Estamira: uma tradução de resistência sob a máquina de dor do capitalismo

assisti ao documentário fracionadamente, em três ocasiões. Comecei, tive que parar, refletir, sofrer, quase morrer para retomar, diante de cenas fortes, grotescas, registradoras de desumanidade

Documentário "Estamira" I Foto: Divulgação

“Não gosto de erros, não gosto de suspeitas, não gosto de judiação, não gosto de perversidade, não gosto de humilhação, não gosto de imoralidade”, Eu sou Estamira e tá acabado, Estamira mesmo.”
Estamira, 2005

Estamira Gomes de Sousa morreu aos 70 anos, na noite de 28 de julho de 2011, no Hospital Miguel Couto, no Rio de Janeiro, onde estava internada. Sua trajetória foi pontilhada de violências, violações de direitos e negligências, ao longo de toda a sua vida e na sua morte. Ela foi inadequadamente atendida, literalmente abandonada nos corredores do hospital carioca, afirma Marcos Prado, diretor do documentário “Estamira”. Prado e José Padilha finalizaram o documentário, com duração de 115 minutos, em 2005.

O longa-metragem mostra imagens duras de um mundo em pedaços, uma realidade caótica, vidas dilaceradas e violentadas.

Marcos Prado revelou em entrevista que conheceu Estamira no lixão do Jardim Gramacho, no município fluminense de Duque de Caxias, porque, desde 1994, preocupado com problemas ecológicos, acompanhava aquela dramática realidade de seres humanos disputando com urubus e outros bichos os despojos no lixo. Ele conheceu e conversou com a futura protagonista do filme, fez uma primeira foto por ela consentida e isso foi o começo do impressionante documentário lançado em junho de 2006, que veio a ganhar vários prêmios. Já nesse contato inicial, ela disparou uma de suas incisivas perguntas ao cineasta quanto a ele saber qual sua missão (dele). Antes que ele respondesse, Estamira pontificou: “a sua missão é revelar a minha missão”. E assim nasceu um marcante registro da vida de uma brasileira pobre, mas resistente (1). Assinale-se em Prado a capacidade, rara até em muitos psiquiatras, de saber ouvir declarações de pacientes que podem parecer totalmente disparatadas, sem sentido, cujo significado mais fundo às vezes só se vai capturar tempos depois.

Documentário “Estamira” I Foto: Divulgação

Eu assisti ao documentário fracionadamente, em três ocasiões. Comecei, tive que parar, refletir, sofrer, quase morrer para retomar, diante de cenas fortes, grotescas, registradoras de desumanidade. Mas, simultaneamente, constatando uma sinuosa sabedoria expressa nas falas dessa mulher negra, muito pobre, companheira de sofrimentos de seus conhecidos moradores de periferias e favelas, totalmente desprotegida de politicas públicas. Ilustração de seu modo de sobrevivência, seu barraco exibe uma coleção de materiais coletados e selecionados do aterro sanitário do Jardim Gramacho. Desse dantesco cenário, Estamira sobreviveu por mais de 20 anos catando objetos e mesmo restos alimentares. Há uma cena em que ela mostra à câmera vidros de conserva, e alegremente informa que fará molho para uma deliciosa macarronada. Sua filha mais nova, adotada, em uma visita à mãe, diz amorosamente que é a comida mais deliciosa que já saboreou, completando que sonha cuidar de Estamira. Maria Rita, essa filha, aparecendo perto do final do documentário, protagoniza uma cena de muita afetividade por Estamira, assinala que o lixão é um lugar de trabalho, e que desde muito pequena acompanhava sua mãe às incursões entre as sobras. Contudo, Rita guarda uma imagem macabra desse lixão, toda a exaustiva catação do que ainda se pudesse aproveitar dali, e ainda esmolar pela comida do dia.

“Sou louca, sou doida, mas sou lúcida, consciente… sabe o que significa a palavra cometa? Comandante a lua é lá ela é o reflexo é o contorno isso aqui (o lixão), é escravo disfarçado de liberdade”(Estamira, 2005). O documentário é um encadeamento de frases que parecem desconexas, sem sentido objetivo, mas que escondem, no pensar dessa mulher, elos com a realidade passada e atual dela. Frases que, no modo interpretativo do mundo, denotam conteúdos e saberes, símbolos e signos do drama da catadora que, desprezada pela sociedade em que vivia e diagnosticada como esquizofrênica pelo sistema de saúde, é excluída, interditada e isolada, como milhões de brasileiros e brasileiras que sobrevivem dos restos da sociedade.

Foto: Reprodução

O lixão Jardim Gramacho, em operação desde os anos 70, foi fechado em 2012, em função de compromissos com a Conferência das Nações Unidas (Rio+20). O local ocupava um espaço de mais de um milhão e trezentos metros quadrados e, na época da realização do filme, o aterro sanitário era considerado o maior da América Latina, recebendo oito mil toneladas de lixo por dia; há cenas de caçambas despejando uma avalanche de dejetos enquanto os catadores aguardam para os vasculhar. O lixão estava instalado em um terreno argiloso, cercado de mangues, às margens da Baía da Guanabara, gerando um gravíssimo problema de contaminação do solo e de poluição atmosférica, uma ameaça ambiental pela proximidade com aquela baía (Bastos, 2012). Para ganhar a vida através do recolhimento de materiais recicláveis e também comida, se expondo a toda sorte de morbidades potenciais inerentes ao trabalho no lixão, cerca de 1.500 pessoas circulavam diariamente durante as 24 horas do dia, tendo nos entornos intenso trânsito de caminhões, uns para proceder ao vazamento dos resíduos e outros que compravam o material catado e separado pelos trabalhadores (Bastos, 2015). Ali se agitava a infatigável Estamira: “Os espaços inteiro é habitat, a água é habitat, o fogo é habitat, as famílias também é habitat” (Estamira, 2005).

