Crise capitalista e decomposição do sistema financeiro

“Lamento dizê-lo, mas apostaria que haverá depressão e que durará alguns anos” (Eric Hobsbawm, 30/3/2009).[1]

O segundo eixo temático do 13º Congresso do PCdoB enfrenta, corretamente, a questão da grande crise capitalista atual, as alterações geopolíticas em curso e a nova luta pelo socialismo.

Essas breves notas convidam à reflexão sobre os vínculos entre: a) a nominação de “depressão” da crise atual feita por vários autores; b) a configuração efetiva de um “sistema financeiro sombra” emergente durante a expansão da “globalização financeira”(anos 80 em diante); c) um avançado processo de “apodrecimento” do sistema financeiro global, marcado por manipulação de negócios ilegais, deliberados, em altas esferas do circuito bancário/financeiro.

A aguda observação de Hobsbawm, por nós assinalada há quatro anos, tem por base o brilhantismo do historiador marxista britânico, quem pesquisou profundamente a ocorrência do fenômeno da depressão econômico-social. Jamais, entretanto, aquele pensador deixou-se levar por rasteira visão economicista ou pelas fantasias do deplorável pensamento neoliberal/neoclássico.

As depressões fundamentalmente têm envolvido: a) uma queda severa do crescimento do produto; b) elevado desemprego; e c) movimentos deflacionários. Do ponto de vista do historicismo dialético, cada depressão “submerge” numa outra e singular situação – nada se repete, mas as determinações e características centrais são recorrentes. Ou seja, as crises sistêmicas do capitalismo, e os fenômenos sociais (também evoluções políticas) que as acompanham.

Noutras palavras, pode tratar-se de superficialidade (visão de “aparência”) deixar-se levar pelas armadilhas “fetichismo do conceito” Como assim?

“O conhecimento de senso comum relativo à psicologia ou aos fenômenos sociais, longe de se resumir em saber incompleto, trivial e pouco confiável, etapa preliminar, na hipótese mais otimista, do conhecimento científico, como sugerem os cientificistas, explícitos ou enrustidos, na verdade, um acervo de observações e análises cujo elevado valor cognitivo se coloca realmente acima da dúvida sensata”. [2]

Por exemplo, na opinião de William Black (professor de Economia e Direito em Missouri, Kansas City e especialista federal em regulação financeira e prevenção de fraudes nos EUA):

“Os dados de desemprego nos Estados Unidos durante a Grande Depressão [1929-1933/1939] estão exagerados consideravelmente porque as pessoas que trabalhavam nos programas de obras públicas, que realizavam trabalho altamente produtivo, foram registradas como ‘desempregadas’ nessa época. Isso significa que a Grande Depressão foi, contudo catastrófica, mas também que os dados do desemprego mais precisos (porém ainda longe de serem perfeitos) da Grande Recessão [a crise atual] demonstram que as crises são muito similares em severidade na zona do euro quando se mede sua gravidade pela taxa de desemprego. Na maior parte da zona do euro, a crise atual se poderia definir mais exatamente com “A segunda Grande Depressão’”. [3]

A propósito, deplorável – e manifesto sinal de que vivemos uma era da mentira cínica propalada pelo discurso do capital em toda parte -, e fracasso rotundo enquanto suposição teórica mercadológica a repetição de que a farra da alta finança liberalizada nos levaria a um mundo globalizado solenemente convergente ao desenvolvimento.

