Gilmar Mendes: “Estado Policial” ou Judiciário Policialesco?

Há cerca de dois anos atrás, em 23 de maio, o então vice-presidente do STF Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes,[1] criticou “o Estado policial” que estaria em curso no Brasil. Na ocasião, alegava que os órgãos policiais estariam começan

(foto do New York Times: o mega-fraudador Bernard Leon Madoff é preso e algemado nos EUA.


 


 


Naquela conjuntura, Mendes vinha denunciando uma suposta ação da Polícia Federal que, segundo ele, teria vazado informações do inquérito da Operação Navalha.[2] Na época, responsabilizou o ministro da Justiça, Tarso Genro, pela publicização, afirmando que o Brasil estava ingressando num “Estado policial”, mas de  “forma abstrata”, haja vista que não citou ação específica para tal denominação.


 


 


Sua referência histórica foi em relação a “KGB [da antiga União Soviética] e a Gestapo [do antigo regime nazista]”, para ele “modelos clássicos de Estado policial'' nos quais, segundo declarou em 1º de junho: “a gente sabe bem como isso começa e como isso termina”.


 


 


Mendes reagia à divulgação de uma lista em que era indicado como um dos contemplados por ''mimos e brindes'' da empresa Gautama, apontada como a coordenadora de uma alegada máfia das obras.[3] Na verdade, se tratava de um homônimo do ministro, Gilmar de Melo Mendes, que seria engenheiro civil em Sergipe.


 


 



Mendes também alegava que a Polícia Federal vinha fazendo ''terrorismo com a democracia'' através de uma “lógica absolutamente totalitária”. Era um momento em que se ampliava a exposição midiática do ministro do STF.



 


 


Gilmar Mendes, entre outras ações, ainda como vice-presidente do STF, soltou o ex-governador do Maranhão, José Reinaldo, preso pela Polícia Federal, em 20 de Maio de 2007. Já em 29 de Maio do mesmo ano, concedeu o habeas corpus que libertou o empresário Zuleido Veras e todos os 48 presos da Operação Navalha.


 


Depois disso, já como Presidente do STF,[4] em 10 de Julho de 2008, Gilmar Mendes mandou soltar Daniel Dantas, dono do Banco Opportunity, bem como sua irmã, Verônica Dantas, e os outros executivos e diretores do banco. Todos foram presos pela Polícia Federal durante a Operação Satiagraha, acusados de fazer parte de esquema de desvio de recursos públicos, de lavagem de dinheiro e outros crimes que podem somar em torno de US$ 1,9 bilhão.


 


 


 


Operação Satiagraha, Grampos e Gilmar Mendes


 


 


 


Depois da Operação Satiagraha, muitos foram os protestos contra as decisões de Gilmar Mendes. 42 procuradores da República escreveram que ''as instituições democráticas brasileiras foram frontalmente atingidas pela decisão liminar que, em tempo recorde, sob o pífio argumento de falta de fundamentação, desconsiderou todo um trabalho criteriosamente tratado nas 175 (cento e setenta e cinco) páginas do decreto de prisão provisória proferido por juiz federal da 1ª instância, no Estado de São Paulo. As instituições democráticas foram frontalmente atingidas pela falsa aparência de normalidade dada ao fato de que decisões proferidas por juízos de 1ª instância possam ser diretamente desconstituídas pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, suprimindo-se a participação do Tribunal Regional Federal e do Superior Tribunal de Justiça.


 


 


Definitivamente não há normalidade na flagrante supressão de instâncias do Judiciário brasileiro, sendo, nesse sentido, inédita a absurda decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.(…)''.


 


 


Conjuntamente com os procuradores, mais de 100 juízes federais da Terceira Região declararam: ''Nós (…) abaixo assinados, vimos mostrar, por meio deste manifesto, indignação com a atitude de Sua Excelência o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal, que determinou o encaminhamento de cópias da decisão do juiz federal Fausto De Sanctis, atacada no Habeas Corpus n. 95.009/SP, para o Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho da Justiça Federal e à Corregedoria Geral da Justiça Federal da Terceira Região.(…)''.



