China Contemporânea

O recém lançado “China Contemporânea” traz ensaios sobre o desenvolvimento nacional Chinês, apresentando as perspectivas que nascem a partir da capacidade de planejamento do gigante asiático

Comentário sobre o livro recém-lançado, organizado por Ricardo Musse

“China Contemporânea” traz seis ensaios de sete pesquisadores brasileiros de destaque nos estudos sobre a China. Apresentando visões diferentes (e, em alguns momentos, divergentes, o que enriquece o diálogo) os textos abordam economia política, relações internacionais, disputa geopolítica, cultura e a premente questão ambiental. Antes de tudo, trata-se de um livro necessário.

Políbio, historiador clássico, abriu sua “História” , no século II a.C, com uma clássica passagem: quem seria tão simplório a ponto de não desejar compreender como, em tão pouco tempo, Roma se tornara a senhora do Mediterrâneo? Hoje, poderíamos recolocar a pergunta com o dilema mais instigante da contemporaneidade: quem, em sã consciência, pode se privar de procurar entender a China que, em 1970, era uma economia das mais pobres do planeta, caminha para ser a primeira? Como pode, em tão pouco tempo, ter retirado da pobreza 750 milhões de pessoas, atravessado uma urbanização intensa de forma planejada e controlada, construído uma infraestrutura sem paralelo, dominado a tecnologia de ponta do setor aeroespacial à cibernética se, na década de 1940, como lembra Wladimir Pomar em seu ensaio, sequer tinha um capitalismo desenvolvido? E, sobretudo, quais contradições avançam com esse processo?

Certamente, a China é a grande questão de nossa época. Compreender o mundo passa, necessariamente, por uma reflexão sobre ela. Esse problema central se desdobra em outros, profundos e densos, que os autores dessa obra enfrentam com propriedade: como definir o “modelo chinês”? Capitalismo, socialismo, capitalismo de estado, socialismo de mercado ou outro conceito? O sucesso da China seria uma demonstração cabal da superioridade dos instrumentos analíticos trazidos pela economia política marxista? Ela estaria hoje em posição de enfrentar os EUA, ou melhor, teria as mesmas condições objetivas que os Estados Unidos reuniram ao fim da Segunda Guerra Mundial para redefinir a arena internacional política e economicamente? Seria realmente tão grande a distância que nos separa dos chineses ou há mais afinidades culturais entre nós e eles do que podemos supor? Até que ponto é concreto compromisso de Pequim com o meio-ambiente e o conceito de “civilização ecológica” que foi constitucionalizado por Xi Jinping?

Essas e outras questões são debatidas nessa obra com profundidade analítica pelos autores Alexandre de Freitas Barbosa, Elias Jabbour, Alexis Dantas, Wladimir Pomar, Bruno Hendler, Francisco Foot Hardman e Luiz Henrique Vieira de Souza. Todos se valem de uma experiência direta com a China, tendo pesquisado ou mesmo lecionado nas universidades do país asiático.

Deng Xiaoping – China Daily

“Buscar a verdade nos fatos”, e não nos conceitos, foi um dos lemas da Reforma e Abertura inaugurada na China em 1978. E é da constatação de um descompasso entre conceitos e realidade que Alexandre de Freitas Barbosa parte em seu “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica” , ensaio de abertura da obra. As análises produzidas sobre a China desse lado do hemisfério adotariam conceitos tão rígidos quanto inadequados, “como se a China devesse se conformar aos seus modelos”, diz Barbosa. Conceitos como “capitalismo de Estado”, “capitalismo político” e mesmo o oficial “socialismo com características chinesas” não seriam, para ele, suficientes no trabalho de descrever aquela realidade e muito menos para explicar como a ascensão chinesa levou ao atual processo de reorganização da economia-mundo capitalista.

Entre a elaboração dos autores com viés ocidentalizante, muito contaminada pela disputa geopolítica, e o pensamento de estudiosos vinculados ou próximos ao projeto do Partido Comunista chinês (PCCh), seria possível um caminho conceitual mais preciso? A análise de Barbosa, propondo a retomada da discussão em torno dos conceitos de “mercado”, “capitalismo” e sua relação e aplicação à China nos diz que sim.