Ora, o mesmo Hobsbawm nunca deixou de assinalar profundas desigualdades e assimetrias de renda e riqueza perpetradas mundo afora implacavelmente pelo tal neoliberalismo, bem como um novo espraiamento das desigualdades sociais e regionais, além duma crescente espiral da violência nas mais variadas formas. [4]

Evidente: de imediato ele captou o desastre vindouro, notadamente desde a falência do banco Lehman Brothers (setembro de 2008), quando a crise financeira detonada em agosto de 2007 no crash das hipotecas subprime, nos EUA, tornou-a sistêmica globalmente, por súbita obstrução dos canais de financiamento da economia mundial.
Depressão e sistema financeiro “sombra”

Nesta matéria, de modo nenhum se pode tirar os méritos do liberal Paul Krugman. Vinculado “desde criancinha” ao partido democrata, esse economista foi agraciado – parece claro – com o Nobel de 2008, de um lado, por surfar do lado de Obama nas críticas ao tiranete Bush júnior, tanto em politica externa quanto em política econômica; de outro, por ter se alinhado sem disfarce às politicas keynesianas enquanto caminho de saída para a grande crise, numa época em que todos ainda recusavam desenterrar o cadáver do delicado lorde britânico.

Pois bem: Krugman também foi dos primeiros a denunciar as vigarices do “shadow banking system”, ou sistema bancário sombra. Conforme escrevera Krugman, esse sistema – de empresas “não bancos” ou bancos sem supervisão do banco central – se agigantou durante a fase expansiva da economia “financeirizada”. Por exemplo – diz ele -, os cinco grandes bancos de investimento dos EUA somavam balanços patrimoniais da ordem de US$ 4 trilhões; enquanto os ativos totais do sistema bancário do país em torno de US$ 10 trilhões.

Enfim, em “A crise de 2008 e a economia da depressão” (2008), Krugman acusa ali os “instrumentos financeiros exóticos” (derivativos, instrumentos altamente especulativos etc.) do sistema bancário sombra. Mas não se trataria de instituições que foram “desregulamentadas”: na verdade – escreve -, foram responsáveis por riscos assumidos por “instituições que, para começar, nunca foram regulamentadas”. [5]

Havendo concluído aquele livro com apelos do tipo: “O que deve ser feito? (…) quase sem dúvida, recorrer aos bons estímulos fiscais, no velho estímulo keynesiano”, Paul Krugman acaba de publicar “Um basta à depressão econômica. Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial”. [6]

Sim: se antes em dúvida, em 2012 Krugman chega ao vaticínio de Hobsbawm, de 2009.
“Financeirização global”: da sombra ao apodrecimento
“(…) parte do sistema financeiro internacional transformou-se numa fonte inesgotável de patifarias”. (Delfim Netto, 25/7/2012). [7]

Na verdade, desde agosto de 2007 o curso da nova depressão convive com falências bancárias em série, casos sequenciados de corrupção escandalosa, demissões de executivos de grandes corporações financeiras e não financeiras sendo acusados – às vezes presos – por roubalheira explícita e desmoralizados publicamente.

Trata-se de um processo que alia formas da ganância capitalista nunca vistas, de braços dados à ideologia do darwinismo social; somados à gestão do Estado e da grande finança inteiramente a serviço do capital sem quaisquer veleidades. Com bem sugere o economista Delfim Netto, no artigo sugestivamente intitulado “Pessimismo”, o sistema financeiro transfigurou-se numa fonte imparável de falcatruas. Só que ele pensa que é uma “parte” deste sistema.

Quatro exemplos demonstram que o ex-ministro muito provavelmente encontra-se bem “otimista”.

1. No caso recentíssimo do banco britânico Barclays – onde a taxa interbancária Libor ficou no centro de um grande escândalo no Reino Unido, após a descoberta de que foi manipulada pelo banco entre 2005 e 2009 -, provou-se o envolvimento de operadores dos bancos franceses Société Générale e Crédit Agricole, do alemão Deutsche Bank e do britânico HSBC, segundo reportou o site do “Financial Times” (18/7/2012).

2. Em 17 de Julho último, David Bagley, diretor mundial do banco HSBC para regulamentação pediu demissão em sessão no Senado dos EUA, convocada para ser acusado, após investigação, de permitir operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico (cartéis do México), bem como de dinheiro proveniente de financiadores de “grupos terroristas” (Arábia Saudita). A alta direção do banco sabia de tudo.

