Cuba e o etanol brasileiro

Cuba tem razão em manifestar sua preocupação com relação ao etanol, tanto o produzido pelos EUA a partir do milho quanto o que é extraído da cana-de-açúcar no Brasil. Um novo ordenamento da matriz energética mundial passa necessariamente pelos chamados bi

Por outro lado, o Brasil tem motivos de sobra para defender seu programa energético, o que deve ser feito incorporando as críticas e os alertas conseqüentes, sem abrir mão de uma política de Estado que resguarde seus interesses nacionais, sua segurança e soberania energética, base fundamental para o desenvolvimento sustentável de suas forças produtivas.


 


 


Nessa disjuntiva em torno dos biocombustíveis em geral, e do etanol em particular, é necessário distinguir as justas preocupações manifestadas de outras críticas que por vezes são infundadas. Apesar dos riscos que qualquer inovação tecnológica e energética pode representar é imprescindível separar teses falsas ou “semi-verdadeiras” de apontamentos científicos, econômicos e políticos de cunho progressista e desenvolvimentista para, a partir daí, sinalizar rumo a um marco regulatório que seja capaz de assentar as alternativas energéticas a serviço dos povos e das nações em desenvolvimento.


 


 


O problema agrário brasileiro que está sendo exposto como um dos principais entraves à produção do etanol não é restrito à cultura da cana-de-açúcar e tampouco é fenômeno novo. As precárias condições de trabalho no campo, acompanhadas de uma frágil legislação trabalhista e uma insuficiente fiscalização in loco, é mal histórico secular o que consente, mesmo após 119 anos da proibição oficial da escravidão em nosso país, trabalhadores viverem em condições similares a escravos. Todavia não vamos extirpar esse cancro simplesmente deixando de plantar cana, café, algodão ou outras culturas que empregam grandes levas de trabalhadores braçais. Na atualidade, onde ainda vigora a ofensiva neoliberal, é necessário defender o Estado Nacional com legislação progressista voltada aos direitos trabalhistas, à garantia de condições dignas de trabalho, redução da jornada de trabalho e valorização permanente do salário (no rumo diametralmente oposto ao da atual Emenda 3).


 


 


Não é justo explorar e expor cinematograficamente para o mundo afora as duras condições de trabalho dos cortadores de cana de muitas regiões do Brasil com o objetivo único de se fazer oposição ao etanol. Essa criminosa exploração do trabalho diz respeito à opressão de uma classe sobre outra em escala mundial, e não somente sobre uma categoria em especial como caso localizado e restrito ao nosso país. Também os irmãos trabalhadores de outros setores da economia e do setor energético são massacrados pelo capital. Na história da Petrobras, por exemplo, não foram poucos os que morreram trabalhando, vítimas de acidentes em jornadas extenuantes de trabalho, principalmente no período das terceirizações promovidas nos governos FHC. Também é o caso de outros trabalhadores rurais. Por acaso o chamado pequeno produtor rural dito independente tem melhores condições de vida que o assalariado?


 


 


A questão agrária é diferente da questão agrícola e historicamente lutamos contra a agressão sofrida por aqueles que, não tendo a terra como meio de produção, precisam vender e empregar sua força de trabalho nos canaviais. Mas o problema agrário é muito maior e acomete também o pequeno camponês que, por exemplo, cultiva sua roça de feijão para subsistir, empregando toda a família (muitas vezes crianças) trabalhando exaustivamente durante todo o ciclo dessa cultura que vai desde o preparo do solo com arado de tração animal, plantio manual, capinas a base da enxada, colheita (que consiste na extração de toda a planta, de cócoras e onde certamente se faz mais flexões e movimentos que no corte de cana) para depois amontoar, carregar os feixes, secar, bater, selecionar e armazenar o produto final em seu rudimentar paiol (o que não impedirá que 30% dessa leguminosa seja perdida para os vorazes carunchos e outras pragas e fungos pós-colheita) rogando a São José para que as benesses sejam maiores que as intempéries climáticas e que haja boa distribuição de chuvas.


 


Contudo, não são culturas como o feijão (de nossa “sagrada” feijoada) ou a cana-de-açúcar (de nossa “heróica” rapadura) as vilãs da história, senão o latifúndio enquanto classe social.


 


O que precisa estar no centro das denúncias é o latifúndio (não confundir com “grande produção”) que conta com o beneplácito do Estado, enquanto os pequenos trabalhadores rurais são historicamente espoliados, assassinados e massacrados pela ofensiva ruralista. Apesar de muitas políticas agrícolas voltadas ao pequeno agricultor terem sido incrementadas no atual governo (principalmente o seguro e o crédito agrícola) muito ainda sobre política agrária precisa avançar, sendo fundamental maior ousadia para enfrentar o problema fundiário extremamente concentrador de nosso país.


 


Já em 1885 o escritor francês Emile Zola deixava registrado em seu clássico livro Germinal as ultrajantes condições de trabalho dos mineiros de seu país que trabalhavam na extração do carvão mineral, vital para, entre outras coisas, aquecer o povo durante o rigoroso inverno. Mesmo naquela época muitos trabalhadores tinham consciência de classe que o inimigo não era o carvão ou as minas, senão a exploração capitalista. Assim, é necessário romper com esse velho dilema e apostar numa política que não ponha a cana ou etanol como centro das denúncias, mas sim o imperialismo e sua ganância em expropriar os povos das riquezas que produzem.


