contudo, não sou daqueles que analisam o Brasil apenas pelos seus aspectos negativos. Somos – como qualquer nação do mundo – um permanente processo de contradições em processo, de tremendas lutas de classe, de luta dos opostos pelo controle do poder em seus múltiplos aspectos. São as contradições que movem a natureza e a História. Sem contradições não há movimento. E o Brasil vivenciou enormes transformações em seus 520 anos de história desde o início da colonização portuguesa. E esse movimento histórico, repleto de lutas, de disputas terríveis entre as frações das classes dominantes e delas em relação ao povo, nos fez chegar ao Brasil do século XXI, com o que há de bom e ruim. O país deste século, do Oiapoque ao Chuí, da Nascente do Rio Moa à Ponta do Seixas, se identifica como “Brasil”. Brasil, a décima economia global, a potência regional da América do Sul. Uma nação!

A chamada “Unidade Nacional” foi construída a ferro e fogo, iniciada com a Independência comandada por Pedro II, passando pela longa monarquia de seu filho, Pedro II, oito décadas de enormes conflitos regionais, tentativas separatistas de diversos tipos, geralmente em rebeldia contra um poder monárquico centralizador pouco afeito ao diálogo com suas Províncias, alimentada pelas lutas contra a escravidão e pela melhoria nas condições de vida das pessoas livres, mas pobres. Novamente, poderia ficar aqui citando as intensas lutas, verdadeiras guerras localizadas, entre o poder central e movimentos regionais claramente separatistas ou de rebeldia tendente à separação, diante das negativas do Estado Monárquico em atender reivindicações básicas. Mas traço um linha de unidade nesse grande ciclo histórico de combates pela unidade nacional: das guerras pela expulsão dos portugueses em 1822, ao último grande conflito que poderia gerar alguma fragmentação no nosso território, que foi a “Revolta Federalista” (1893-1895) que convulsionou boa parte do Sul do país durante o primeiro período republicano, envolvendo dois presidentes da República, Floriano Peixoto e Prudente de Moraes. Novamente, a ferro e fogo, violência e sangue, manteve-se a integridade territorial!

A unidade nacional, a sua defesa, e as intensas disputas pelo comando do país e de regiões inteiras, foram obtidas, principalmente, através de enormes contradições entre as classes dominantes, na época em que a principal riqueza do Brasil era obtida pela exploração da terra. Em paralelo a essas disputas, as classes dominantes mantiveram enorme unidade interna para se defenderem das revoltas, rebeliões, greves e manifestações do povo, desde o período da escravidão e até hoje. Nesse roteiro que congrega unidade territorial com manutenção do poder econômico e político opressor sobre o povo, e exatamente dessas contradições, o Brasil se consolidou ao longo do século XX como uma grande nação. Repito, com enormes contradições e desequilíbrios. Mas uma grande nação!

No contexto da consolidação do Brasil como um dos maiores países do mundo, do nosso modo, construímos um Federalismo que garante autonomia relativa aos estados e municípios. Nosso federalismo não é nem de longe parecido com o dos EUA, por exemplo, que tem uma constituição genérica, de ordem mais política, o que permite aos estados estabelecerem legislações muito próprias e contraditórias entre as unidades federais. É sabido, por exemplo, que nos Estados Unidos, algo considerado como crime em um estado não o é em outro, só a título de exemplo. No Brasil, um traço distintivo, desde a Era Vargas e até recentemente, está nos grandes poderes que presidentes da república detêm em suas mãos, especialmente no sentido de estabelecer políticas gerais unificadoras do país e a imposição das políticas dos presidentes da república ao conjunto do país. Esse processo teve um importante salto de qualidade quando da elaboração da Constituição de 1988, que preservou o principal dos poderes presidenciais, mas ampliou medidas de “freios e contrapesos” que dificultam o autoritarismo presidencial, um aspecto muito presente na história da república brasileira. No Brasil regido pela “Constituição Cidadã”, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, assumiram poderes maiores do que até então.

À Presidência da República compete um conjunto de atribuições constitucionais e dela se espera que adote iniciativas voltadas para a unificação de ações quem englobem o conjunto dos estados, especialmente no que diz respeito à adoção de políticas, medidas e programas para o bem estar do povo brasileiro. Para bem além das atribuições específicas estabelecidas pela “letra fria da lei”, como gostam de observar os (as) juristas, presidentes da República devem comandar o país para a busca pelas soluções para os problemas gerais que afetam o povo, especialmente nas crises, sejam elas quais forem. Da presidência da república, o povo espera que aponte a direção adequada para que o conjunto do país caminhe unido. Desde a redemocratização de 1985, tivemos vários presidentes e uma presidenta que, mal ou bem, com ônus e bônus, buscaram ao seu modo apontar tais caminhos. Nem sempre foram bem sucedidos. Dois foram derrubados (Collor e Dilma) pelo Congresso, no âmbito de movimentos políticos que os desgastaram, esvaziaram, isolaram. Mas mesmo estes (Dilma em especial, pois governou o país por seis anos, tendo sido reeleita ao final do primeiro e derrubada pelo impeachment no segundo ano do segundo mandato), a seu tempo, buscaram apontar ao povo rumos a serem seguidos. Collor apontou o rumo do neoliberalismo. Dilma buscou intensificar o papel do Estado para o crescimento econômico. Movimentos opostos, mas movimentos, ações, atitudes, decisões, empenho!