3. O HSBC Brasil é citado em conversas de 2006 e 2007 entre David Bagley, chefe de regulamentação do HSBC global, e Alexander Flockhart, então diretor-executivo para América Latina, sobre como evitar o filtro do Ofac, a agência do governo americano para ativos estrangeiros.

4. Segundo site da revista Carta Capital (22/7/2012), o documento The Price of Offshore Revisited, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, e encomendado pela Tax Justice Network, cruzou dados do Banco de Compensações Internacionais, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e de governos nacionais. Resultado: os valores depositados nas chamadas contas offshore – as autoridades tributárias dos países não têm como cobrar impostos -, dos super-ricos brasileiros somaram até 2010 cerca de US$ 520 bilhões (ou mais de R$ 1 trilhão) em paraísos fiscais; ou a quarta maior quantia do mundo depositada neste tipo de conta bancária.

A charmosa denominação de “internacionalização dos fluxos de capitais”, advinda com toda a força na era da “globalização financeira” está dando nisso: apodrecimento paulatino do sistema financeiro internacional. Há inclusive quem afirme que a liberalização financeira global veio para isso – também.

Como reportou recentemente Antonio Martins, jornais importantes como Le Monde, The Guardian, e a revista Der Spiegel decidiram publicar uma série de reportagens provocadas por documentos do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês), acerca da ampla utilização de bancos, ricaços e multinacionais das praças financeiras conhecidas como “offshore”. Onde, ao movimentarem depósitos da ordem de U$ 21 ou 31 trilhões de dólares, escreve Martins: [8]

“É neste mundo de finanças ocultas e anonimatos, relata o ICIJ, que escondem e “lavam” (legalizam) seu dinheiro as grandes redes do crime organizado: máfias de distintas nacionalidades, políticos corruptos que se apropriam de recursos públicos, traficantes de seres humanos, beneficiários de caça proibida, escroques de todos os tipos. O esquema é conhecido. Quem precisa dar aparência de legalidade a uma soma obtida por meios ilícitos transfere-a para uma conta bancária offshore”

Portanto, não é difícil perceber que a grande crise atual, mais uma vez, não é “igual a todas as outras”. Suas consequências sociais, gravíssimas e em evolução, têm alcance igual ou maior que as da Grande depressão dos anos 1930 – o atual presidente do banco central alemão acaba de afirmar sua duração até 2023, na Europa.

De outra parte, é incontestável o processo de apodrecimento do sistema financeiro internacional, acompanhou a expansão “financeirizada” do capitalismo contemporâneo. Que passou a combinar conhecidos negócios ilegais regulares com o sequestro, em larga escala, da contabilidade de grande parte das operações superespeculativas.

Notas:

[1] Ver: “Além de injusto, o mercado absoluto é inviável”, Entrevista de Hobsbawm ao jornal argentino Página 12, em: “Globalização neoliberal: da crise financeira à grande queda", Barroso, A.S.R., Jornal dos Economistas, CORECON, Rio de Janeiro, abril 2009.
[2] Ver o interessante estúdio de Luis Gusmão “O fetichismo do conceito. Limites do conhecimento teórico na investigação social”, Topbooks, 2012, p.12.
[3] Em: Comparación Del desempleo durante La Gran Depresión y la Gran Recesión”, Sinpermiso, 21/4/2013.
[4] Em “Democracia, terrorismo e democracia”, Companhia das Letras, 2007, Hobsbawm mantém as preocupações com o obscurantismo apontado ainda em 1995, no “A era dos extremos”, da Companhia das Letras.
[5] Ver: “A crise de 2008 e a economia da depressão”, Elsevier/Campus, 2008.
[6] De P. Krugman, Elsevier/Campus, 2012.
[7] Ver: “Pessimismo”, Folha de S. Paulo, 25/7/2012.
[8] Ver: “Offshore Leaks: as caixas pretas do poder global”, Blog Outras palavras, 8/4/2013.

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