 


Somou-se a eles a Associação de Delegados da Polícia Federal com o seguinte protesto: ''a ADPF manifesta sua indignação quanto à nova decisão do ministro Gilmar Mendes que determinou a soltura do Senhor Daniel Valente Dantas, em desacordo com a jurisprudência dominante, que autoriza a prisão preventiva no caso de prejuízo à instrução criminal, e com supressão de instâncias do Poder Judiciário. Referida decisão desprezou o esforço desenvolvido pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal, bem como a criteriosa análise da legalidade e adequação realizadas pelo Juízo de primeira instância, quando da determinação da prisão preventiva do Senhor Daniel Valente Dantas. (…)


 


É inadmissível que à Polícia Federal, responsável por trabalhos conjuntos com o Ministério Público e o Poder Judiciário, norteados para a desejada e tempestiva mudança de um sistema historicamente focado à prisão de criminosos desassistidos, seja atribuída a pecha de ?canalhas? e ?gângsters?. A contrário senso, investigados pelo desvio de bilhões de reais dos cofres públicos, inclusive com a tentativa de suborno de Delegado de Polícia Federal, são tratados com beneplácito”.[5]


 


 


Ainda em 8 de maio de 2002, Dalmo Dallari escreveu o artigo “Degradação do Judiciário”, no qual alertava sobre a indicação de Gilmar Mendes para o STF: “(…) pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica. Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. (…)estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato.


 


Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. (…) É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em ''inventar'' soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, ''inventaram'' uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais. Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.  Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um ''manicômio judiciário''. (…) A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou ‘ação entre amigos’. É assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática”.[6]


 


 


 


O discurso sobre o “Estado Policial” foi reforçado sobre uma sequência de supostos grampos nas altas esferas do judiciário brasileiro. Durante a eleição presidencial de 2006, o Ministro Marco Aurélio de Mello denunciou que seus telefones e os de outros dois ministros do TSE estariam sendo grampeados. Em 2007, Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello requentaram a versão de que estavam sendo grampeados. Em 2008, após a Operação Satiagraha, depois de trabalho extra no fim de semana para soltar Daniel Dantas por duas vezes, Gilmar Mendes afirmou ter ouvido da desembargadora Suzana Camargo a acusação de que o juiz Fausto de Sanctis o havia grampeado. Depois disso, a revista Veja foi a porta-voz da matéria que “demonstrava”, a partir de um “anônimo” da Agência Brasileira de Informações,  que a ABIN teria grampeado Gilmar Mendes em conversa com o senador Demóstenes Torres (DEM-GO).


 


 


A partir de então, Gilmar Mendes aprofundou seu argumento sobre um “Estado totalitário” que grampeia telefones e prende e algema indiscriminadamente “pessoas de bem” sem que tenham sido julgadas e condenadas, tendo apoio constante do Partido da Imprensa Golpista – o PIG, em constantes factóides. Sobre isso, Idelber Avelar escreveu que este “é o único grampo da história da humanidade feito para que o grampeado fique bem na fita! Não é coisa de gênio?”.[7]



 


Estado Totalitário/Estado Policial?


 


 


Mas o que temos a aprender com categorias como Estado Totalitário e/ou Estado Policial na História, ambas com tanto apelo acadêmico ou de mídia?


 



O problema de análises centradas em torno do conceito de totalitarismo, categoria política transformada em período histórico, como aquelas defendidas por George Orwell ou Hannah Arendt,[8] mesmo que consigam fazer um bom relato sobre a violência político-policial praticada pelo Estado, o transformam num ente abstrato, detentor dos destinos do processo histórico, excluindo a luta de classes desse mesmo processo.



 


 


Visões teóricas ou políticas de que o Estado e a polícia tornam-se os sujeitos do processo histórico, faz com que desapareçam as possibilidades de compreender o Estado como instrumento da dominação de classe. Da mesma forma, a repressão não extingue a luta de classes, mas lhe dá outras dimensões, as quais são encobertas pelas teorias baseadas no conceito de totalitarismo. Mesmo que a reação dos trabalhadores, suas lideranças e seus movimentos sócio-políticos continuem passíveis de ser criminalizados ou enquadrados em situações como “caso de polícia” (exemplo clássico do Brasil da Primeira República, entre 1889 e 1930), as resistências de classes ou de grupos abrem variadas possibilidades de superações históricas do próprio “totalitarismo”. Nestas condições, em caso algum, o Estado tem “controle” absoluto sobre as mesmas. Não fosse isso, o “Estado Totalitário” da Alemanha pós-1933 teria, daí sim, durado mil anos como desejavam seus defensores.



