João Amazonas e o debate do 5º Congresso do PCB
Quando lembramos de João Amazonas, em geral, o vemos apenas como dirigente político-partidário e logo nos vem a imagem de construtor e grande estrategista do PCdoB. Nesta operação outra dimensão tende a ficar nas sombras. Refir
Publicado 31/05/2006 18:57
Amazonas foi, na minha opinião, um importante teórico leninista.
Existe uma forte tendência dentro da academia – e em alguns círculos intelectuais – em menosprezar as contribuições teóricas dadas por dirigentes comunistas como Amazonas e Prestes. Creio ser esta uma visão elitista e preconceituosa do que seja teoria e intelectual. Antônio Gramsci, na década de 1920 e 1930, já havia feito uma severa crítica a tais concepções.
O professor João Quartim de Moraes – que não carrega este tipo de preconceito – foi o primeiro intelectual a alertar sobre uma importante contribuição teórica dada por João Amazonas durante os debates preparatórios do 5º Congresso do PCB, ocorrido em 1960. Segundo ele, coube a Amazonas o mérito de introduzir no país a tese sobre a via prussiana de desenvolvimento capitalista. Um acontecimento praticamente esquecido quando se conta a história da evolução das idéias marxistas no Brasil. Neste artigo tratarei apenas desta pequena – e grande – contribuição dada por Amazonas.
As duas tendências opostas que se formavam no interior do Partido a partir dos debates que se seguiram ao 20º Congresso do PCUS, ocorrido em 1956, iriam se enfrentar nos debates preparatórios do 5º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCB). Naquele conclave histórico travou-se uma acirrada polêmica em torno do projeto de resolução política apresentada pela direção partidária. A primeira reação crítica ao documento foi a de Maurício Grabóis, que escreveu o artigo Duas concepções, duas orientações políticas. Este seria o divisor de água na história do comunismo brasileiro.
No início de junho João Amazonas entrou no debate e publicou o artigo Uma linha confusa e de direita. Nele afirmava que a nova linha política iniciada em 1958 só poderia “conduzir o proletariado e as massas trabalhadoras a um beco sem saída: ao depositar suas esperanças no desenvolvimento do capitalismo e da burguesia; ao acreditar na possibilidade de reformas profundas e conseqüentes dentro do regime atual; ao descrer na necessidade da revolução”. Esta seria “uma linha de apologia do capitalismo, de ilusão na burguesia e de subordinação do proletariado aos seus interesses”.
A grande contribuição teórica e política oferecida por Amazonas se deram em torno de duas teses hegemônicas entre os comunistas brasileiros. A primeira seria que o desenvolvimento do capitalismo, por si só, traria solução para todos os males do país; 2ª que sem uma reforma agrária radical e o rompimento com o imperialismo não haveria desenvolvimento econômico.
Contrapondo-se as posições oficiais da direção do PCB, Amazonas escreveu: “É um equívoco pensar que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra sejam antagônicas (…) O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, subsistindo a dependência do país ao imperialismo (…) Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas (…) Isso seria cair na denominada teoria das ‘forças produtivas’”.
Amazonas nesse parágrafo introduz, entre os comunistas brasileiros, duas teses revolucionárias: 1ª) o país estaria realizando seu desenvolvimento pela chamada “via prussiana” e, consequentemente, 2ª) o latifúndio e o imperialismo não eram disfuncionais a implantação e desenvolvimento capitalista em nosso país. No final da década de 1950 estas idéias eram pouco ortodoxas.
Amazonas tendo que dar respostas aos fenômenos que estavam ocorrendo na economia e na sociedade brasileira, recorreu a elaborações de Lênin que, praticamente, haviam sido esquecidas. Para Lênin a revolução burguesa, em seu desenvolvimento histórico concreto, conheceu dois modelos distintos. O primeiro foi o das revoluções denominadas clássicas – como a Revolução Francesa, quando a burguesia dirigiu a luta do conjunto do povo (a pequena-burguesia urbana, o proletariado, os camponeses e a pequena nobreza) contra a aristocracia feudal. A sua ação política foi o estopim para a eclosão de uma revolução camponesa que pôs fim aos privilégios feudais e ao latifúndio. O segundo modelo de revolução burguesa, que Lênin chamou de “Via Prussiana”, engendrou um outro padrão de aliança de classes.
