Chuva, chacinas, Covid, desigualdade social e racismo

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Foto: Marcello Casal/Agência Brasil

Chove três dias seguidos aqui no Recife. Estou num lugar seguro. O máximo que acontece é que a rua alaga um pouco, para logo que a chuva cede, a água descer novamente. E é bem pouco, mesmo. Transtorno é molhar os pés, se não chegar de carro.

Alguns dizem: “eita, que São Pedro decretou lockdown. Esse é eficiente, mesmo!” E é isso. Esse texto é sobre privilégios. Porque os trabalhadores no geral ainda lotam os busões (ônibus, na gíria das ruas do Recife). E sem brisa! Janelas fechadas por causa da chuva, estufas de Covid, Câmaras de Vírus em Auschwitz móveis.

Nos morros, barreiras caem, como em Jabotão dos Guararapes, cidade vizinha – mesma urbe –, na Região Metropolitana, com mortes numa família soterrada. E ficamos assim, nesse tiroteio de casualidades que são agravadas pela desigualdade e por políticas públicas ou falta delas, como numa Linha Vermelha imaginária – fazendo referência ao Rio –, entre Covid, quedas de barreiras e o clima perfeito para assistir uma série na Netflix.

Ontem, o Brasil completou 120 anos da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, que ocupava então a Regência do Império do Brasil, em virtude de um tratamento de saúde que seu pai, o imperador dom Pedro 2º, realizava na Europa. E, para além das idiossincrasias da história oficial, a história real, escrita nas ações das pessoas de carne e osso e não mitificadas por canetas de pena como ferramentas de publicidade, mostra que a liberdade como garantidora de uma vida minimamente plena, ainda é horizonte nublado para a maioria.

Afinal, a maioria da população nos morros que desabam, ainda é negra. A maioria da população que pega ônibus lotados, ainda é negra. A maioria da população carcerária, onde prisões também surgem como campos de concentração de Covid, ainda é negra. Os que saem do Brasil para ter acesso a tratamentos de saúde, como fez dom Pedro 2º no Século 19 e faz hoje empresários milionários como Roberto Justus, tomando vacina da Covid em Miami de dólar estratosférico são brancos. E sem documentos assinados para libertar os escravos cotidianos. E não estranha sua fala, quando afirma: “quantos mais brasileiros saírem do Brasil para se vacinar em Miami, melhor”. Não é ingenuidade, não é falta de conhecimento. É eugenia, mesmo!

Quando a grande mídia se apressa em estampar nas manchetes que, a maior parte dos executados na Chacina em Jacarezinho, no Rio, tinha passagem pela polícia, também não é ingenuidade e nem é objetividade jornalística. É eugenia tecnocrata, que aceita execuções de negros, num país que sequer tem política de pena capital, e que se tivesse, ainda assim os policiais teriam de ser julgados, porque execuções extrajudiciais são crimes, também.

A maior parte até dos mortos pela Covid-19 que já vai em versões de 20 e 21, com mutações do descaso é negra. Vítimas de uma política de morte perpetrada pelo Governo Federal, negacionista da ciência e fiel seguidora de tratamentos por remédios sem eficácia e teorias de imunidade de rebanho, quando os que ainda apoiam o presidente são os que se enfileiram em rebanhos de ignorância.

Depois de mais de 400 mil mortos oficiais, mais uma vez, assim como fazemos com os pobres, negros e moradores executados na favelas e vielas dos mais profundos rincões do Brasil, perdemos muito da nossa capacidade de se chocar e se emocionar. E assim, mais uma vez, normalizamos chacinas, racismos e famílias debaixo de terra, quando é a nossa moral e nossa humanidade que estão completamente soterradas.

É como diz Raul Seixas na música “Eu também vou reclamar: “Parem o mundo que eu quero descer!”, ou puxando para a forma como falamos com os motoristas dos busões, aqui no Recife: “Vai descer, motô!”

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