Civilização e barbárie: triste realidade de violência contra meninas e mulheres

“No promissor século XXI, que exibe tantos avanços científicos e tecnológicos fabulosos, continua-se convivendo com igualmente espantosas desigualdades e injustiças,”

Na tarde de 03 de novembro de 2008, no centro de Curitiba, a menina Rachel Lobo Genofre, saindo da escola, foi capturada, para nunca mais voltar ao convívio da família. Seu raptor a seviciou e depois matou.  O assassino, depois de longas buscas, foi encontrado e será levado ao tribunal do júri em 12 de maio, quase 13 anos após o crime que estarreceu a capital paranaense, quando do achado da menina sem vida dentro de uma mala na Estação Rodoferroviária.  Rachel tinha apenas nove anos de idade, uma menina que vivia desprendendo sorrisos e alegria de viver, quando perdeu barbaramente a vida na dita “civilização” curitibana.

Falamos em barbárie na civilização, uma dicotomia usual entre pesquisadores(as) que denunciam as consequências brutais do atual modo de produção capitalista em sua etapa imperialista neoliberal. Eric Hobsbawm, em Sobre História, interpretou que, ao longo do século XX, a barbárie cresceu, não havendo indícios de que este crescimento esteja no fim, ao contrário. Para o historiador inglês, a barbárie significa duas coisas:

  1. Ruptura e colapso dos sistemas de regras e comportamento moral pelos quais todas as sociedades controlam as relações entre seus membros e, entre seus membros e membros de outras sociedades;
  2. Reversão do projeto histórico que tem suas raízes no Iluminismo com suas tradicionais bandeiras “Vida, Liberdade, Busca da Felicidade”, ou “Igualdade, Liberdade, Fraternidade”.

Frente à impossibilidade de materializar tais consignas, para todos os membros da sociedade, no modo de produção da vida subsumido pela lógica do capital e sua correspondente cultura, consolida-se o colapso geral da civilização formada por exploradores e explorados. As forças destrutivas crescem mais que as forças produtivas.

Esta referência genérica à barbárie engendrada pelo desenvolvimento tremendamente desigual da sociedade capitalista ajuda a compreender uma de suas piores facetas: a triste realidade das meninas e mulheres que sofrem violência seja em suas casas, seja nos ônibus pelo assédio sexual, seja nas propagandas onde a mulher é objetificada, ou mesmo pelo Estado, quando ela é culpabilizada pela violência sofrida ou quando recebe atendimento desumano.

No promissor século XXI, que exibe tantos avanços científicos e tecnológicos fabulosos, continua-se convivendo com igualmente espantosas desigualdades e injustiças, como a das mulheres que vivem situações de violência. 

Rachel Lobo Genofre foi vítima disso. Como foram tantas e inúmeras Marias, anônimas que, cotidianamente, aparecem fugazmente nos programas policiais de TV – contas de um rosário de mazelas de uma sociedade que tropeça na pretendida marcha para uma civilização de igualdade e justiça. Estes sofrimentos encontram paralelo na selvageria dos insultos politizados, com fortes traços de machismo, misoginia e autoritarismo, como, por exemplo, os lançados pelo ex-deputado Jair Bolsonaro contra a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que teve por desfecho jurídico uma pífia multa de dez mil reais na conta do atual presidente. Recentemente, deu-se o abjeto assédio pelo deputado estadual Fernando Cury contra a deputada Isa Penna (PSOL) durante sessão na Assembleia Legislativa de São Paulo; o parlamentar foi expulso de seu partido, mas como pena somente recebeu uma suspensão de seis meses de seu mandato, quando mereceria uma cassação.

O que dizer da postura da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, que tentou impedir que uma criança de 10 anos, um ano menos que a pequena Rachel, abusada sexualmente pelo tio ao longo dos últimos quatro anos, tivesse interrompida a gestação conforme previsto em lei? Desde 1940, o Código Penal garante a realização de abortamento legal em caso de estupro e de risco de morte à vida da gestante, como era o caso da menina. O que aconteceu em mais uma situação dantesca no Brasil de nossos dias foi uma tentativa da violação da Constituição Federal de 1988, do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que destacam a primazia na defesa vida da criança e do adolescente, por uma representante do Estado, que deveria proteger e não punir.

Estaremos retrocedendo a trevas medievais? Pesquisadoras e representantes dos movimentos feministas e de mulheres analisam que as atitudes de mulheres e meninas diante das violências sofridas devem ser compreendidas a partir dos discursos que as engendram (tais violências), situados dentro de um contexto histórico-social marcado por complexas articulações de relações de poder e de dominação de classe, gênero, raça, etnia,  geração e orientação sexual. A luta contra a violência doméstica e familiar integra a agenda teórica e política feminista do Brasil desde os anos 1970. A violência de gênero atinge mulheres e meninas de todas as idades, graus de escolaridade, classes e grupos raciais/étnicos. A efetivação plena dos dispositivos de uma lei avançada como a 11.340/06 (Lei “Maria da Penha”) só será realidade sobre todo o território nacional com a implementação de políticas públicas, com a possibilidade de acesso universal a escolas gratuitas de qualidade, com a disseminação das casas-abrigo, centros de referência, para a mulher vítima de violência, escolas públicas integrais, centros de lazer.