O texto não apresenta – e nem caberia – uma conclusão em termos definitivos, mas aponta caminhos conceituais e uma hipótese embasada na densa análise bibliográfica que vai de Fernand Braudel a Giovanni Arrighi, passando por Immanuel Wallerntein e clássicos do Marxismo, a autores que se debruçaram especificamente sobre a experiência chinesa, como o japonês Kaoru Sugihara. Para Barbosa, amparado no seu conhecimento dessa vasta bibliografia, na China houve economia de mercado sem que houvesse capitalismo.

Hoje, haveria então um capitalismo em interação com essa economia de mercado que o cerca e de onde ele tira seu dinamismo, baixo a direção política do Estado e em convivência tensa com o núcleo da economia-mundo capitalista. Fica para os leitores e leitoras a ideia de que as noções de “socialismo” e “capitalismo”, tomadas de forma abstrata, metafísica, não dão conta de explicar nem as estruturas complexas da economia-mundo e nem a ascensão da China contemporânea.

Ampliando o debate (e parte da riqueza do livro está nas muitas perspectivas apresentadas), Elias Jabbour e Alexis Dantas também afirmam a necessidade de uma revisão conceitual profunda para se compreender a China. No ensaio “Apontamentos sobre a geopolítica da China” , eles apresentam sua interpretação já consagrada quanto ao “socialismo de mercado” chinês enquanto uma nova formação econômico-social. Na China, teria sido construído historicamente um modo de produção socialista dominante, baseado na quase uma centena de grandes empresas estatais, nos bancos de desenvolvimento e na liderança do PCCh, coexistindo com um capitalismo articulado a ele e dirigido pela finalidade última determinada pela liderança comunista nessa que seria uma etapa do desenvolvimento do socialismo.

A novidade teórica apresentada por Jabbour e Dantas vem no conceito de “Nova Economia do Projetamento”, definida como o estágio superior de desenvolvimento alcançado pela China. Ela seria produto das possibilidades abertas para novas formas de planificação econômica graças ao domínio do 5G, da Inteligência Artificial e do Big Data, além da consolidação de um setor produtivo poderoso e da própria organização e expressão da vontade política da classe trabalhadora chinesa. Esse Estado “projetador”, na linguagem conceitual construída pelos autores a partir especialmente da obra de Ignácio Rangel (“Elementos de Economia do Projetamento” ) seria o elemento “interno” da geopolítica chinesa.

Por sua vez, o “externo” viria da chamada “Globalização Institucionalizada pela China”, um novo paradigma de relações internacionais consubstanciado nos acordos que compõe a Iniciativa “Um cinturão, Uma Rota”, ou “Nova Rota da Seda”. A “Nova Economia do Projetamento” e a “Globalização Institucionalizada pela China”, inseridos naquela tradição e história milenares, levariam à conclusão de que a geopolítica chinesa abrirá espaço para uma nova geopolítica global, “popular, anticolonialista e de libertação nacional”, na visão dos autores.

Por sua vez, Wladimir Pomar, em “Comentários sobre a economia política chinesa” , analisa a economia política marxista utilizada e formulada pelos comunistas chineses em sua história desde a Revolução de 1949. De princípio, ele reitera que os métodos científicos daquela economia política continuam fundamentais, quer seja para entender a China, quer seja para entender o mundo. Teria sido a aplicação do instrumental teórico do marxismo que permitiu à liderança do PCCh construir a atual potência econômica que é a China tendo como ponto de partida um país atrasado (para os padrões capitalistas, frisa o autor), empobrecido e destruído por guerras atrozes.

Partido Comunista da China I Foto: HK01

O texto procura apresentar a magnitude do desafio de realizar uma etapa de desenvolvimento que, para a economia política marxista, seria tarefa do capitalismo, ao mesmo tempo em que era necessário consolidar o caminho para o socialismo. A modernização econômica, a revolução agrária, a ampliação do trabalho assalariado, dentre outras transformações que a China viveu desde a segunda metade do século XX, foram conduzidas sob a liderança do Partido Comunista e não de uma burguesia chinesa, lembra Pomar.