 


 


Não seria preciso análise marxista para compreender os limites conceituais do “Estado Policial”. Pierangelo Schiera explica que no Estado moderno, diferentemente da hierarquia estática de uma ordem fechada do feudalismo, graças à ação do “príncipe” e de sua “polícia”, passou a se criar uma “estrutura aberta, inovadora, mecânica, propensamente igualitária (os súditos de um lado, o príncipe de outro), disposta desde cima”.[9]



 


 


Para o autor, na Prússia dos Hohenzollern essa noção passou a explicar a tautologia de uma expressão também usada pelos contemporâneos para designar “o sistema político a que a atividade da polícia dava forma (gute Ordnung und polizei)”. Nele, “polícia e ordem vêm a significar a mesma coisa, ou melhor, a constituir uma espécie de hendíadis, onde polícia é vista como meio de alcançar a ordem”. Isso, por sua vez, não é entendido como um “esquema pré-fixado e imóvel (como na tradição aristotélico-escolástica). É resultado constantemente mutável de certas interferências políticas”. O que leva a uma noção de um atributo implícito a essa “ordem de polícia” em que a “ordem deve ser ‘boa’, isto é, há de inspirar-se em critérios claros e essenciais que o príncipe tem por missão por em prática e nunca modificar”. Decorrente disso, a polícia passa a ser definida “como conjunto das instituições criadas pelo príncipe para a realização do bem-estar dos súditos”. Dessa forma, continua explicando Schiera, “o bem-estar e a ordem se apresentam, por isso, como fatores fundamentais tanto no plano da justificação ideológica, quanto no do funcionamento concreto, o da polícia, de que são, alternativamente, objeto e instrumento”. Ora, explica Schiera, foi contra esse estado de coisas, contra a noção de um “Estado policial” que a partir de Kant, o movimento e o pensamento liberal se contrapuseram, consolidando no século XIX a noção de “Estado de direito”.[10]



 


 


No Brasil da década de 1930, a discussão sobre Estado policial já estava presente. Em manifestação organizada por operários da Light, em homenagem a Getúlio Vargas e Lindolfo Collor, ocorrida em 24 de janeiro de 1931, centenas de trabalhadores, após desfile pela Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, se dirigiram ao Palácio do Catete. No trajeto, os estabelecimentos comerciais fechavam as portas. À frente deles, em um carro, foram Evaristo de Morais e Joaquim Pimenta, antigos defensores de uma legislação trabalhista para solucionar a “questão social”. Vargas esperava-os na sacada do palácio.


 


Dois operários discursaram, destacando a diferença no tratamento dos problemas sociais entre o governo iniciado recentemente e o anterior. Para eles, na administração passada, tais problemas eram considerados como meros casos policiais. Falaram que Vargas, em vez de trazer em sua túnica de soldado, perseguições e vinganças, criava o “paradoxo de uma ditadura liberalíssima”.


 


Da sacada do palácio, ao referir-se à “questão social”, o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Lindolfo Collor, argumentou que a revolução fora feita, antes de tudo “para garantir a liberdade do povo”. Pedia, então, ao operariado presente no Catete que observasse a diferença entre dois Estados: o Estado policial que via os fenômenos sociais pela ótica dos interesses econômicos dos patrões e pelas necessidades públicas da ordem material e o Estado que integrou as altas finalidades da assistência social, examinando os conflitos do trabalho através dos anseios de justiça e da necessidade de amparo das classes trabalhadoras. Este último era o Estado do governo de Getúlio Vargas.[11] Assim, para Collor e o governo pós-1930, a “questão social” deixava de ser “caso de polícia” para se tornar ‘caso de política”.


