Bolsonaro, um personagem escrachado, ou perdão, Shakespeare

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Foto: Reprodução

Neste dia do nascimento e morte de Wiliam Shakespeare, pensei em relacionar o antipresidente do Brasil a uma peça do genial dramaturgo. Mas recuei e mudei. Por mais vilões que se encontrem em Shakespeare, todos eles estão em uma altura admirável, digamos, porque continuam a ser vilões, mas altos. Mesmo na tragédia política Ricardo III, o protagonista crápula que à custa de homicídios, traições e mentiras se torna rei, o vilão Ricardo é um canalha que ainda assim ama e atinge máximos de desespero. Ele é capaz de frases como no monólogo:

“Eu, que rudemente sou marcado, e que não tenho a majestade do amor para me pavonear diante de uma musa furtiva e viciosa, eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles. Pois eu, neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os prazeres vazios destes dias. Armei conjuras, tramas perigosas, por entre sonhos, acusações e ébrias profecias”

Então, onde encontrar um Shakespeare capaz de doar estas falas ao pior dos seus vilões? Uivos, miados como 

“Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão”

“Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada e aí veio uma mulher”

“Quem quiser vir ao Brasil fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. O Brasil não pode ser um país de turismo gay”

“Tem que deixar de ser um país de maricas” (sobre recomendações contra o coronavírus)

“O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. (Como Pelé, ele se refere a si mesmo na terceira pessoa)

“Vacina obrigatória só aqui no cachorro”

“O cara paga menos para a mulher porque ela engravida”

“Os gays não são semideuses. A maioria é fruto do consumo de drogas”

Notem que esse indivíduo não pode nem mesmo ser comparado a Fiódor Pavlovitch, o canalha de Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov. No romance, o velho alcoólatra estuprou uma mulher idiota e doente, mas possuía lá os seus problemas de consciência. Olhem o abismo: de Bolsonaro está longe até o vilão número 1 de Balzac, Vautrin, que era um gênio do crime. Além do mais, Vautrin era um homem de coragem, o que em Bolsonaro não cabe nem existe, porque sobra no senhor presidente a covardia. O canalhão no poder não lembra sequer o frio Cândido Neves, caçador de escravos que arrasta uma escrava grávida para entregá-la de volta à escravidão, um caçador de quem José Carlos Ruy destaca o perfil no Dicionário Machado de Assis:

“Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde.”

É impossível compará-los ao vírus no poder em Brasília. Esses vilões literários possuíam, apesar de tudo, uma desculpa moral ou um arrependimento tardio. O baixo nível do presidente talvez pudesse ir a outro lugar. Mas nem mesmo o encontro em Misto-Quente de Bukovski, onde a terra inteira não era nada além de bocas e cus engolindo, cagando e fodendo.

Depois de rápida pesquisa, concluo que um vilão do escracho como Bolsonaro, na literatura, tão baixo o malfeitor é, tão mínimo raso, deverá ser encontrado em outro drama ainda não escrito. O chão na carne do presidente é uma coisa tão rasteira, que a qualquer momento ele confundirá vacina com vagina, em declarações no Palácio. Por que não? Para ele, vacina e vagina são igualmente execráveis.   

Enfim, “meu reino por um cavalo” falava Ricardo III na peça de Shakespeare. “Meu rei por um cavalo”, fala Bolsonaro em jogada que é o próprio cheque-mate. O centrão contente aceita.

Com o devido perdão a Shakespeare neste dia. Mas não sei se alcançarei a sua graça.

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