Ela sempre se demonstrava inconformada com o mundo, questionando as situações cotidianas do consumismo extremado, fazendo criticas sobre o controle dos poderosos da sociedade capitalista, cuja fome de lucros mantêm a maioria das pessoas na miséria. Para ela, a única solução é o povo. Sua narrativa é firme e coerente muitas vezes, defende suas ideias e expõe suas opiniões, com destaque sobre a situação do lixão, seu controle e dominação. Ela demonstra agradecimento por ter seu barraco, diz amar o local onde vive, pois é refúgio, espaço onde pode expressar livremente suas opiniões. Sobre sua casa, destacou: “graças a Deus tenho minha casinha, meu barraco, acho sagrado meu barraco, abençoado, e tenho raiva de quem falar que ali é ruim, sai daqui eu tenho para onde descansar, isso que é minha felicidade.”

Foto: Reprodução

A história de vida de Estamira é marcada por diversas violências, entre elas, abusos sexuais, estupros, traições em seus dois casamentos, a adoção de sua filha mais nova por outra família, a dependência química, o período em que foi moradora de rua. Um entre tantos momentos impressionantes do documentário é Estamira contando que foi levada à força à prostituição por seu avô quando tinha 12 anos. Ao sair da prostituição, acaba em um casamento infeliz marcado pela violência moral, psicológica, pela dependência econômica, pelas opressões, pela humilhação, machismo, racismo e traição dentro de sua própria casa. A filha de Estamira revela no documentário que a mãe passou a ser acometida por situações de transtorno mental após ser violentada e agredida pelo próprio marido. Ela ainda sofre dois estupros quando retornava para sua casa vinda do Lixão. De acordo com relatos da protagonista e de seus três filhos, há a descrição da vivência de violências sexuais sofridas desde a infância. Violências de ordem doméstica e familiar, físicas, morais, psicológicas. Esse conjunto terrível de agressões certamente impactou no equilíbrio mental de Estamira, que contra ele foi levada a resistir com as expressões de um tipo de atitude esquizofrênica (mas não totalmente dissociada da realidade).

A violência doméstica contra a mulher, vista a partir das relações de gênero, distingue um tipo de dominação, de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres, estruturalmente construído, reproduzido na cotidianidade e subjetividade vivida pelas mulheres. Isso permeia transversalmente classes sociais, raças, etnias, níveis educacionais e faixas etárias. Saffioti (2003), ao analisar a violência, nos ensina que não é possível olhar um fenômeno de forma isolada; é preciso compreender o todo e o contexto de inserção dos fenômenos. E, assim, as violências vividas por Estamira fazem parte das vidas de imenso número de mulheres que são sistematicamente agredidas, em geral, por seus parceiros, situação agravada pela naturalização com que a nossa sociedade capitalista, patriarcal e racista lida com essa expressão da questão social.

Segundo Diniz (2006), mulheres vítimas de violência tem maior propensão a receberem diagnósticos psiquiátricos. Muitas não são sequer capazes de caracterizar suas vivências como violentas e tendem a se sujeitar a um tipo de violência para evitar outras.

Estamira acreditava ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos. Para ela, o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive nossa sociedade. Neste Brasil de 2021, em crise econômica grave, e tão dilacerado sob um governo neofascista, que odeia seu povo e a Nação, insensível à doença, à miséria, à fome, quantas outras variadas Estamiras já surgiram por causa, em grande medida, dessas políticas de destroçamento da vida?

Estamira, com seus modos e metáforas só dela, presente!


  • (1) psicologiamsn.com/2013/10/psicologia-cinema-215-filmes-para-quem-ama-psicologia.html
  • BASTOS, Valéria Pereira. Jardim Gramacho e os catadores de materiais recicláveis: Território extraordinário do lixo. Rio de Janeiro, 2012.

  • _____O fim do lixão de Gramacho: além do risco ambiental. O Social em Questão, núm. 33, enero-junio, 2015, pp. 265-287 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio De Janeiro, Brasil
  • DINIZ, GLAUCIA. VIOLÊNCIA, EXCLUSÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO. ESTUDOS EM REPRESENTAÇÕES SOCIAIS. BRASÍLIA: ED. UNB, 2006.

  • PRADO, Marcos. ESTAMIRA. [FILME-VÍDEO]. Produção de James D’Arcy, José Padilha, Marcos Prado,Direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro. 2005.

  • SAFFIOTI, H.I.B. Violência estrutural e de gênero: Mulher gosta de apanhar? Programa de Prevenção Assistência e combate à violência contra a Mulher. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2003.
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