Escreveu Lênin: “O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes propriedades dos latifúndios, que paulatinamente se tornarão cada vez mais burguesas, que paulatinamente substituirão os métodos feudais de exploração pelos métodos burgueses; e pode verificar-se também, tendo à frente as pequenas explorações camponesas, que, por via revolucionária, extirparão do organismo social a ‘excrescência’ dos latifúndios feudais e, sem eles, desenvolver-se-ão livremente pelo caminho da agricultura capitalista dos granjeiros (…) A estes dois caminhos do desenvolvimento burguês, objetivamente possíveis, chamaríamos de caminho do tipo prussiano e caminho de tipo norte-americano”.
O intelectual comunista húngaro Georg Luckás incorporou o conceito e o ampliou para além da resolução das tarefas da revolução burguesa no campo. Referindo-se a “via prussiana” escreveu no seu O Assalto à razão: “para certos setores decisivos da burguesia alemã, especialmente para a Prússia, oferecia-se o caminho mais cômodo do compromisso de classes, que permitia subtrair-se às conseqüências plebéias extremas da revolução democrático-burguesa e lhe brindava, portanto, com a possibilidade de alcançar seus objetivos econômicos sem a necessidade da revolução, ainda que fosse a custas de renunciar a hegemonia política no novo Estado (…) o pronunciamento de Lênin não deve ser entendido relacionado somente a questão agrária no sentido estrito, e sim estendido à todo o desenvolvimento do capitalismo e à superestrutura política que apresenta a moderna sociedade burguesa na Alemanha.”
Amazonas sabia muito bem que a chamada “tese das forças produtivas” havia sido a principal base teórico-ideológica do reformismo da social-democracia européia. Tratava-se, evidentemente, de um desvio economicista que apregoava que o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, por si, conduziria a humanidade ao socialismo. O socialismo nasceria, assim, espontaneamente das entranhas do próprio capitalismo. Cabia às forças socialistas não atrapalhar esse processo natural. Por este motivo condenaram tão vivamente a revolução socialista na Rússia em outubro de 1917. Ela violava as “leis naturais” da sociedade.
Para Amazonas a realização das “transformações radicais” que o Brasil necessitava não dependia, simplesmente, do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Ela dependeria, fundamentalmente, “de fatores subjetivos, da criação da força social capaz de vencer a resistência dos reacionários, o que tem sido difícil de conseguir devido, entre outros fatores, à falta de uma justa orientação política do partido e sua insuficiente ligação com as massas”. A tese apresentada pela direção do PCB havia esquecido “quase inteiramente o papel das lutas do proletariado e do povo como o fator fundamental de certas conquistas obtidas”. Não havia naquele documento “nenhuma apreciação dessas lutas que eram, no fim das contas, elementos importantíssimos para uma justa compreensão dos fenômenos políticos e mesmo econômicos em desenvolvimento”.
Na formulação de Amazonas, a luta de classes assumiria o lugar central. Seria a sua dinâmica que nos possibilitaria entender as particularidades do desenvolvimento capitalista no Brasil e, também, construir um novo projeto transformador assentado nas forças democráticas e populares. Ele resgatava, assim, um elemento essencial do pensamento de Marx e Engels: a história da sociedade humana tem sido até hoje a história da luta de classes.
Amazonas não se furtou da tarefa de fazer um balanço auto-crítico da atuação do PC do Brasil entre os anos 1947 e 1956 – período que ele foi um dos seus principais dirigentes. No artigo Aspectos inseparáveis da luta revolucionária, escreveu. “Um dos erros cometidos na época do Manifesto de Agosto foi exatamente o de destacar o objetivo e menosprezar a política em curso no país. Tudo era realizado em função da derrubada imediata do poder das classes dominantes, à margem da situação concreta então existente. Esta posição levou-nos à abstenção injustificada no pleito eleitoral de 1950. Com o Programa de 1954, embora este representasse um enorme avanço na orientação do Partido, insistíamos ainda demasiado no objetivo, não apresentando indicações precisas para fazer frente à situação política. Confundíamos, nele, a estratégia com a tática e, por isso, pregávamos a derrubada imediata do governo e sua substituição pelo governo democrático de libertação nacional. (…) Ao adotar uma nova orientação, em março de 1958, caímos no extremo oposto. Abandonamos o objetivo (…) e ficamos na política do dia-a-dia, na luta pelas reformas”. Para Amazonas as duas posições são unilaterais e oportunistas – uma oportunista de esquerda e outra oportunista de direita. Por isto elas seriam obstáculos para o avanço da luta dos trabalhadores e para a construção da revolução democrática e popular no Brasil.