E o governo de Jair Bolsonaro? A retórica radical de sua campanha, manejando o bordão de que “ia mudar tudo isso que está aí”, a adesão de última hora ao ultraliberalismo do seu propalado “guru econômico”, Paulo Guedes, a hipócrita pregação de luta contra a corrupção no bojo do “lavajatismo” ostentado por Sérgio Moro e suas manipulações jurídicas contra Lula e o petismo, deram em nada. Tudo ficou num passado obscuro, perdido num grande estelionato eleitoral que iludiu uma parte do eleitorado em 2018. Nada fez nesses campos, exceto a nefasta reforma da previdência, mas mesmo assim, mais por iniciativas da Câmara dos Deputados do que do seu governo. Felizmente, sua plataforma não está sendo aplicada, especialmente no sentido da privatização de tudo. E veio a Pandemia da Covid 19!

A completa inação dele e seu governo para coordenar um amplo movimento de prevenção e combate à disseminação e mortes pelo Corona Vírus, é algo incomparável em relação aos principais países do mundo. Pior do que a inoperância, é a política cruel de negação da pandemia, associada ao brutal estímulo ao povo para que descumpra as principais orientações dos principais órgãos de saúde pública, deixando o país ao “Deus dará”. Adotou a fala postura, a falsa contradição da “defesa da economia” em detrimento de vidas, como se ambas não estivessem diretamente conectadas. E as consequências disso podem ser mais nefastas do que a sua incompetência e negacionismo. Podemos estar diante de um processo de verdadeira fratura na unidade nacional!

Bolsonaro e suas ações de sabotagem podem colocar em risco o Pacto Federativo e a própria Unidade Nacional, obtidas, como apontei acima, às custas de imensos sacrifícios do povo e de frações da classe dominante derrotadas nos inúmeros conflitos, guerras localizadas, rebeliões, revoltas e movimentos, por cerca de cem anos. Melhorada pela Constituição de 1988, a Federação brasileira está por um fio, na medida em que a ausência absurda de uma clara política de combate à pandemia e à própria crise econômica – potencializada pelo seu governo ainda em 2019 – empurra governos estaduais e prefeituras para ações específicas que estão sendo adotadas com tendências a serem ampliadas drasticamente neste 2021, sem uma política clara de vacinação em massa, ao menos por enquanto. A inoperância é tão evidente que coube ao Supremo Tribunal Federal respaldar as ações de estados e municípios, já que o governo federal nada fazia, principalmente a partir do Ministério da Saúde, que já está no terceiro ministro em dois anos, dois deles literalmente “saídos” do governo pelas ações do próprio presidente, sabotando iniciativas minimamente adequadas por eles adotadas. Sem o comando fundamental do governo federal para unificar iniciativas, campanhas, medidas e a busca por vacinas, o país vai naufragando na adoção de ações desconectadas, confundindo boa parte do povo. Especialmente nos municípios das grandes regiões metropolitanas, com elevada circulação de pessoas entre cada cidade, a desconexão é imensa, com cada prefeito (a) assumindo e impondo posturas díspares, contraditórias, submetidos, em geral, pelos interesses de setores econômicos locais. Governadores estaduais deflagraram uma verdadeira corrida pela vacina à revelia do governo federal, já que não é possível ficar “deitado em berço esplendido” à espera de soluções vindas da presidência da República. Isto dito, o risco para que os poderes locais adotem políticas específicas, contrariando o interesse geral do país e voltadas para a proteção da sua população específica, pode – coloco no condicional! – estimular outros movimentos e sentimentos, do separatismo ao aumento do preconceito contra brasileiros (as) de outros lugares. Imaginem, apenas imaginem, como será se tivermos alguns estados vacinando por conta própria enquanto outros não conseguem ter acesso à vacina. Aqui e acolá, já existem prefeituras adotando bloqueios nas entradas das cidades para impedir a entrada de pessoas de fora, como instrumento de limitação da expansão da pandemia. E quem pode criticar prefeitos que fazem isso? Quem poderá criticar e condenar governadores que forem a campo para obterem vacinas para imunização das populações de seus estados? Mas caso essa situação se consolide, a fratura na federação ficará muito acentuada. O sentido de unidade nacional estará em intenso risco!

A Unidade Nacional foi construída tendo o sangue do povo como emulsificante para o cimento e areia que forjaram um país chamado Brasil. E ela pode ser estilhaçada por um governo que se diz patriota, nacionalista, mas cujas ações apontam para o oposto disso. Precisa ser muito cego politicamente para não perceber que tudo o que Bolsonaro e seu governo fazem, não são para fortalecer o país, a nação, a pátria e o bem estar do nosso povo, mas exatamente para enfraquecer-nos e, diante da fragilidade em andamento, ele impor seu autoritarismo destrutivo do que há de melhor no Brasil. Precisa ser muito cego também para não perceber que é mais do que urgente a formação de uma ampla frente política para isolar e derrotar o seu governo, urgente. A Constituição Federal garante ao país os mecanismos. Que se cumpra a Constituição. Deixado como está, o risco de cumprirmos a “profecia” do grande escritor Inácio de Loyola Brandão, no seu grande e angustiante livro “Não Verás País Nenhum”, de 1981, é bem grande!

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