Dois anos sem Marielle e seu papel na unidade do campo civilizatório

A execução de Marielle, junto com o motorista que lhe acompanhava, Anderson Gomes, por tudo que encarnava, transformou-a num símbolo da luta popular no Brasil e no mundo.

No próximo dia 14 completam-se dois anos que nossa companheira de sonhos Marielle Franco foi executada. Lembro-me do exato momento em que, em Salvador (BA), ainda esperava esperançoso sua mensagem informando que conseguiria uma brecha na sua apertada agenda para participar de uma mesa no Fórum Social Mundial daquele ano, promovida pela articulação “Vamos de Preto”, impulsionada pelo nosso então mandato de Deputado Estadual.

Reuniríamos parlamentares negros e negras, e outras importantes lideranças, para debater poder político da população negra no Brasil.

Infelizmente, a mensagem que recebi no meu zap naquela noite foi inacreditável. Tinham assassinado nossa Marielle, brutalmente, covardemente. Nosso mundo caiu. Marielle, dentre tantas lideranças negras que reuníamos, era de longe a mais capaz e a que estava no centro do laboratório do Estado Penal e Miliciano em construção no Brasil. Era a nossa mais qualificada porta voz, por sua condição de mulher negra, lésbica, favelada, inteligente, altiva, aguerrida, destemida, pela luz que emitia. Um corpo e uma vida que eram incontornavelmente um manifesto revolucionário.

A execução de Marielle, junto com o motorista que lhe acompanhava, Anderson Gomes, por tudo que encarnava, transformou-a num símbolo da luta popular no Brasil e no mundo. Entrou para a história, para a galeria de ícones da luta civilizatória, como Martin Luther King, Gandhi, Rosa Luxemburgo, Che Guevara e outros.

E este símbolo, que traz consigo os signos do bom, do bem, do belo, do ético, da luta, está em disputa desde então. Muitos buscam se associar à sua imagem, por um lado, e por outro há os que querem desconstruir esta imagem. Sua família, com sua irmã Anielle à frente, tem desempenhado importante papel na defesa de seu legado, denunciando os abusos e as falsidades que ocorrem, à esquerda e à direita e extrema direita.

Nestes dias que antecedem o biênio de sua execução, uma intensa polêmica tomou conta da imagem de Marielle Franco. A notícia de que a Rede Globo faria documentário e série sobre a sua vida, com roteiro de Antonia Pellegrino, uma feminista branca e, por acaso ou não, esposa do deputado Marcelo Freixo, e com a direção de José Padilha, também branco e, ainda, com um histórico de aproximação com o lavajatismo.

A crítica varia entre a exigência de profissionais negros na direção do projeto, bastante justa; contra a presença de um diretor com histórico de simpatia com forças políticas antagônicas a Marielle; e, em menor medida, à Rede Globo capturar a imagem de Marielle.

A resposta às críticas, feita pela porta voz da família de Marielle, Anielle Franco, veio num tom ponderado, simples e objetivo, via sua conta no twitter, e nos permite tirar lições importantes.

Anielle Franco é irmã de Marielle l Foto: Luiza Castro/Sul21

Anielle afirmou que sua família foi procurada pra ser informada dos projetos, mas que estes já vieram prontos. Afirmou que sugeriu que profissionais negros deveriam estar participando em posições estratégicas no projeto. Mas afirmou também que não poderia impor condições à produção e que esperava que o resultado final respeitasse a história de sua irmã. Esperava também que a visibilidade ampliada da história de vida e morte de Marielle fortalecesse o Instituto Marielle Franco, que ela coordena, assim como traga algo de positivo à família. Justíssimo.

O tom e os argumentos de Anielle parecem ter a maturidade de quem percebeu bem o que está se passando no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro, Estado do clã Bolsonaro que governa o país. Estado governado por um sujeito que ordena a polícia a “atirar na cabecinha”, Witzel, e cujo prefeito da capital é líder da Igreja Universal, o fundamentalista Crivella.

Parece ter a exata noção também que em seu Estado, após a morte de Marielle, tentaram assassinar sua reputação e em praça pública quebraram placa em sua homenagem. Foi no seu Estado que o partido de Marielle elegeu quatro deputados federais e o partido dos seus algozes, o PSL, elegeu o triplo; Estado em que um dos quatro deputados eleitos do seu partido teve que se auto exilar na Europa, abdicando do mandato, por conta da violência com que estava sendo tratado nas ruas por comportamentos fascistas de setores da população.

Diante de tal situação é compreensível que se perceba o quadro defensivo e de necessária unidade ampla entre todos que defendem patamares minimos de democracia. A hora é de frente antifascista.

E Marielle hoje é um símbolo desta luta que precisa ser radical nos princípios, mas também radical na generosidade. Marielle virou conceito, um conjunto de valores. Ostentar a imagem de Marielle é se incluir num campo civilizatório. É se auto excluir de um campo não humanista.

Foi assim que compreendi a postura da família da Marielle ao serem generosos com a diversidade e até contradições de atores e forças sociais que se somam à pergunta que unifica um campo amplo civilizatório e anti fascista no Brasil: Quem mandou matar Marielle e por que?

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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Um comentario para "Dois anos sem Marielle e seu papel na unidade do campo civilizatório"

  1. Jorge Riba disse:

    Muito bom o texto, explicado e esplanado de forma coerente, simples e direto.

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