Amazonas defendeu a participação ativa nas eleições, pois os comunistas “não eram indiferentes à escolha e à composição dos governos das classes dominantes, pois tinham em conta que estes poderiam apresentar aspectos diferentes, favoráveis ou não, à luta que travavam as correntes progressistas”. Os comunistas deveriam apoiar, “em certas circunstâncias”, políticos e partidos das classes dominantes. Concluiu ele: “Os acordos e compromissos são inevitáveis na luta revolucionária. Mas isto não pode ser feito de modo a comprometer a independência do Partido ou a confundir sua posição com as dos que recebem esse apoio, o que, aliás, tem acontecido muitas vezes”.
Portanto, as posições de Amazonas – e de seus camaradas que reorganizariam o PC do Brasil em 1962 – nada tinham de sectárias ou esquerdistas como tentaram nos fazer crer os defensores da linha que prevaleceu no interior do Partido e que o levou este a se transformar em Partido Comunista Brasileiro.
Parte significativa dos artigos publicados na Tribuna de Debates do 5º Congresso era, de uma maneira ou de outra, crítica às opiniões políticas expostas nas teses preparatórias. Mas, isto não se traduziu no número de delegados presentes no conclave de 1960.
Graças ao domínio que tinha sobre a máquina partidária, a influência de Prestes, e o apoio recebido do PCUS, a corrente reformista ganhou o Congresso e conseguiu aprovar as suas teses. O Congresso também decidiu pelo afastamento de 12 dos 25 membros efetivos do Comitê Central. Entre os excluídos estavam três dos mais importantes dirigentes comunistas brasileiros João Amazonas, Diógenes Arruda e Maurício Grabois. Outros excluídos foram Carlos Danielli e Orlando Piotto. Ângelo Arroio e Carlos Danielli foram rebaixados à condição de suplentes. Do grupo que reorganizaria o PCdoB em 1962 somente Sérgio Holmos e Pedro Pomar permaneceriam no pleno do Comitê Central.
No final da década de 1970, Prestes faria uma autocrítica sobre as decisões aprovadas naqueles anos. Sobre a Declaração de Março de 1958 afirmou ele: “É o documento que a crítica das posições esquerdistas anteriores e toma uma posição que acho bastante direitista (…) O documento foi criticado e melhorado no 5º congresso, mas continuou marcado por muitas ilusões sobre o capitalismo, refletindo nossa incompreensão total da realidade brasileira. Na ânsia de criticar os erros de esquerda, acabamos caindo, entre 56 e 60, em posições liberais e direitistas”.
Continuou Prestes: “o 5º Congresso, realizado em setembro de 1960, viveu realmente a euforia do liberalismo vigente na época. Era um dos primeiros indícios desses novos tempos, era a luta pela legalização do partido. Para tentar o registro eleitoral, o 5º Congresso aprovou a mudança do nome do partido, passando de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro” (1). Assim, o principal dirigente comunista quando da realização daquele congresso reconhecia que a mudança de nome e da linha política do Partido Comunista estava ligada a “euforia do liberalismo” predominante naquela época. As opiniões de Prestes eram quase as mesmas que Amazonas expressou durante os debates do 5º Congresso do PCB.
Outro importante dirigente comunista, Apolônio de Carvalho, posteriormente, descreveu o seu sentimento diante daquele acirrado debate: "muitos de nós ficamos numa situação de dúvida, sem alternativa, situação muito penosa, porque imobilista. Nesse momento eu escrevi artigos para Novos Rumos, mas não contestei de maneira violenta, nem deixei de ter o mesmo caminho anterior. Mas pelo João Amazonas, Pedro Pomar, Arroio, eu tinha imenso respeito. Na verdade, eu vacilei. Esses companheiros não negaram o marxismo e o partido de maneira nenhuma. Fizeram uma luta interna limpíssima, aberta, corajosa, decidida, muito positiva (…) Os companheiros fizeram a contestação, foram extremamente corajosos e lúcidos como militantes na defesa de seus direitos de pensar e criticar".
Nota
(1) Na verdade a mudança de nome do Partido foi decidida pelo Comitê Central do PCB e não pelo plenário do 5º Congresso. Este apenas autorizou a direção a tomar as medidas necessárias visando a legalização o Partido.
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