FHC, o parecer golpista e a defesa da legalidade

“A legalidade nos mata” – esta frase, dita há mais de 160 anos pelo conservador francês Odilon Barrot, seria um bom título para o parecer que o jurista Ives Gandra Martins elaborou a pedido de um advogado do Instituto FHC, onde defende a constitucionalidade (contestada por juristas democráticos) do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

A notícia sobre esse parecer surgiu logo em seguida à publicação de artigo no qual, sob um título significativo (“Chegou a hora”, O Estado de S. Paulo, 01/02/2015), Fernando Henrique Cardoso deixa de lado todo pudor e defende abertamente um golpe para afastar Dilma Rousseff do poder. Com a diferença de que agora a mão do gato golpista não seria a dos militares mas a do judiciário.
Falou-se ao longo de toda a semana dessa ameaça de fraudar, com base nessa interpretação enviesada da lei, o resultado da eleição de 2014.

Vai sendo armado o jogo político dos próximos meses. As pressões sobre a Petrobrás crescem e respingam, fortemente, no governo. A Operação Lava Jato, da Polícia Federal, com apoio do Ministério Público, promete desdobramentos de forte repercussão. O conservador Eduardo Cunha (PMDB-RJ), próximo da oposição de direita, foi eleito para a presidência da Câmara dos Deputados e já mostrou a que veio ao acatar a pressão liderada pelo PSDB e anunciar a criação de nova CPÌ da Petrobrás. Os sindicatos, a UNE, os movimentos sociais demonstram, no outro espectro da luta política, a disposição de sair em defesa do governo, da legalidade e das mudanças.

Depor um governo – e é disso que se trata – não é um problema “técnico” e muito menos jurídico. É político e, exige, dos contentores (sejam os golpistas ou os defensores da legalidade) que tenham força social e política capaz de amparar suas ações.

Neste sentido o artigo do ex-presidente neoliberal é esclarecedor. Com que forças contam os golpistas? No passado as cassandras da UDN (antepassados históricos e políticos da direita liderada pelo PSDB) costumavam rondar os quartéis em busca de apoio para suas aventuras golpistas. Hoje esta é uma chance que não está no horizonte. O profissionalismo predomina entre os militares e os afasta de aventuras políticas; além disso, esta área institucionalmente tão forte como são as Forças Armadas mantém viva a memória do descalabro e ameaças que enfrentou sob o governo neoliberal de FHC. Anos em que foram praticamente sucateadas por um governo que deixou em plano secundário qualquer expressão da soberania brasileira, fosse política, econômica ou mesmo militar. Agora, ao contrário do que ocorria no passado, as cassandras golpistas assediam o Judiciário, os juristas e os juízes.

É preciso lembrar ainda que Fernando Henrique Cardoso foi um dos principais sociólogos brasileiros tendo sido leitor frequente da obra de Marx. Por isso não se pode imaginar que ele tenha esquecido algo fundamental: a política é também a expressão institucional da luta de classes.
Sendo verdade que ele não tenha esquecido aquelas lições pretéritas, pode-se imaginar que percebeu a profunda mudança que ocorreu nas relações entre as classes sociais desde a posse de Lula, em 2003. Mudança que opõe – na falta de uma descrição mais precisa – ricos e pobres no tabuleiro político brasileiro.

O fim da ditadura em 1985 esgarçou o pacto político vigente desde 1930. Baseado, de um lado, na aliança política informal entre o povo pobre do campo e do interior com os grandes latifundiários no Nordeste. Essa aliança deu estabilidade oligárquica (com resultados eleitorais obtidos à base do cabresto) para um sistema político nacional que tinha, no topo, as burguesias industrial e financeira e seus aliados estrangeiros, sediadas principalmente no Sudeste.

A hegemonia do modelo neoliberal do estado mínimo acirrou a ganância especulativa dessas burguesias “modernas” e começou a cortar até mesmo as escassas verbas públicas que alimentam o clientelismo que estava na base do modelo “getulista” que Fernando Henrique Cardoso, na presidência da República, prometeu eliminar.

Mesmo nessa questão (a do clientelismo, que é politicamente inaceitável) FHC e seu séquito neoliberal representaram o atraso redobrado e o retorno a um passado ainda pior. É como se Gilberto Freyre (que exprimiu teórica e ideologicamente o acerto que existiu depois de 1930) fosse trocado por Oliveira Viana, o teórico do racismo e da supremacia branca. Cujo pensamento pré-nazista (Freyre o considerou um místico do arianismo) previa que os brancos superariam os negros e mestiços na população. Ele condenou a Abolição (num livro de 1918, trinta anos após a lei que acabou com a escravidão) alegando que ela retardou a eliminação do que chamava de h. afer (isto é, os negros!) da população brasileira!

O diagnóstico do Brasil feito por Oliveira Viana é semelhante ao feito por tantos comentarias políticos que analisaram os resultados da eleição de 2014. Para o historiador racista havia pelo menos dois brasis – o “meridional” (Sudeste e do Sul), habitado principalmente por brancos; e o Brasil que fica da Bahia para o Norte com sua maioria de negros e mestiços. O progresso estaria, em sua opinião, no Brasil “branco”, imagem do que poderia chegar a ser, no futuro, o “outro” Brasil, desde que prevalecesse na população a herança europeia. Oposição semelhante a essa emergiu com clareza em “análises” dos resultados da eleição de 2014 e que opuseram o Sul e Sudeste (“desenvolvido” e “trabalhador”) ao Nordeste (“subdesenvolvido” e “indolente”).

A situação nacional contemporânea desqualifica pretensões dessa espécie, mesmo as conclusões de tais análises. Principalmente quando o governo da República cabe a tantos brasileiros que trazem nas veias o sangue índio e do h. afer!

Como é possível que gente à qual se pretendeu recusar mesmo a sobrevivência física, como queria Oliveira Viana, possa pensar em usar recursos como aqueles do pré-sal para melhorar de vida?. Ser atendida por programas oficiais? Gente que a elite sempre quis deixar à margem e que, agora, frequenta universidades, voos aéreos, shopping centers e por aí vai?

O cenário político que vai sendo armado neste inicio de novo mandato está repleto de acenos do governo à oposição. É justo que o governo faça isso. É preciso garantir a tal “governabilidade”. Mas qual é a medida das concessões à oposição neoliberal? Qual é a chance de acordo em torno de dois projetos de Brasil tão conflitantes e contraditórios? Esta é uma questão sobre a qual os responsáveis políticos do governo precisam refletir e muito. De um lado está a direita conservadora detentora de fatias consideráveis do poder efetivo. Do outro lado estão os trabalhadores e os empresários da produção, da cidade e do campo. No limite, de um lado a minoria de defensores da supremacia branca, que se contrapõe à imensa maioria de brasileiros mestiços de índios, negros e europeus. São dois projetos diferentes e opostos de país, de democracia, de povo. E a defesa do avanço no rumo de mais e melhores conquistas (como a reforma política democrática, que é essencial!) passa principalmente pelos acenos do governo à mobilização popular, e não o contrário.

Vendo-se na contingência de ficar fora da presidência da República por mais quatro anos e, o que acha ainda mais terrível, tendo ao que tudo indica de enfrentar a candidatura de Lula em 2018, a direita, como sempre fez na República, indica o caminho do golpe para retomar o Palácio do Planalto. Tenta, para isso, fazer da política um processo judiciário e dar uma aparência de legalidade para seu instinto golpista. Faria melhor se reconhecesse, como Odilon Barrot, em 1849: la legalité nous tue. Assim mesmo, em francês, bem ao gosto de tão letrados patronos…

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