 



 


Porém, pouco tempo depois, em reunião no Ministério com o empresariado carioca, enquanto acontecia a greve dos operários da indústria de Adib Naber, Collor falou aos presentes que estranhava que os operários fizessem greve e depois apelassem a ele. Assim, utilizando uma linguagem policialesca, solicitava aos operários se manifestassem com clareza:


 


 


(…) Ou aceitam a ação do Ministério do Trabalho, que traz uma mentalidade nova, de cooperação… Ou se consideram dentro de uma questão de polícia, no sentido do antigo governo. Ou abandonam a mentalidade bolchevista e subversiva, ou se integram no corpo social a que pertencem. (…) as classes operárias estão sendo fomentadas por elementos subversivos – comunistas, para dizer a palavra perigosa – notei não há a menor dúvida. E muito menos do que esses elementos são agitadores internacionais, conhecidos e que apenas podem prejudicar a conquista dos direitos do operário, pelos quais sempre tive o maior desvelo.[12]


 



A ideia de Estado Policial em torno da chamada Era Vargas ganhou ressonância recente na historiografia brasileira. O conceito de Estado ou sociedade policial aparece com ênfase em Elizabeth Cancelli. A autora considera que “o Estado inaugurado pelos revolucionários de 30 via no poder da polícia um caráter administrativo para a sociedade enquanto um todo e um instrumento de poder pouco afável ao regime das limitações legais”.  A historiadora explica ainda que, após outubro de 1930, “a violência tornava-se necessária para a preservação do espírito da ordem, no interior da concepção de uma sociedade de fundamentos orgânicos que não prescindia da necessidade de tornar-se uma sociedade policial”.[13]


 



Segundo Cancelli, “a polícia, em grande parte responsável pelo controle exercido por um Estado cada vez mais cerceador da ação, do discurso e da política, (…) e exerceu variadas formas de vigilância social”. Assim, o “projeto político do Estado previu a existência de um aparato policial capaz de exercer o controle social, diciplinar o dia-a-dia dos trabalhadores e da sociedade como um todo e, ainda, negar a individualidade dos homens a partir do estabelecimento de parâmetros comuns de comportamento e sentimento”. Dessa forma, continua a autora, “o Estado criou pela primeira vez a prerrogativa dos policiais de matarem a pessoa jurídica de setores da população, através do exercício de direitos duais que conferiam à polícia a prerrogativa de se colocar acima das leis”.[14]


 



Pode até se impressionar com o argumento sobre uma aproximação com um tipo de sociedade policial na história, pois parte das evidências e dos argumentos levantados pela autora nos levam a ver que, a partir de Vargas, a repressão policial foi intensa e explícita. Qualquer pessoa era potencialmente suspeita, não havendo garantia absoluta de direitos individuais ou civis, sem proteção para as batidas policiais, as súbitas prisões ou o desaparecimento de qualquer pessoa.


 



No entanto, o “Estado policial” varguista, iniciado em 1930, ou em 1935-1937 como querem outros, não ultrapassou 1945. Primeiro, por que teve no lado oposto a resistência político-social; segundo, por que sua pretensa coesão e harmonia social não impediram a compreensão político-ideológica pelos setores dominados e outros segmentos sociais de seu caráter classista.


 


 



Noutro exemplo clássico de um “Estado policial”, no caso a Alemanha pós-1933, Roger Manvell considera que com a ascensão dos nazistas ao poder, criou-se um estado policial altamente organizado e implacável, onde, atrás do poderio aberto do exército alemão e da polícia civil, estavam forças menos evidentes e em grande parte “secretas”, como as forças das SS e os seus colegas da polícia política, a Gestapo, criada por decreto de Goering, em 26 de abril de 1933, e que tinha a função especial de manter a segurança política da Alemanha, utilizando todas as formas de intimidação, interrogatórios, torturas e outros tipos de violências.[15]


 


 



Para Jacques Delarue, o segundo pilar no regime nazista seria a Gestapo e não o exército, e um dia chegaria que ela se tornaria mesmo a base do sistema. Quando os militares perceberam isso, já era tarde e os rumos da Alemanha estavam decididos.[16]


 


 


Democracia inacabada e Gilmar Mendes


 


 


O que o discurso sobre “Estado Policial” e “Totalitarismo” de Gilmar Mendes esconde? Como todos aqueles que têm utilizado tais categorias conceituais, esconde a dominação política do Estado por uma classe (e seus compromissos com essa dominação), transformando o próprio Estado (mesmo o “Democrático de Direito”) em pretenso e universal agente da História, o qual visa o “bem comum”.