Como isso foi possível? E, mais além, ainda é correto dizer que a China é ou caminha na direção de ser socialista? A resposta não é óbvia. A Reforma e Abertura, de 1978, que Pomar interpreta como uma reação ao fracasso da Revolução Cultural, teria consolidado a coexistência da atividade econômica privada com a propriedade pública, ambas conduzidas pelo planejamento estatal. Concordando com Jabbour e Dantas, Pomar vê aqui uma economia socialista de mercado que os teóricos chineses chamaram de “primeiro estágio do socialismo”.

E por que isso não é capitalismo, dizem os críticos? Para Pomar, justamente porque a existência desse setor público garante a primazia do interesse de classe dos trabalhadores. Essa constatação, aliás, seria demonstrável pela diminuição da desigualdade e da pobreza em pouco tempo e em escala gigantesca. A coexistência com o capitalismo traria sim, diz Pomar, armadilhas para o socialismo de mercado, como a corrupção, por exemplo. Contudo, conclui ele, até agora, a economia política marxista aplicada pelos dirigentes chineses tem se mostrado eficiente para desarmar os perigos que encontrou pelo caminho.

O complexo tema da disputa entre EUA e China é abordado por Bruno Hendler, em “Crise de Hegemonia e Rivalidade EUA-China” . Trata-se de um texto muito oportuno nesse cenário em que a propaganda anti-China apresenta Pequim como o grande desafiador da hegemonia norte-americana. Mesmo movimentos claramente reativos e defensivos, como os exercícios militares no Mar da China, são apresentados como uma agressão. Essa retórica, que veste as velhas roupas da bipolaridade da Guerra Fria em um cenário muito diverso e, conforme alguns, até mais complexo, foi adotada por ambos os candidatos na última eleição americana. Está presente nos subterrâneos das correntes de informação dos muitos mecanismos de guerra híbrida hoje em voga e cumpre um papel de mobilização interna nos Estados Unidos, fazendo com o foco não se fixe em suas próprias contradições internas.

O ensaio de Hendler questiona objetivamente se, de fato, a China reúne as condições necessárias para deslocar os EUA e redesenhar o sistema internacional. Estaríamos assistindo, em outras palavras, à transição para uma nova hegemonia, centrada em Pequim? Para procurar formas de responder a essa questão sem partir das sublimações que costumam povoar os textos dos acadêmicos/políticos da Foreign Affairs, Hendler estabelece como parâmetro analítico uma comparação entre os Estados Unidos do pós-Segunda Guerra Mundial e a China de hoje.

Ele se vale de quatro indicadores objetivos: as exportações de capital; a quantidade e competitividade das marcas globais de cada país; a posição da moeda de cada um no sistema financeiro internacional; e, por fim, a capacidade de importação do mercado interno, indicando seu maior ou menor papel no crescimento econômico global. A escolha de tais indicadores, sustentados em estatísticas apresentadas no texto, se revela mais refinada que a simples comparação do PIB ou do poderia militar.

A conclusão da análise escapa à tentação de referendar o lugar comum das interpretações correntes dessa rivalidade. Para Hendler, se é verdade que a hegemonia norte-americana entrou sim em crise, também é verdade que a China não reúne as condições necessárias para substituí-la. Ao menos por enquanto… Por agora, não seria possível ainda falar em transição de uma hegemonia a outra, mas sim de um “acirramento de rivalidades”.

Em uma ampliação temática (outra das riquezas do livro), Francisco Foot Hardman discute a cultura chinesa contemporânea em “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa” . Para ele, que lecionou na prestigiada Universidade de Pequim, existiriam mais afinidades interculturais entre brasileiros e chineses do que um senso comum enviesado poderia imaginar.

A menção a Gabriel García Márquez em certa altura do texto, um dos autores estrangeiros mais lidos na China, lembra que essa analogia pode ser extensível a toda América Latina. Em que pesem as diferenças descomunais de tamanho, os fenômenos da industrialização recente, da intensa e acelerada urbanização, os efeitos que eles causam no tecido social, na memória e na cultura, conformam um processo histórico paralelo ao século XX brasileiro e latino-americano.

