Função ou arremedo da crítica

A relevância da crítica de cinema a partir da visão de Kleber Mendonça Filho sobre os textos de Celso Marconi e Fernando Spencer

Fotomontagem feita com as fotos de: Nathan Engel/Pexels e Gazeta Informativa

Quem é ou foi profissional da crítica de cinema, sempre vive e viveu preocupado com a velha questão da importância que a crítica pode ter. Ou não ter. Sempre pensamos, acho, que se não chegamos nem aos leitores nem tampouco aos realizadores, então a nossa participação é nula. Desde o começo nos anos 1950, eu tinha essa preocupação comigo. E, mesmo que tenha mudado na forma de escrever, meu pensamento continua vigente para mim. Cinema não é divertissement, como durante muitos anos foi a divulgação principal da empresa que era a maior exibidora no país, a Luiz Severiano Ribeiro.

E assim as coisas acontecem. Ou se afirmam. E é interessante quando um cineasta do nosso estado – Pernambuco – , mas que é hoje a figura mais conhecida e atuante não só em nosso estado, mas em todo o Brasil, coloca a importância do nosso trabalho – da dupla Fernando Spencer e Celso Marconi –, que aconteceu do final dos anos 50 até mais ou menos os anos 80 do século passado. Eu e Spencer publicávamos e editávamos nos dois jornais que eram fundamentais na época para a divulgação e circulação e formação da cultura pernambucana. E tínhamos consciência disso. E sentíamos diretamente como o nosso trabalho tocava nas pessoas. E não só nos leitores, mas também nos realizadores. Naqueles de quem nós divulgávamos o trabalho deles.

Fernando Spencer e Celso Marconi I Fotomontagem feita com as fotos de: Ricardo Moura e Dmitry Demidov/Pexels

Nós tivemos muitas voltas. Pessoalmente, tínhamos conversas pessoais com aqueles que eram notícia para nós. E, ao lado das conversas que não nos interessavam, muito porque seriam meros elogios, recebíamos “feedbacks” fundamentais através do que sabíamos quando falávamos com objetividade e correta fundamentação. Tenho consciência de que não éramos dois bobos vaidosos, mas dois profissionais que trabalhavam em setores bem próximos e não queríamos mais do que cumprir com o nosso trabalho profissional. Cada quadro que me era dado, após matérias sobre artes plásticas publicadas, me serviam não como bem material, mas como reconhecimento da importância do meu trabalho jornalístico. E assim tenho hoje dezenas de “troféus”, que são mais expressivos do que medalhas chegadas através de órgãos oficiais.

Então publico a seguir aqui o texto escrito pelo cineasta Kleber Mendonça Filho; um texto escrito em francês para sua ficha de inscrição no Sindicato de Críticos na França, que deve ter âmbito internacional, e que foi traduzido por mim. Para que o nosso trabalho – meu e de Spencer – seja conhecido pelo pessoal do Brasil.

Olinda, 05. 7. 2021

Sindicato Francês da Crítica de Cinema

Kleber Mendonça Filho I Foto: Pascal Le Segretain/Getty Images

Kleber Mendonça Filho (Brasil)

Estes são os jornais que me fizeram ficar amoroso do cinema. Depois, a crítica veio confirmar essa amorosidade. Quando eu era menino, nos anos 1970, o Diário de Pernambuco consagrava uma página cotidiana aos filmes em exibição no Recife. Cada cinema tinha seu logotipo e ali se anunciava a sua programação. Os anúncios tinham uma verdadeira qualidade gráfica, eles eram em preto e branco, acompanhados de desenhos originais adaptados a uma impressão muito contrastada. Certas pequenas informações faziam toda a originalidade de cada anúncio, como as menções “em cores”, “70 mm”, “Panavision”, “Cinemascope”, a classificação, o nome dos atores, os logotipos dos estúdios (Fox, Columbia, Gaumont, Embrafilme, MGM, etc), e às vezes um pequeno texto publicitário. Informações que me atraiam para ver os filmes.

E depois, com a idade de sete ou oito anos, eu fiz uma descoberta: eu vi que as páginas seguintes continham textos que falavam de filmes. E identificando as fotos, ou qualquer palavra ou título familiar, eu pude descobrir que eles evocavam os filmes da página precedente.

No Diário de Pernambuco era Fernando Spencer que escrevia sobre o cinema. No Jornal do Commercio era Celso Marconi. Eu então descobri que existem dois tipos de escrita diferentes: um é puramente descritivo, o outro reage ao filme, faz conhecer um sentimento, às vezes negativo, e outras positivo. E isso me deu ainda mais vontade de ver os filmes.

A etapa seguinte de minha aprendizagem foi a de poder então, após ter visto os filmes, confrontar minhas próprias impressões com o que havia sido escrito nos jornais. Às vezes eu tinha visto um filme e eu me dava conta em seguida que ele falava de fato de uma outra coisa do que eu pensava ter visto ou eu compreendia. Talvez porque as legendas eram muito rápidas. De outras vezes eu ficava contente de constatar que o filme que eu havia visto era o mesmo do qual eu tinha lido no jornal, em termos de história, e de ação. Às vezes eu também ficava decepcionado: e essas foram minhas primeiras divergências com a crítica. Eu pensei que eu tinha o mal de achar que o nível de autoridade, que era conferido a esses textos , devia-se ao simples fato de ser publicado num jornal. E isso me ocorre ainda hoje.

Depois, ainda muito jovem, eu fui apresentado ao senhor Spencer em pessoa, porque ele trabalhava na Fundação Joaquim Nabuco, onde minha mãe também trabalhava. Ao lhe apertar a mão, eu tive a impressão de me aproximar do cinema como se ele fosse a encarnação em carne e osso dos filmes. Isso não eram páginas de textos num jornal, mas um homem que portava lunetas e tinha o ar gentil. Eu tinha encontrado um crítico, um expert, uma prova viva da existência do cinema. Os inúmeros cartazes e fotos de filmes e o cheiro de cigarro no seu birô me permitiram essa certeza.

Em seguida, me é chegada outra coisa. Eu tinha descoberto lendo os jornais que o senhor Spencer e seu simpático rival, o senhor Marconi, realizavam ambos filmes e faziam parte disso que se chamava o “movimento Super-8”. Eles eram ao mesmo tempo críticos e cineastas.

O tempo passou e graças a esses dois homens eu compreendi que o cinema e a crítica não são ciências exatas e que a perfeição não existe, tanto na imagem quanto nas páginas dos jornais. A tinta dessas páginas talvez escurecia meus dedos, e isso era considerado como “normal”.

Mais tarde, seguindo os passos do senhor Marconi eu me tornei crítico no Jornal do Commercio, e como o senhor Spencer eu fui diretor da seção de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Eu assim tomei consciência do caráter cíclico da vida, e do fato de que se nós vemos cada coisa diferentemente, nós somos igualmente todos influenciados uns pelos outros. O cinema tem seus próprios fantasmas, alguns se encontram seguramente no interior da câmera ou ao lado do quadro. Existem fantasmas nos supermercados que antes tinham sido fantasmas no cinema ali exposto. E também há fantasmas nas páginas dos velhos jornais e revistas, misturando ideias que existem lá, repousam lá e são ainda bem vivas.

Kleber Mendonça Filho

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor