Crise financeira global acelera decadência no centro capitalista

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“Afinal, temos um sistema que se decompôs na mais séria crise em 75 anos” (Paul Volcker, 2/2/2010). [1]

Em seu destacado ensaio “A retomada da hegemonia norte-americana” (1985), Conceição Tavares recorda o ambiente de crise dos anos 70, onde Paul Volcker, então presidente do Fed (banco central dos EUA), decreta violenta elevação da taxa básica de juros (1979). Volcker não só abandonara abruptamente uma reunião mundial do FMI, como alertara a todos: os EUA não permitiriam a continuidade da desvalorização do dólar – desde 1971; a moeda do império teria sua força recomposta, anunciou ele. A crise de superacumulação e superprodução de capitais de 1974-75, gestada a partir dos EUA impôs a redefinição de mando no sistema monetário internacional.

Pelas mãos de Volcker os gringos levaram o mundo a uma grande recessão global, quebradeira, falências e desemprego (1981-83); ao colapso de empresas e bancos nos EUA; à “década perdida” na América Latina durante os 80. Com efeito, a alta dos juros teve fortíssimo impacto mundial; forçaram-se “ajustes” generalizados nos países capitalistas (e socialistas) “engatados” na política monetária do Fed. A “diplomacia do dólar” (forte: 1979-85) enquadrou gregos e troianos, resultando dali que taxas de crescimento econômico, de câmbio e de juros tornaram-se um movimento convergente à dependência da política macroeconômica encetada pelos Estados Unidos.

A economia mundial volta a crescer em 1984, à custa de importações baratas para os EUA, quem promove a reestruturação de sua indústria, elevam muito o déficit comercial e abocanham os juros astronômicos de todo o mundo endividado em dólar. A propósito, as previsões catastrofistas de então sobre o duplo déficit norte-americano (transações correntes e fiscal) redundando numa grande crise foram então “dribladas” com os acordos do Plaza (1985) e do Louvre (1987) que: a) desvalorizam de maneira consentida o dólar; b) passam a coordenação de políticas macroeconômicas do G-7 para os EUA. Particularmente o Japão teve goela abaixo enfiada a ultravalorização do ien.

“Globalização financeira”: euforia e depressão

Data de meados dos anos 80 a enorme expansão das “inovações financeiras” e dos derivativos para a securitização dos passivos do mercado financeiro dos EUA, ainda imobilizado internamente pelo choque de juros. Ainda que esse período corresponda à reafirmação do comando imperialista norte-americano sobre o capitalismo o global – e caráter de superpotência -, as manobras de seu grande capital financeiro não adiaram o “exuberante” crash, logo ali, em outubro de 1987. De fato, aquela forte quebra financeira refletiu a contraface da crescente onda das finanças liberalizadas, a qual enroscou a seguir a Inglaterra, a Alemanha, a França e o Japão. Instabilidade, superacumulação e crises. Ademais, os EUA terem então começado a passar da posição de credor internacional a devedor, na medida em que também sua dívida pública expandiu-se fortemente – assim como a da Europa -, devido às taxas de juros e a hipervalorização do dólar.

Paralelamente à constituição de uma nova divisão internacional do trabalho centrada na Ásia, e em especial na cooperação-conflitiva e polarizada entre EUA e a China, os anos 80 são de clara expansão dos novos instrumentos de especulação e jogatina internacional. A abertura comercial, as privatizações e liberalização financeira (especialmente da conta de capitais), por exemplo, formaram o núcleo destrutivo da cartilha “Consenso de Washington”, a aplicação do receituário à América Latina endividada e miserável.

Em resumo: o dólar como moeda fiduciária (1971), o fim da fixidez (relativa) nas taxas de câmbio (1973) e a violenta alta nas taxas de juros (1979) programaram o caminho da hegemonia norte-americana na “financeirização” da riqueza. O que implicou – disse depois L. Belluzzo – em: a) liberalização financeira e cambial como norma; b) alteração nos padrões de concorrência capitalista global; c) mudança das regras institucionais do comércio e do investimento.

Tal padrão de acumulação, nos EUA passou a reapresentar recentemente num crescimento do consumo bastante descolado do nível da renda – notadamente dos salários e do emprego -, estreitamente vinculado ao chamado “efeito riqueza”, isto é, à sensação que ativos imobiliários ou financeiros sofrem contínuo processo de valorização e ganhos, o que faz com que empréstimos e mais gastos se repitam. Assim, nos EUA, em 1982, a taxa de poupança pessoal era de 11% da renda disponível; em 2006, caiu para quase zero.