 


Também a crítica de não transformar alimentos em combustíveis guarda suas contradições. O etanol não é simplesmente combustível para carros particulares, mas fonte energética complementar para impulsionar a economia. Comida no campo, sem transporte, não chega à mesa do trabalhador.


 


Previsões mais catastróficas, e decerto não totalmente descartadas, anunciam a internacionalização do genocídio (1). Entretanto essa antevisão não é nova e remonta Malthus e Bulgákov, esse último com sua lei da fertilidade decrescente do solo segundo a qual todo o investimento adicional de trabalho e capital sobre a terra vem acompanhado não pela obtenção de quantidade correspondente de produtos, mas por uma quantidade decrescente. Sobre essa argumentação, Lênin já respondia que “…essa pretensa lei não vigora em nenhum caso onde a técnica avança e quando os métodos de produção se transformam, apenas é regida de maneira muito relativa e restrita quando a técnica permanece invariável” (2). Em nosso caso, temos mais de 30 anos de pesquisa e inovação que tornaram o Brasil auto-suficiente em petróleo pela substituição de 40% de consumo de gasolina por etanol ao mesmo tempo em que nos transformamos nos maiores produtores de grãos e outros produtos agropecuários do mundo. É certo que o latifúndio concentra as riquezas produzidas e que existem riscos de permanecer inalterada a correlação de força no campo, mas também é verdade que não se deve subestimar a força do povo e sua capacidade de mudar essa realidade e ser protagonista de um projeto altivo e soberano que se apresenta.



 
Com todo o conhecimento acumulado no campo das ciências agrárias é perfeitamente possível aproveitar campos degradados para acrescer a cultura da cana-de-açúcar sem desmatar novas áreas. É errado dizer, pelo menos em nosso caso, que a cana-de-açúcar ameaça a produção de alimentos, sendo que dos 340 milhões de hectares de terra cultivável no Brasil menos de 1%, ou seja, três milhões de hectares são usados para colher cana para etanol. O assunto vem sendo recorrente, mas existem ameaças maiores que essas, como as velhas políticas protecionistas e os subsídios estabelecidos pelos países ricos que podem elevar preços de matérias-primas causando impacto no fornecimento global de alimentos para defenderem suas hegemonias e poder, que mereceriam denúncias mais contumazes.


 


Justamente para diminuir esse poder hegemônico os países em desenvolvimento precisam abrandar suas vulnerabilidades. Primeiro passo para a soberania energética brasileira é a diversificação de sua matriz que tampouco deverá ficar restrita a biomassa e ter o etanol como única pauta de exportação ou de utilização interna, senão de alternativas energéticas outras como a eólica, solar, nuclear, hidroeletricidade, gás natural, carvão, etc. Assim mesmo, devemos nos posicionar contrários a grandes fornecimentos de álcool para os Estados Unidos com o risco, aí sim, de virarmos uma grande monocultura. Pelo contrário, o etanol deve ser uma energia que mova a América Latina rumo a sua integração.


 


E foi justamente isso que observou o presidente venezuelano Hugo Chávez durante a primeira Cúpula Energética Sul-Americana, ocorrida na Venezuela, quando ao apoiar a política brasileira para o etanol afirmou que a mesma “é muito diferente da proposta de Bush” dizendo ainda que os EUA “têm tratado de confundir e fazer uma campanha de intrigas destinada a criar tormentas artificiais em torno do etanol para dificultar a integração latino-americana” (3).


 


Assim, o Brasil tem a necessidade de se resguardar de todas as ameaças possíveis e que são inerentes a qualquer processo que aufere certo domínio estratégico a um país sobre uma tecnologia e um recurso vital. As críticas feitas ao modelo agrário-exportador e as precárias condições e relações de trabalho que vitimam cortadores de cana são bem vindas, principalmente se partem de Cuba. As reflexões de Fidel Castro, como sempre, vêm em boa hora e reforça a discussão sobre esse espinhoso tema para que encaremos, sem vergonha, esses flagelos que vitimam homens e mulheres há mais de quatro séculos em nosso país.


 


A partir daí, com o mesmo orgulho que os irmãos cubanos estampam na nota de três pesos da sua moeda nacional a figura de Che Guevara cortando cana em um esforço revolucionário para garantir a sobrevivência da nova economia socialista (que necessitava de divisas com a exportação do açúcar para a então URSS), poderemos, um dia, deixar essa triste figura que representa o bóia-fria brasileiro apenas registrado nos livros de história, sem ter aberto mão de nosso programa energético diversificado e consequentemente uma maior autonomia de nosso país frente aos países ricos.


 


Notas:


 



(1) La internacionalización del genocidio. Granma, págs. 1 e 2, 04/04/2007.
(2) El problema agrario y los “criticos de Marx”. Lenin – Obras Completas (Tomo 5), p. 106, Editorial Progreso Moscú.
(3) Chávez: Cumbre volvió trizas campana de intriga sobre el etanol. Agencia Bolivariana de Noticias, 17/04/2007.

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