Historiografia Conservadora e a Práxis da Abertura dos Arquivos*

Entre muitos historiadores, desde o alemão Leopold Von Ranke, “a objetividade” e a “imparcialidade” na “narrativa” da História tem como um de seus paradigmas “mostrar a História tal como ela aconteceu”.

Ranke, lido e relido pela historiografia conservadora, desde o século XIX, apenas dizia que, na escolha do objeto, seria impossível abstrair-se de quaisquer julgamentos de valores, condicionamentos sociais, culturais, filosóficos ou políticos. Porém, depois de escolhida a temática de pesquisa, Ranke acreditava que o papel do historiador era resgatar “os fatos que realmente aconteceram”, não sendo um “juiz do passado”. Assim, escolhido o objeto, o historiador deveria buscar a “história em si”, objetiva, que se oferecia através de documentos puros, sob os quais não deveria ocorrer a reflexão teórica.

Esta aparente contradição (impossibilidade de fugir de julgamentos de valor na escolha dos objetos e na busca das fontes e a complementar isenção do historiador no tratamento dos mesmos) levou muitos historiadores contemporâneos a defender Ranke e seus seguidores como “metódicos”. Isto é, privilegia-se o método isento de investigação, livre das “nocivas” abstrações filosóficas ou teóricas.
Michael Löwy, em seu As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchausen, ao tratar da sociologia do conhecimento, fez uma interessante analogia entre os desejos dos pensadores positivistas em torno da neutralidade científica e uma das façanhas do Barão (também um Karl, mas Karl Friedrich Hieronymus von Münchausen, militar e junker alemão, cujos relatos de suas aventuras serviram de base para a célebre série As aventuras do Barão de Münchhausen, compiladas por Rudolph Erich Raspe, publicadas em Londres, em 1785). Conta-se que atolado em um pântano, prestes a ser tragado juntamente com o seu cavalo, teve a ideia salvadora de puxar a si mesmo pelos próprios cabelos, livrando-se do triste destino de morrer atolado.[1] A velha e insistente armadilha pantanosa da neutralidade, agora rebatizada de “maior isenção possível”, pois volta-se a argumentar, tal como Ranke, que a escolha do objeto passa pela subjetividade do pesquisador, na onda conservadora atual, especialmente na academia, tem atraído muitos historiadores.

Outro Karl, o Marx, nas Teses sobre Feuerbach, já disse em 1845: “a questão se saber se ao pensamento humano pertence à verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”. Ou seja, como complementa Marx, é na práxis que se comprova a verdade (a realidade, o poder, o caráter terreno do pensamento), pois “a disputa sobre realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica” (grifos de Marx).[2]
Então, aqui não se trata da negação da louvável busca das fontes primárias, que também faz justiça aos historiadores dignos deste nome. A questão é o questionamento de suas fontes, sua origem e o alargamento de que vão além do escrito, sempre produzidas por uma historicidade e por sujeitos históricos que nada tinham de neutros no processo em que estavam inseridos.

Dito isto, é preciso chegar ao tema central. Por que, então, temos insistido para a abertura dos arquivos da Ditadura Brasileira pós-1964? Não se trata apenas de um direito que assiste aos historiadores, mas de todos aqueles que, desde as Comissões da Verdade, passando pelos familiares, até aos que querem saber da nossa História recente.

Isto, porém, ainda não é suficiente, a simples “abertura dos arquivos”, pois não podemos ter a ilusão de que APENAS ali pode ser encontrada a verdade. Em pesquisa no início dos anos 2000, nos fundos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, no Arquivo Filinto Müller, não encontrei documentos de sua ligação orgânica com a Gestapo, quando sabemos de sua articulação para a repressão com a polícia política alemã e outras, com o fim de treinamento e vigilância conjunta dos seus agentes, no Brasil na década de 1930.[3] Outras fontes são necessárias para desvendar aquela relação, como os próprios documentos dos arquivos da polícia política brasileira, encontradas no Fundo Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), somente abertos ao público no recente 1993. Daí se comprova as maiores vítimas da ação terrorista do Estado Brasileiro, entre eles, os comunistas e a esquerda em geral. É nos arquivos do APERJ, por exemplo, através da notação 1545, do Fundo Polícias Políticas, que sabemos parte da vida de Oscar Niemeyer, entre tantas questões, quando já era um arquiteto de renome mundial, foi perseguido por fascistas que exigiam sua demissão diante dos projetos que desenvolvia, tudo por ser comunista, já no Brasil “democrático” da década de 1950, tanto no Segundo Governo de Getúlio Vargas, seja no Governo Juscelino Kubistchek.[4]