Não só. Entre o 1º trimestre de 1998 e o mesmo período de 2008, o PIB dos Estados Unidos cresceu 31%, ou seja, 2,7% ao ano; o consumo das famílias subiu 3,4% ao ano, elevando sua participação no PIB de 67,1% para 71,6%. Evidente: a redução da poupança das famílias despencou de 4,7% para 0,2% do PIB. [2] Ou seja, gastos das famílias norte-americanas excederam bem acima da renda disponível, turbinados pelo aumento rápido do endividamento. O que nada tem a ver com a ideia neoclássica que a poupança determina crescimento econômico ou lucros.

Em simultâneo, a relação entre a gigantesca expansão do domínio das “finanças diretas” e a explosão da crise financeira do padrão capitalista neoliberal impulsionou espécie de exaustão de uma venenosa mistura de exploração e especulação. Do reino da acumulação fictícia à grande queda.

Superacumulação, superespeculação e crise: o vagão financeiro em chamas

Ora, de acordo com Robert Guttmann, o capitalismo dirigido pelas finanças sempre apresentou tendências a crises financeiras em momentos fundamentais de sua expansão territorial ao trazer economias até então dirigidas pelo Estado para o âmbito da regulamentação do mercado. Acrescentando a seguir, de maneira enfática:

“A crise atual, todavia, é diferente. Não apenas emanou do centro, em vez surgir de algum ponto da periferia, como também revelou falhas estruturais profundas na arquitetura institucional de contratos, fundos e mercados que compunham o sistema financeiro novo e desregulamentado. Em outros termos, estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros”. [3]

Num balanço consistente, denominado “Um ano depois do crash bancário e financeiro”, o pesquisador marxista François Chesnais trata de modo similar as raízes da crise global de 2007-8, asseverando que:

“Claramente temos enfrentado uma crise de grande importância. Simultaneamente à crise de um regime de acumulação de dominância financeira e de condições históricas transitórias que asseguraram aos Estados Unidos una hegemonia indivisível. A crise tem como substrato uma elevada superacumulação de capital e uma forte superprodução”. [4]

Igualmente esclarecedora é a opinião da economista marxista Leda Paulani acerca das características das mudanças ocorridas no capitalismo contemporâneo, correlacionando-as com a vertente financeira da crise:

“Evidentemente, crise e financeirização estão diretamente ligadas. Quando se fala em financeirização, o fenômeno que se quer capturar é o aumento crescente da importância da lógica financeira, de caráter rentista, que o capitalismo vem experimentando desde pelo menos o início dos anos 1980 do século passado. Empiricamente, isto é visível na comparação entre o crescimento da riqueza financeira mundial (ações e debêntures, títulos de dívida privados e públicos e aplicações bancárias) e o crescimento do PIB mundial. Entre 1980 e 2006, o primeiro cresceu mais de 14 vezes, enquanto o segundo não chegou a cinco”. [5]
Resumamos. Os anos que cruzam 1990 e 2000 foram de explosão das “finanças diretas” (ativos, títulos, ações etc.), de multiplicação para trilhões os valores nocionais dos derivativos (especulação financeira sobre ativos futuros) e de crises financeiras cada vez mais demolidoras. Iniciada em 2007 com a chamada “bolha” imobiliária e suas hipotecas subprime (inadiplentes), nos EUA. Agravada severamente com a quebra do banco Lehman Brothers (setembro de 2008), emergiu dos porões da trapaça financeira até um tal de shadow financial system: sim, os maiores bancos de investimento do mundo, particularmente os símbolos norte-americanos da grande finança, omitiam de seus balanços operações e contratos fraudulentos, sem quaisquer garantia de retorno. Bancos e um sistema financeiro “sombra”, portanto. Tudo isso serenamente observado pelo Fed e todos os bancos centrais dos países ricos, acobertados pelas “agências de risco”. Cevou-se o desastre!

Aliás, talvez oportuno aqui recordar O nascimento da tragédia (1872), de F. Nietzsche. Que lá desenha uma moldura crítica de suposição notável: a expansão da civilização grega (o helenismo) – para ele a mais bem sucedida e bela, e “a mais invejada espécie de gente, precisamente eles” -, gesta e vivencia a necessidade da tragédia. Seu ódio implacável a tudo que considerava decadente na ideologia da época moderna fazia-o definir que o único existente é o mundo aparente; pois o “mundo verdadeiro” não é mais do que “um acréscimo mentiroso” (Crepúsculo dos ídolos, 1888). No entanto – acusava -, as instituições liberais deixam de ser liberais assim que são alcançadas, e nada causa “prejuízos mais destruidores e radicais para a liberdade que as instituições liberais” (Nietzsche, idem).

