Capoeira, com certeza brasileira

Falar sobre capoeira sempre é um exercício de ginga. Uma complexidade estonteante, mas que não pode tontear. A capoeira nasce no Brasil, não na África.

Ela une elementos do índio e do negro para se livrar da opressão do branco. O vocábulo Kaá-puera é de origem guarani, e quer dizer mato ralo, lugar onde os negros praticavam alguns passos de sua dança ritual. Segundo outras fontes, pode ser mato roçado para plantar, mas também em guarani. Maculelê, o jogo com bastões, originariamente feito com facões, foi trazido pelos negros malês, muçulmanos, e faz parte de rituais árabes da época das colheitas, depois assimilado pelos índios e por fim pelos negros. Ou seja, nada mais brasileiro.

Durante o período escravista a capoeira foi proibida e punida, tanto quanto a prática religiosa dos negros. A dominação cultural imposta aos negros e índios cativos talvez tenha sido tão cruel quanto as torturas físicas e a fome impostas a eles. Neste sentido, a capoeira, o batuque, o candomblé e mais tarde o samba cumpriram um papel de resistência capaz de organizar este povo para o resgate de sua cidadania.

O nome dos movimentos da capoeira nos dá uma idéia desta resistência. A Bênção, movimento seco e brusco, feito com o a ponta do pé no plexo cardíaco do oponente, era destinado ao coração do senhor, quando a fila de escravos devia, um a um, beijar-lhe o anel, depois deste assistir a missa. Se bem sucedido, o escravo ganhava o mundo… A esquiva, para evitar a chibata, a queixada, capaz de quebrar um queixo ou o nariz, o vassourão, que literalmente varre ao chão quem não está com a ginga equilibrada. E a chapa, direta ao estômago. Literal. Aliás, dos 50 movimentos de capoeira, 20, se bem aplicados, matam. Movimentos, que capoeirista que se preza não fala em golpe, já dizia meu mestre Bolívar do Olufé.

Arte marcial, esporte, brincadeira, jogo, o que é capoeira? Tentativas de definições não faltam. Que outro esporte se faz em roda, ao som de palmas? Que outra arte marcial se faz com música? Tem quem prefira a de Angola, de mestre Pastinha, mais lenta mais malandra, sem graduação nem ostentação. Tem quem prefira mestre Bimba, que depois de uma exibição para Getúlio Vargas conseguiu a legalização de seu jogo. Capoeira regional, com movimentos de caratê, mais rápida, com cordas de graduação… Agora surge até a capoeira contemporânea, misturando elementos da regional com outras artes marciais, mais própria para combate e campeonatos.

Artes marciais basicamente transformam corpos em armas para reagir a situações de abuso ou agressão. Algumas com filosofias e moral rígidas. Assim foi com o judô, com o karatê, e outras artes orientais. Com a capoeira não foi diferente. Os capoeiristas absorveram e incorporaram a luta contra a dominação do opressor. Prenúncio da luta de classes no Brasil? Com as características nacionais, certamente sim. Desde 1821 a capoeira era proibida com previsão de castigos físicos. A partir de 1870 surgem os primeiros processos de criminalização, incluindo castigos bem mais violentos. Mesmo duramente reprimida durante o período, o Imperador Pedro II usou para sua defesa pessoal a temida Guarda Negra.

Capoeiristas foram usados como linha de frente em diversas guerras do império. Milhares deles morreram na guerra do Paraguai, acreditando na promessa de liberdade e recompensa pelos serviços prestados à pátria. Ao contrário das famílias de soldados brancos que herdaram polpudas pensões por descenderem destes combatentes, nem mesmo sabemos o nome de muitos destes heróis negros.

Logo após a dita abolição os capoeiristas tornaram-se um problema ainda maior. A capoeira era proibida, Os grandes quilombos haviam sido derrotados pelos imperiais, após muitos combates. Em 1890, com a população negra sem trabalho nem moradia vagando pelas cidades, surge a lei da vadiagem. E os capoeiristas, que já eram visados, tornam-se mais perigosos ainda. Aí surge a associação de capoeira com perturbação da ordem pública, porte de armas e roubo. É que as Maltas (como eram chamados os grupos de capoeiristas) provocavam pavor, inquietação e medo na sociedade carioca do século que findava…

"Dos vadios e capoeiras", capítulo 402 do novo código criminal localizava o alvo: Muitos capoeiras foram presos e deportados para Mato Grosso, Fernando de Noronha ou enviados para quaisquer conflitos (no caso, a guerra do Paraguai). Mesmo assim, a capoeira se popularizou e alastrou. No Rio, Recife, Salvador, os capoeiristas, os sambistas, os batuqueiros resistiram ferozmente e mantiveram suas raízes ora escondidas e camufladas ora tocando um samba de roda que nada mais é do que pura capoeira disfarçada de dança, ora fazendo de Santa Bárbara Iansã. Até o ponto em que o branco pobre também subiu o morro e foi à favela. Aliás, pelo que sabemos, os quilombos eram democráticos, plurais e multirraciais. Tanto quanto os morros pobres destas e de outras cidades.

De lá, rapidamente a capoeira e as outras artes negras se espalharam. Por volta de 1930 já havia capoeira, samba e batuque em considerável parte do país. Com a legalização, academias foram abertas, e por fim inclusive a classe média aderiu à capoeira. Hoje é comum ver em academias de bairros nobres alunos em rodas. Mas ainda é nas comunidades mais carentes e distantes que se encontra a capoeira de raiz, onde alguém da própria comunidade retransmite o que aprendeu, e após a aula senta seus alunos e alunas em roda para ensinar a lixação de vergas, a feitura de agês, discutindo noções de cidadania enquanto arranca arame de pneus velhos e lixa cabaças para fazer berimbaus.

A oralidade, característica do povo negro, felizmente se fez forte, tornou-se característica da capoeira tradicional. Assim, a história, as ladainhas (músicas), os nomes, personagens, lutas, batalhas, tudo isto está vivo ainda nas rodas de capoeira. Histórias de Boca Rica, Besouro Cordel de Ouro, Catarina, Idalina, Mestre Chico, Mestre Pastinha, Mestre Bimba, e muitos outros continuam vivas nas rodas de todo o país. De qualquer forma, para mim, a síntese da capoeira está num pequeno verso:

Minha alma é livre, o berimbau me libertou!

Mestre Bimba toca o "Hino da Capoeira Regional" – extraído do filme "Dança de Guerra", dirigido por Jair Moura (1968)

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