Não por acaso, a sobrevivência da terra, do campo, como referência para os chineses também nos toca, nos aproxima, da mesma forma que os filmes de Jia Zhangke apresentam imagens que lembram a de metrópoles brasileiras, como afirma Hardman. Contudo, para ver de perto essas relações seria preciso romper a fronteira epistemológica construída pelo chamado “Ocidente”. Foot Hardman propõe a superação do que chama de dicotomias binárias do sistema-mundo, incapazes de explicar a atual conformação do capitalismo global.

O ensaio apresenta com sensibilidade as obras de dois artistas chineses que representam a estética e o testemunho dessa realidade em movimento que tanto tem a dizer também a nós: o escritor Mo Yan, vencedor do Prêmio Nobel Literatura de 2012, e o consagrado cineasta Jia Zhangke, cujas obras configurariam, assim como as de todo um conjunto de artistas, “novas utopias em que a esperança, igualdade e solidariedade não sejam apenas palavras vazias”.

Por fim, o livro ainda traz a contribuição de Luiz Henrique Vieira de Souza quanto ao debate ambiental e o papel assumido pela China nessa questão. Hoje, a China projeta uma imagem de comprometimento com a preservação do meio ambiente. No vácuo deixado pelo governo de Trump, Pequim se destacou assumindo um espaço de liderança. Manteve-se nos acordos climáticos e apresentou metas ousadas, além de realizar efetivas transformações qualitativas no rumo de uma economia verde.

Foto: AFP PHOTO

Contudo, no seu “Civilização Ecológica ou Colapso Ambiental” , Souza procura realizar a tarefa da crítica e enxergar além: primeiro, indaga quanto às origens da nova postura do governo chinês para, em seguida, tratar de discutir as contradições internas que ela implica e esconde. Sendo assim, sua narrativa lembra que, antes de ser uma meta oficial, a preservação do meio ambiente foi uma exigência da sociedade chinesa.

Desde a década de 1990, os protestos com viés climático subiram 30% ao ano sendo que chegaram a ser 50 mil com essa temática só no ano de 2005. Foram movimentos de resistência contra a construção de grandes obras que comprometeriam o patrimônio ambiental, protestos contra a instalação de fábricas poluidoras, manifestações em prol da melhoria da qualidade do ar, dentre outros. Essa movimentação atingiu inclusive integrantes do PCCh e do governo, fazendo, conclui o autor, com que a liderança do Estado precisasse apresentar uma resposta. Assim, o conceito de “civilização ecológica” mencionado oficialmente pela primeira vez em 2007, no XVII Congresso do PCCh, e constitucionalizado já sob Xi Jinping teria uma matriz popular, viria da organização coletiva.

Porém, apesar de avanços já obtidos, a “civilização ecológica” também comporta contradições, lembra Souza. Em primeiro lugar, muito ainda há a ser feito para que a China tenha um meio-ambiente saudável, a começar pela garantia da boa qualidade do ar a todas as suas regiões. Em segundo lugar, a atuação do Estado, ainda que voltada ao estabelecimento dos parâmetros que considera adequados às metas no rumo de uma “civilização ecológica”, bate de frente com as comunidades rurais tradicionais, causando novos conflitos. Em terceiro lugar, a grande demanda chinesa por commodities levaria à reprodução de um padrão destrutivo nos países que os exportam para a China… O autor ainda apresenta outras questões que denotam, na prática, as barreiras que existem ante um conceito que a governo chinês apresenta como alternativo ao de “desenvolvimento sustentável”. Trata-se de um esforço crítico importante.

Procurou-se aqui apresentar em breves linhas alguns aspectos dos argumentos dos ensaios dessa importante obra. Evidentemente, como acontece com os livros ricos em densidade, cada leitura revelará outras interpretações e, sem dúvida, instigará a buscar mais. Ouso dizer que o livro organizado por Ricardo Musse é dos mais importantes publicados no país para estudar o fenômeno chinês. Leitura fundamental e, sobretudo, necessária!

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