Decadência imperialista: capitalismo central no pântano

A grande crise financeira do capitalismo da nossa época, fabricada no centro do império, em ondas gigantescas vem devastando todas as conexões que alimentaram suas próprias estruturas de acumulação “financeirizada” do capital. Por suposto uma economia capitalista central refém da hegemonia doutrinária dos EUA há mais de 30 anos e cujo paradigma agora sucumbe.

Assim, as 10 economias consideradas as mais desenvolvidas do capitalismo, de 2000 a 2008 elevaram em US$ 40 trilhões a mais as dívidas somadas do setor financeiro, das famílias e dos governos (alta de 60%); isso significou um crescimento, em relação ao PIB desses países, de 200% em 1990 para 330% em 2008. A dívida pública dos EUA alcançou US 12 trilhões em dezembro de 2009, segundo o Tesouro americano. Enquanto a zona do euro (15 países) convive agora com especulação contra a moeda, estagnação econômica, desemprego massivo, com alguns de seus governos ameaçando “reformas” que significarão a derrocada do Estado de Bem Estar Social.

Notemos então pelo menos três fortes tendências que emanam (convergindo) do atual estágio da crise capitalista:

1) Dos anos 1980 a meados dos 2000, paticularmente os EUA apresentam crescente e reiterativa distância entre a recuperação da economia e o desepenho do nível de emprego, um problema recente e crucial. Ali – argumenta amplamente o economista de Harvard, Richard Freeman (codiretor em programa de mão de obra, especialista em mercado de trabalho na London School of economics) -, houve “recuperação sem emprego” na era do presidente Bill Clinton, até que surgisse o boom da internet no final dos anos 90, “e nova recuperação sem empregos” sob o governo de G.W. Bush, após a crise-recessão de 2001. Segundo ainda Freeman, de 2007 a outubro de 2009 os EUA perderam quase 8 milhões de empregos; a duração desse desemprego “é a maior desde a Depressão”, sendo difícil imaginar que os EUA voltem a encontrar o pleno emprego “num prazo previsível”. [6]

2) Observando mais amiúde aquilo que os economistas do capital denominam de “economias mais industrializadas”, dados e projeções da The Economist/OCDE sobre o desemprego na UE assinalam a seguinte evolução (oficial): 2008=7,2%; 2009=10,1%; 2010=11,0%. Na OCDE, de conjunto a coisa é mais feia ainda: a) no fim de 2010 a taxa deverá superar 10%, recorde óbvio pós-1945; b) entre 2007e 2010 os desempregados novos somarão 25 milhões, devendo atingir 53 milhões o total destes; na Alemanha 10,8%, França 10,9%, Irlanda 15,1%, Polônia 12%, e a campeã Espanha 20,5% (entre os jovens atinge hoje 40%). A Grã-Bretanha está sendo considerado o “nó” das grandes economias centrais: o PIB teve 6 trimestres de queda livre (-61%), no 4º de 2009 chegou a 0,1% e deverá ter 10% de desemprego em 2010. A Alemanha viu sua economia desabar em -5% do PIB, em 2009, de longe o pior quadro desde 1945.

A propósito, sobre o arrebentar da recente crise na União Europeia, e mais violentamente na Zona do Euro, comentaram N. Roubini e A. Daas, economistas do establishment norte-americano:

"A Grécia, portanto, está na linha de frente de uma batalha mais ampla para manter o rumo exigido pela união monetária europeia. O compromisso político de cada um dos países ameaçados para com a zona do euro é inflexível, como provam os profundos cortes no Orçamento na Irlanda, a dolorosa deflação em Portugal, os fortes ajustes em membros aspirantes como Hungria e Letônia. A falta de uma união política e fiscal e a mobilidade limitada de mão de obra acompanhada por livre movimento de capitais tornam a realização desses ajustes crítica para a viabilidade da zona do euro em longo prazo". [7]

Mas para Charles Wyplosz, do Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, a dita Grécia está sendo crucificada pelos “mercados”: mais “inquietante” – diz – é a situação dos bancos da França e da Alemanha, ainda como muitos “ativos tóxicos” e que podem ser incapazes de fornecer crédito suficiente para a retomada econômica. [8]

3) Na Ásia, noutra ponta e constatando as alterações geopolíticas estruturais no sistema de relaçõe internacionais, informou dias atrás Javier Santiso (diretor do Centro de Desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE) acerca da ascensão chinesa. Em 2008, a China transformou-se em um dos principais parceiros comerciais da América Latina, tendo o comércio entre as duas regiões superado os US$ 140 bilhões. Em 2009, a China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, a principal economia latino-americana; o que, “obviamente, não é uma tendência única da região”, vez que, em 2009, a China também se tornou “a maior parceira comercial da África do Sul e Índia”, mencionando outros continentes e países.[9] Equanto isso, a economia do Japão – que obteve drásticos -5% do PIB (2009), apesar de crescer 1,1% no úlimo trimestre do ano passado – deixará em breve de ser a segunda do mundo, status que mantinha há 41 anos, e será superada pela da China, admite um relatório do ministério de Economia, Comércio e Indústria japonês, publicado em junho de 2009.