Essa é a reivindicação dos diferentes movimentos sociais e feministas do Paraná que realizam ato público na Rodoferroviária de Curitiba ao longo desses quase 13 anos, na data em que encontraram o corpo da menina com muitos sinais de violência – inclusive sexual – e estrangulamento. São 13 anos de luta da família da menina e do movimento feminista que vem exigindo do Estado a resolução do caso e a criação de programas e políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Como Rachel, outras meninas tem sido vítimas de violência sexual e física nesta “cidade-sorriso”.

Quando da realização da CPMI da violência contra as mulheres sob a presidência da então deputada federal Jô Moraes, em 2012, o movimento feminista, entre suas organizações a União Brasileira de Mulheres – UBM, juntamente com advogadas atuantes no enfrentamento à violência de gênero da OAB-PR, entregaram um dossiê à Comissão solicitando que o caso de Rachel fosse inserido como uma situação de omissão do Estado, considerando a demora e falhas na apuração do crime no seu dever de investigar, com o devido zelo, crimes cometidos contra mulheres e meninas. Nesse sentido, a CPMI recomendou ao Ministério Público o acompanhamento das investigações para a apuração do crime de homicídio hediondo cometido contra Rachel Lobo Genofre. Muitos crimes tem sido cometidos, contra mulheres e meninas e as políticas públicas até então conquistadas tem sido desmanteladas pelo governo federal atual, inimigo das mulheres.  Não é só um governo que ataca com palavras, mas que impõe uma política econômica que aumenta a pobreza e violenta as mulheres, principalmente com a pandemia, muitas delas tendo que viver com o agressor e assediador. A falta de políticas públicas na saúde e do auxílio emergencial pelo governo federal, as ações criminosas e negacionistas tem sido denunciadas pelos movimentos sociais do Brasil e internacionais. Nesse ano, em plenas atividades do 8 de Março, o presidente Jair Bolsonaro fez um novo ataque às brasileiras ao não assinar a declaração do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidos (ONU), um compromisso com a saúde das mulheres no combate à Covid-19 para diminuir as desigualdades históricas que recaem sobre as mulheres.

A violência de gênero é aguda no Brasil, principalmente neste período de pandemia. O Paraná, situado no mapa da violência na 3ª posição, revela-se um estado machista e extremamente violento. A lei do feminicídio, sancionada pela Presidenta Dilma, resultou da luta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito realizada em 2012. A CPMI visitou o Paraná por evidenciar dados acima da média nacional de casos de feminicídios (mortes de mulheres causadas pelo fato de serem mulheres). Esta realidade requer ainda mais que, no estado, se apliquem recursos das políticas públicas para casas-abrigo, exige que nas delegacias haja equipes especializadas e preparadas para receber com respeito as mulheres, que se realize um amplo programa de educação de gênero para toda sociedade e para as equipes de segurança pública, que se crie a Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres e seja retomada a Secretaria de Políticas para as Mulheres em Curitiba. Outra reivindicação ao poder público e que tem sido motivo dos atos ao longo desses anos é a mudança de nome da rodoferroviária, que passaria a ser denominada Rodoferroviária de Curitiba “Rachel Maria Lobo Oliveira Genofre”, tornando permanente a lembrança da menina Rachel e a luta contra a violência sofrida por mulheres e meninas no município.

Rachel Lobo estaria hoje com 19 anos. Ela foi assassinada de forma cruel aos 9 anos.

Há mais de 30 anos o movimento feminista criou o lema “O silêncio é cúmplice da violência”, parte estruturante da história feminista no combate à violência doméstica no Brasil. Outro, “A impunidade é cúmplice da violência”, evidencia que a maioria dos crimes cometidos contra as mulheres e meninas continuam impunes. Incorporou-se a noção de que “A violência contra a mulher é também um problema de saúde pública e uma questão de direitos humanos” na Convenção de Belém do Pará, na Lei Maria da Penha 1.340/06, na Lei do Feminicidio e no Estatuto da Criança e do Adolescente.  Trata-se de heroicos contrapontos colocados pelos movimentos sociais para refrear a marcha fúnebre da barbárie em nossa convulsa sociedade.

Justiça por Rachel Lobo Genofre! Nenhuma a Menos! Rachel Lobo Genofre, presente!


Referências bibliográficas

HOBSBAWM, Eric John.  Sobre história. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras.

Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência contra as mulheres. Disponível em: https://cutt.ly/JbAiicF

Petição para a Prefeitura de Curitiba homenagear Rachel Lobo Genofre com mudança de nome da Rodoferroviárioa de Curitiba e provocar uma reflexão sobre o crime. 

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