 



Não foi por nada que  o recém-criado movimento “Gilmar Dantas: saia às ruas”, que se manifestou em Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, em 6 de maio corrente, defendeu que “uma democracia viva é aquela com o povo nas ruas”. Por isso, o manifesto do movimento salientou, entre outras, a percepção popular “que a Justiça ainda trata pobres e ricos de maneira desigual”. Nela, “os privilégios de classe e o preconceito contra os movimentos sociais persistem na mais alta corte do Brasil”, criando o sentimento de traição “por quem deveria zelar – e não destruir – (por) nossa democracia: o Presidente do Supremo Tribunal Federal!”.
No atual processo de conscientização sobre o papel de Gilmar Mendes e seus apoiadores da mídia, como diz o Manifesto, “Ao libertar o banqueiro Daniel Dantas e criminalizar os movimentos populares, o Ministro Gilmar Mendes revela a mesma mentalidade autoritária contra a qual lutamos nos últimos 30 anos”, pois  “o Brasil já não admite a visão achatada da lei, aplicada acriticamente para oprimir os mais fracos (…)  já não atura palavras de ordem judiciais – como ‘estado de direito’, ‘devido processo legal’ ou ‘princípio da legalidade’ – apresentadas como se fossem mandamentos divinos para calar o povo”, pois  “não há espaço no Brasil para um Judiciário das elites, um Judiciário das desigualdades”.


 


 



Seria contra esta conscientização em torno do domínio das classes dominantes e a instrumentalização da justiça e das leis que Gilmar Mendes tem jogado a cortina de fumaça do “Estado Policial” para encobrir os compromissos de setores majoritários do Judiciário a serviço das elites, baseados no autoritarismo judicial mantido contra a sociedade brasileira, através de um Judiciário que ainda não completou sua transição para a democracia?


 


 



A reação popular diante do privilégio da lei para alguns, tomados por “pessoas de bem” por serem proprietários do Opportunity, da Daslu ou de grandes extensões de terra. Tratados como mais iguais que outros, por juristas complacentes com a manutenção da desigualdade, a revolta se expressa através do “Manifesto do Movimento Saia às Ruas”: “nas ruas e nos campos, nas capitais e no interior deste País, milhões de brasileiros escondem uma dor cortante dentro de si. Nossa dor é uma dor moral, que nos corrói a alma e nos aperta o coração. Sofremos por nossa democratização inacabada expressada no presidente do Supremo que, a pretexto de defender direitos individuais, criminaliza movimentos sociais e beneficia banqueiros poderosos”.[17] Mas para Gilmar Mendes e os que o apóiam isto PODE!!!!


 


 



E como sempre, totalitários e policialescos são os outros quando querem o fim dos privilégios,  quando querem um Estado efetivamente republicano que seja promotor da horizontalização dos direitos para que um dia este mesmo Estado seja historicamente desnecessário. Ah, mas para Gilmar Mendes e os que o apóiam isto NÃO PODE!!!!


 


Notas


 


[1] Gilmar Ferreira Mendes, 52, mato-grossense de Diamantino já passou por vários cargos importantes até galgar ao escalão máximo dos juristas (a presidência do STF). Durante e depois da Ditadura Civil-Militar, entre 1973 e 1990, estudou Direito (bacharelado, dois mestrados e um doutorado), no Brasil e na Alemanha e depois disso, tornou-se professor de Direito Constitucional da UnB. Nesse meio tempo, entre 1985 e 1988, atuou como procurador da República e foi assessor técnico do Ministério da Justiça na gestão de Nelson Jobim, entre 1995 e 1996. Antes de ocupar cargo estratégico no governo FHC, Mendes foi adjunto da Subsecretaria Geral da Presidência da República (1990-1991) e consultor-jurídico da Secretaria Geral da Presidência da República (1991-1992), quando defendia o ex-presidente Fernando Collor de Melo junto ao STF. Entre 1993 e 1994, foi assessor técnico na relatoria da revisão constitucional na Câmara dos Deputados. Depois de trabalhar com Jobim, continuou galgando degraus na era FHC, quando foi subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil (1996-2000). Até que, em 2000, foi convidado ao cargo de advogado-geral da União, onde permaneceu até o fim do segundo mandato de Fernando Henrique. Ver estas informações, e outras mais, escritas por Cristina Moreno de Castro, no artigo Um retrato de Gilmar Mendes. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/04/444648.shtml. Acesso em 24 mai. 2009.