Noutro degrau da crise, a “ressurreição” de Paul Volcker

“Temos que criir um novo sistema pois o velho está quebrado” (George Soros. 28/01/2010). [10]
Quarenta anos depois de ter levado o mundo a uma violenta recessão, fortalecido por um longo período o reposicionamento norte-americano e quebrado a periferia do capitalismo, o mesmo Paul Volcker foi recentemente ressuscitado pelo presidente Barack Obama. Para apresentar uma proposta (“regra Volcker”) de reforma do sistema financeiro dos EUA que se orienta para uma “proteção” contra os grandes bancos. Segundo Volcker bancos, “que se desviam da norma”, na realidade outrora comerciais, que passaram a operar em investimentos especulativos de toda a espécie e no curto prazo. Gigantescos e verdadeiros supermercados financeiros que deveriam, segundo a proposta: a) limitar seu capital para operações de sua própria tesouraria, incluindo a manipulação de fundos hedges (“seguros” e altamente especulativos); b) reduzir a sua alavancagem (relação entre capitais próprios e de terceiros e a multiplicação dos valores investidos); c) melhorar a atuação das (fracassadas e mentirosas) agências de risco.

Duplamente curioso: de um lado, a proposta de Volcker regride, no fundamental, a algumas das reformas de Roosevelt, dos anos 30, então para buscar soerguer o país da Grande Depressão – o que nem Roosevelt conseguiu. Se hoje (como ontem) buscou-se salvar os bancos, evidentemente depois de distribuir centenas de bilhões de dólares do Estado ao sistema financeiro, o ex-presidente do Fed tenta medidas para torná-los mais eficazes e seguros! De outra parte, vê-se bem que seria hoje inimaginável uma subida sequer abrupta do juro básico americano, quanto mais elevar-se a taxa às alturas para fortalecer sua moeda, como foi imposto para reajustar sua posição de superpotência hegemônica, na crise dos anos 70. Mostra isso nitidamente o último relatório do Banco Mundial (janeiro de 2010), que afirma: “Uma grande incerteza encobre as projeções sobre o segundo semestre de 2010 em diante”.
Paul Volcker e sua “regra” já ficaram decrépitos – e nada têm a ver com os controles de Bretton-Woods. Simbolizam, isto sim, o novo milênio donde começam a brotar fantasmas da decadência imperialista.

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NOTAS

[1] Em: “A reforma do sistema financeiro dos EUA”, O Estado de S. Paulo, 2/2/2010. E conclui
Volcker: “Precisamos enfrentar as mudanças estruturais e colocá-las em lei. Fazer menos significará um fracasso final – fracasso em aceitar a responsabilidade de aprender com as lições do passado e antecipar as necessidades do futuro”.

[2] Em: “Consumidores aloprados ou contribuintes lesados?”, de L. Belluzzo, in: Terra Magazine, 25/9/2008.

[3] Ver: “Uma introdução ao regime dirigido pelas finanças”, de R. Guttmann, em: NovosEstudos/CEBRAP, novembro 2008.

[4] Em: rebelion.org (Revista Polis), 29/12/2009.

[5] Ver: “Réquiem para o neoliberalismo? Ainda é cedo. Entrevista especial com Leda Paulani”,
Instituto Humanitas Unisinos, 4/10/2008.

[6] Ver: “Uma recuperação sem empregos?”, de R. Freeman, Folha de S. Paulo, 10/1/2010. Os dados são oficiais e a situação é bem pior.

[7] Ver: “A cura dos males do sul da Europa”, de N. Roubini, e A. Daas, em: Financial Times (Folha de S. Paulo, 7/2/20100).

[8] Ver: “Dívida dos países desenvolvidos dá salto de US$ 40 tri”, Valor Econômico, 9/02/2010.

[9] Em: “China 2020: desafio para a América Latina”, de J. Santiso, Valor Econômico, 01/02/2010.

[10] Em: “Soros defende intervenção nos bancos”, Sergio Leo, Valor Econômico, 28/01/2010.

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