Nas pesquisas no Arquivo Filinto Müller, porém, mesmo “limpo” em relação a ao comprometimento com a repressão mundial, salta aos olhos a origem do fundo documental. Sabemos que este arquivo foi adquirido junto às suas duas filhas, em 1981, mas grande parte da documentação NUNCA DEVERIA TER SAÍDO DOS DOMÍNIOS DO ESTADO BRASILEIRO, pois são, EM SUA MAIORIA, documentos de origem pública, desde 1931, quando foi secretário do Interventor Federal, em São Paulo, até julho de 1942, término da sua função como Chefe de Polícia do Distrito Federal.[5] Assim, tristemente, levaram 50 anos para virem a “público”, quando, na verdade, já eram públicos.
Mais recentemente, um dos documentos históricos brasileiros mais procurados da época da Ditadura, a informação de que o ex-deputado Rubens Paiva passara pelas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, conforme disseram seus familiares nos últimos 40 anos, estava sob POSSE PRIVADA, nas mãos de um ex-agente da repressão, o coronel da reserva do Exército, Júlio Miguel Molinas Dias. Tristemente, se chegou a esta verdade apenas depois do coronel ter sido assassinado, em um crime ainda misterioso, em primeiro de novembro passado, quando chegava a sua casa, na capital gaúcha, no bairro Chácara das Pedras. Pois, este coronel, dirigia o DOI-Codi durante o emblemático atentado terrorista que envolveu militares no Caso Riocentro [6], em 1981. Ali, como demonstra o documento chamado de Ordem de Missão nº 115, fala-se da equipe composta por Ribeiro e Jorge, agentes do DOI-Codi, os quais estavam designados para a “Operação Centro”, às 21 de 30 de abril de 1981. Para fazer a "cobertura do evento", a partir das 21h. A documentação aberta neste ano, também apresenta outro documento sob o domínio do coronel Molinas Dias que registra em formulário com timbre confidencial a placa do Puma OT-0297 e narra "um acidente com explosivo com uma vítima. Deu nome quente do Dr. MARCOS – codinome do capitão Wilson Luiz Machado Chaves Machado, ferido na explosão dentro do carro". [7] Ou seja, tanto no Caso Rubens Paiva, como no Caso Riocentro, a comprovação da ação criminosa do Estado brasileiro, foi possível com documentação pública sob domínio privado, quando, há muito, deveriam estar à disposição dos familiares de desaparecidos e de todos aqueles que querem a Verdade sobre a Ditadura em nosso País.

Assim, aqueles que tanto têm resistido à abertura dos arquivos (públicos ou privados), aqueles que não querem a Verdade e que temem a responsabilização individual ou do Estado nos crimes imprescritíveis (tortura, assassinatos, desaparecimentos, etc.), aqueles que temem a revisão da Lei de Anistia de 1979, devem ter cada vez mais suas posições sendo colocadas em xeque pela maioria dos brasileiros, pois não se admite mais que o terrorismo de Estado faça tantas vítimas, no passado e no presente, seja em defesa de “sigilos eternos”, seja em defesa do sórdido argumento do “revanchismo”.

O caso do Coronel Júlio Miguel Molinas Dias, assim como o de Filinto Müller e de outros agentes da repressão do Estado, é escandaloso, repetindo práticas tão próprias das classes dominantes ao longo da nossa História. Também é uma resposta da vida aos historiadores comprometidos com o pensamento reacionário, que defendem o passar de 30 ou 50 anos para a pesquisa nas fontes e o recorte histórico, e que se neutralizam enquanto sujeitos. Mais. É uma resposta ao continuado atoleiro em que estão metidos os paradigmas da pretensa historiografia neutra, passividade metodológica que, na maioria das vezes, tem servido para manter velhos e novos comprometimentos com as instâncias de poder. Porém, ainda, puxar-se pelos próprios cabelos, parecer ter sido o caminho mais fácil dessa historiografia conservadora e escolástica.

Que velhos e novos arquivos desaparecidos sejam abertos, documentais e orais, públicos e privados (bem como aqueles que sempre deveriam ser públicos) para que, finalmente, esta tortura tenha fim!!!!! Que os lutadores pela democracia e os familiares dos desaparecidos e mortos, os que realizam “escrachos” e os que não fecharam a História do Brasil pós-1964 somente para alguns, através da sua práxis, comprovem cada vez mais a verdade e a memória que resiste em ficar escondida nos arquivos e porões do Brasil!!!!!

* Este artigo retoma algumas ideias do autor, apresentadas em “Neutralidade e historiografia”. In: Zero Hora, Caderno Cultura, Porto Alegre, 8 nov. de 2003, p. 2.

Notas

[1] LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 2 ed. São Paulo: Busca Vida, 1987.
[2] MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Vol. I. Moscou: Progresso, 1982.
[3] CANCELLI, Elizabeth. Ação e repressão policial num circuito integrado internacionalmente. In. PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1999.
[4] Cf. Notação 1546 – Oscar Niemeyer. Fundo DPS, APERJ, Rio de Janeiro – RJ. É interessante saber que, neste prontuário, estão anexadas matérias da Imprensa Popular e da Voz Operária, alguns dos jornais do Partido Comunista do Brasil, com matérias sobre Niemeyer, uma rica fonte de pesquisa.
[5] Ver: HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o Caso Filinto Müller. In. Estudos Históricos, n. 19, CPOC/FGV, 1997, p. 53. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/…/1180. Acesso em 16 dez. 2012.
[6] Foi um frustrado ataque a bomba que seria perpetrado em um dos pavilhões do Riocentro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981, cerca de 21 horas, dia em que se realizava um show comemorativo ao Primeiro de Maio e ao Dia do Trabalhador. As bombas seriam colocadas pelo sargento Guilherme Pereira do Rosário (morto no episódio, quando o artefato explodiu em seu colo) e pelo capitão Wilson Dias Machado, hoje coronel e ferido gravemente no episódio. O Governo de João Figueiredo, inicialmente, tentou culpar a esquerda pelo atentado, mas, logo, a farsa, dirigida pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e pelo Centro de Informações do Exército, com o objetivo de travar a abertura política, começou a ser desmontada.
[7] Cf. Baú do coronel: revelados os documentos dos casos Rubens Paiva e Riocentro. In. Zero Hora, Porto Alegre, 27 nov. 2012. Disponível em:http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2012/11/bau-do-coronel-revelados-os-documentos-dos-casos-rubens-paiva-e-riocentro-3964865.html. Acesso em16 dez. 2012

(título original "Historiografia Conservadora e a Práxis da Abertura dos Arquivos da Ditadura" alterado por redação Vermelho)

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