Do outro lado do rio tem um povo

“Diários de Motocicleta” narra percalços e alegrias da jornada de Che Guevara e Alberto Granado, que nela colhem densas memórias e aprendizados sobre os sofrimentos das nações latinas. Texto pode conter spoilers do filme

Cena do filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles. Na imagem, Che Guevara (Gael Garcia) pilota a motocicleta e na garupa vai Alberto Granado (Rodrigo de La Serna)

Nosso Paraná tem o privilégio de sediar uma grande iniciativa do governo Lula, no sentido da integração latino-americana: em Foz do Iguaçu está a UNILA (Universidade da Integração Latino-Americana), que recebe estudantes de diversas nacionalidades de nosso vasto continente. Se Che Guevara e seu grande amigo bioquímico Alberto Granado saíram em sua saga motorizada por países da América do Sul, em 1952, bem poderiam partir da UNILA, se ela já existisse. E a ela voltar, para contar seus aprendizados.

O cineasta Walter Salles filmou essa acidentada viagem do quase médico Ernesto Guevara, a bordo da moto “La Poderosa”, começando em Buenos Aires e percorrendo diversos povos sul-americanos, até o final, na Venezuela. A meta da dupla destemida era percorrer 8 mil Km, do sul ao norte, mesmo com pouco dinheiro e dependendo várias vezes da ajuda de pessoas dos povoados percorridos. “Diários de Motocicleta”, Palma de Ouro no Festival de Cannes (2004), narra percalços e alegrias dessa jornada de cerca de oito meses, ao longo da qual os dois argentinos aventureiros vão colhendo densas memórias e aprendendo sobre os sofrimentos das nações latinas. Cada espectador/a do filme vai também na garupa da motocicleta, partilhando das descobertas, das discussões da dupla, das quebradeiras da “Poderosa” (ela pifa de vez no meio do caminho), através da Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Venezuela.

Era só para ser uma aventura juvenil estradeira, mas… O filme pode ser visto como uma bela metáfora roadie (“filme de estrada”) sobre a necessidade de os povos latino-americanos se conhecerem e se integrarem mais, cada vez mais. Milton Nascimento critica as elites brasileiras nos versos de “Notícias do Brasil” – “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer deste lugar um bom país”. Ernesto e Alberto querem desviar o olhar centrado na Europa e nos EUA, e se voltar para seu próprio povo continental, querem entendê-lo, trocar informações, organizá-lo, mobilizá-lo por sua plena independência, contra as cobiças do imperialismo – opção que aos poucos vão sedimentando em suas consciências.

A opção de ficar ao lado do povo sofrido se desdobra em significativas cenas dos “Diários”, quando o asmático Che e Alberto hospedam-se no hospital anexo a uma colônia de doentes de hanseníase no Peru, onde se dispõem a ajudar a equipe médica que ali trabalha. Os pacientes ficam isolados nessa colônia, separados do hospital e alojamentos médicos por um rio. Che sabe que é imune ao bacilo de Hansen e relaciona-se diretamente com os pacientes mutilados. Na festa de seu aniversário de 24 anos, Guevara discursa ecoando o ideal de Jose Martí: “Brindo por uma América unida!”. Em seguida, lembra-se de seus pacientes do outro lado do rio, atravessa-o a custoso nado, para um asmático, e vai confraternizar com eles, em emocionante simbologia de sua opção.

Esses momentos estão impregnados pela música “Al otro lado del río”, composta pelo argentino Jorge Drexler, vencedora de Oscar de melhor trilha em 2005, cuja tocante letra está abaixo (mas que só surge nos créditos finais).

No mês de aniversário de Che Guevara – ele nasceu em 14 de junho de 1928 -, possa a juventude aguerrida brasileira mirar-se nesse exemplo de rebeldia e espírito revolucionário, de inconformidade com o estado de coisas imposto pelo brutal capitalismo e contribua para a liquidação do governo genocida no Brasil. Somem-se todos para soprar furacões libertários que voltam a agitar planícies e montanhas da América latina, a exemplo de Argentina, Bolívia, Chile, Peru. Em um parágrafo de sua carta à juventude, assinala Che: “Ser jovem é ser essencialmente humano (…). É desenvolver ao máximo a sua sensibilidade e sentir-se entusiasmado frente a uma injustiça cometida em qualquer canto do mundo, mas também sentir-se entusiasmado quando, em algum canto do mundo, se alçar uma nova bandeira.” Em nosso país, a bandeira maior neste momento é a retirada do inimigo da vida, o mensageiro da morte, o genocida da cadeira de presidente e a volta da verdadeira democracia.

Assolados/as que estamos todos/as no Brasil pelas desesperanças disseminadas no quadro da pandemia da COVID-19, “Diários de Motocicleta” é um alento para que “coloquemos o pé na estrada” na luta por um futuro de bem-estar para o povo brasileiro e toda a humanidade, uma vida de igualdade e de fraternidade.

  • Título: Diários de Motocicleta
  • Diretor: Walter Salles
  • Elenco: Gael Garcia e Rodrigo de la Serna
  • Ano: 2004
Che Guevara e Alberto Granado

Al Otro Lado del Río- Jorge Drexler (Oscar de melhor música em 2005) https://www.youtube.com/watch?v=cg1wDc9JVB4

Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

El día le irá pudiendo poco a poco al frío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a
Rema, rema, rema-a

En esta orilla del mundo lo que no es presa es baldío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Yo muy serio voy remando muy adentro sonrío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Referências:

https://www.umes.org.br/index.php/noticias/15-noticias/321-carta-de-che-guevara-a-juventude.

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