Molière e o coronavírus

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Montagem com foto de Gabriela Bilo

Não se espantem do título. É que, primeiro, esta sexta-feira 15 de janeiro, marca o aniversário de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido pelo nome universal de Molière. Em segundo lugar, lembramos dele para seguir o conselho de Goethe, que assim falou em uma de suas iluminações:

“Todos os anos leio algumas peças de Molière, da mesma forma que costumo olhar de tempos a tempos gravuras de grandes mestres italianos. Nós, homens medíocres, não somos capazes de conservar no nosso íntimo a grandeza de tais coisas; temos por isso, de tempos a tempos, de voltar a elas para renovar em nós a impressão original”.

Se o imenso Goethe se incluía entre os medíocres, o que diremos nós, medíocres de fato e de obra? Então anoto de passagem isto: é curioso, é genial, que Molière ao escrever O Doente Imaginário, que se dirigia contra o charlatanismo de alguns médicos em 1673, alcance este Brasil de Bolsonaro. Se não, acompanhem por favor.

Já no começo de O Doente Imaginário, assim fala Argan, o doente:

— Mas veja, estamos passando por uma época de muitas doenças. E não quero pegar a tal da gripezinha, que só de falar me dá arrepios.

Como assim, que lance mágico e profético é este? Pouco depois, responde Antonieta, a criada:

— Bem se divertem às suas costas Fleurant, o farmacêutico, e Purgan, o doutor! No senhor, eles acharam uma vaca e a ordenham com muito gosto. Quisera eu saber qual a sua doença, que precisa de tantos remédios.

Ao que lhe responde o patrão, doente imaginário:

— Cala-te, ignorante! Quem és tu para criticar as prescrições da medicina?

Então surge uma outra antevisão na peça teatral. Lembram-se de que, para tratar o coronavírus, em 2020, o prefeito bolsonarista Volnei Morastoni recomendou injeção de ozônio no ânus? Apesar de criticado por entidades médicas, os defensores do ozônio no centro foram recebidos pelo ministro da Saúde Pazuello, lembram? Pois bem, na peça de Molière o farmacêutico e o médico receitam para o doente um tratamento de clister. Ou seja, uma injeção de medicamento líquido diretamente no reto.

A uma possível relutância do paciente, assim fala o farmacêutico Fleurant:

— Que sois vós para ser contra um remédio no ânus? Quanto atrevimento!

Ao que acrescenta o ilustre Dr. Purgan:

— Este é um lavatório preparado com todas as artes de enfiar remédio no ânus!

Então o paciente Argan admite forçado a cura pelo reto:

— Sim!

Ao que volta o Dr. de tempos bolsonaristas antes do tempo:

— Este é o remédio que deve produzir um efeito maravilhoso no intestino do paciente.

E finalmente, lembram-se do desprezo com que o presidente por enquanto tratou o coronavírus? “E daí?” Morram que é natural. De tantas mortes vão adquirir imunidade de rebanho. Pois a vestir em séculos proféticos a pele de Bolsonaro, eis o que fala o Dr. Purgan:

— Declaro que abandono os corpos à intemperança dos seus intestinos, que vão defecar como o diabo, entregues às doenças do seu sangue.

Assim vai Molière, até o clímax da frase final, que adapto a este Brasil:

— Com faixa presidencial e terno, todo charlatão vira sábio e comete as maiores loucuras.

Mas antes de terminar a profecia de Molière para os brasileiros, não devo esquecer o monumento à hipocrisia no Tartufo. Ali vemos uma frase digna do vice-presidente Mourão:

— Que obsessão os senhores têm com o presidente!

E do Tartufo vem ainda esta fala de Orgón, no papel de Rodrigo Maia diante do impeachment do presidente:

— Como se atrevem a manchar a pureza da conduta desse homem? Como podem ofender desse modo a uma pessoa tão santa!

Mas o Brasil vai mal, com febre, dor de cabeça, sem oxigênio, sem leitos, mortes aos milhares e crimes contra a pessoa cometidos todos os dias pelo presidente por enquanto. E Tartufo? — Rodrigo Maia se encontra às mil maravilhas, gordo, saudável, curado e de boca fresca.

Pois assim foi, assim tem sido o gênio de Molière. Profeta de muitos males, do corpo à hipocrisia, até hoje.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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