 


 


[2] A Operação Navalha desarticulou organização que desviava recursos públicos federais na Bahia, em Goiás, no Mato Grosso, em Sergipe, em Pernambuco, no Piauí, no Maranhão, em São Paulo, em Alagoas e no Distrito Federal.  A Gautama foi acusada pela PF de desviar recursos dos Ministérios de Minas e Energia, da Integração Nacional, das Cidades e do Planejamento, bem como do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit), pagando propina e dando presentes para as autoridades envolvidas. Seu objetivo seria obter vantagem nas licitações para obras públicas. No grupo atuavam pessoas diretamente ligadas à construtora Gautama, contando com auxiliares e intermediários, responsáveis pelo pagamento das propinas, enquanto que  autoridades públicas tinham a função de remover obstáculos à atuação da organização.
[3] Coincidência ou não, em maio de 2007, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar para revogar a prisão preventiva do empresário Zuleido Veras, dono da construtora Gautama. A prisão preventiva de Veras foi decretada pela ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatora do inquérito contra os investigados na Operação Navalha, a qual manteve Zuleido preso porque ele ficou em silêncio durante o depoimento. Na ocasião, Mendes argumentou que não fazia sentido manter a prisão de Zuleido e de outros incriminados ''para a mera finalidade de obtenção de depoimento'', uma vez que o STJ tinha amplos poderes para convocá-los quando necessário.



[4] Mendes assumiu a Presidência do STF em 23 de abril de 2008.



[5] As declarações acima, dos procuradores da República  dos juízes federais da Terceira Região e da Associação de Delegados da Polícia Federal se encontram no artigo de Cristina Moreno de Castro já citado. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/04/444648.shtml. Acesso em 24 mai. 2009.



[6] Ver o artigo na íntegra no blog do saudoso Fausto Wolff. Disponível em http://www.olobo.net/index.php?pg=colunistas&id=978. Acesso em 25 mai. de 2009.



[7] Ver as declarações de Idelber Avelar no artigo “Veja: Gilmar Mendes e suas mentiras”. Disponível em http://www.idelberavelar.com/archives/2008/09/veja_gilmar_mendes_e_suas_mentiras.php. Acesso em 25 mai. de 2009.



[8] Ver ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; ORWELL, George. 1984. São Paulo: IBEP Nacional, 2003 e; ARENDT, Hannah. O Totalitarismo. In. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.



[9] As indicações abaixo estão ligeiramente modificadas em minha tese de doutorado O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937), defendida no IFCH-UNICAMP, em 2004. Ver páginas 22, 42-45, 141 e 175.



[10] Hendíadis é a expressão de um conceito por dois substantivos quando um só bastaria.  Ver essas passagens de autor, quando desenvolve o verbete “Estado de Polícia”. In. BOBBIO, Norberto, MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de política. 4 ed. Brasília: Ed. da UNB, 1992, vol. 1, p. 409-13.



[11] Ver a matéria “Realizou-se ontem, na capital da República, revestindo-se de grande imponência, a manifestação promovida pelos operários aos srs, Getúlio Vargas e Lindolfo Collor”. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 25 jan, 1931, p. 1.



[12] Edgard Carone cita a fala de Collor aos empresários a partir de matéria sobre o encontro extraída do Jornal do Comércio de 18/04/1931. Cf. apud A República Nova (1930-1937). 2 ed. São Paulo: Difel, 1976, p. 134.



[13] Cf. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília: Ed. da UNB, 1993, p. 23 e 25.



[14] Idem, p. 26 e 32.



[15] Ver MANVELL, Roger. SS e Gestapo: a caveira sinistra. História ilustrada da 2ª Guerra Mundial. Coleção Política em Ação n. 3. Rio de Janeiro: Renes, 1974, 6-11 e 24-37.



[16] Cf. DELARUE, Jacques. História da Gestapo. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, s/d., p. 55-75 e 156.



[17] Ver sobre o Manifesto na matéria “Saiba quem é o movimento 'Gilmar Dantas: Saia às ruas'”. Disponível em http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=55665. Acesso em 25 mai. 2009.

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