Nosso amor invisível

São Luís, 3 de dezembro de 2019

Querida vó,

Venho te contar de Eurídice e Ana Gusmão. Duas irmãs separadas pela crueldade dos homens, mas unidas pelo amor que nutrem uma pela outra. Essa história é um filme que eu vi domingo, mas podia ser real. Lembrei de nós, das mulheres da nossa família.

Eurídice e Ana são filhas de um casal de imigrantes portugueses, moram no calor abafado e úmido do Rio de Janeiro. Aqui na Ilha também é abafado, úmido e quente. A gente também olha pro mar quando se sente perdido. A gente também fala alto, ri alto, passa perrengue.

Tudo acontece nos anos 1940, talvez por isso me lembra você. Nessa época você teria 20 poucos anos, como Ana e Eurídice. As coisas que elas vivem parecem suas memórias, também.

Lembro de você falar que já estava meio velha pra casar, incomodava a família, então o casamento era um jeito de ter o próprio canto. Lembro de você falar das brigas com vovô para respeitar a tabelinha e não ficar cheia de filhos.

Lembro, também, que nunca perguntei se você teve prazer na sua vida sexual. Não porque nos falte cumplicidade, mas porque temo a resposta. Bote décadas de emancipação feminina entre nós, mas bem sei como ainda pode ser difícil convencer um homem a amar como se deve.

A verdade, vó, é que quando olho pra você, pra Ana e Eurídice, vejo o quanto partilhamos dores semelhantes. Não só porque menstruar é igual, transar mesma coisa, engravidar idêntico, mas porque, apesar de tanta mudança, a vida, às vezes, ainda parece parada no tempo.

No filme do Karim Aïnouz, Ana é expulsa de casa grávida do homem que prometia ser um grande amor. Lembro que seu pai te disse “filha minha não separa do marido”, o que te fez pensar duas vezes. Uma irmã sua foi mais impetuosa, pagou o preço. Imagino como foi difícil.

Quem hoje olha pras bolsas embaixo dos olhos, pros cabelos brancos, pro corpo descansando a sesta, não imagina como foi. Eu posso apenas imaginar, por causa desse filme, adaptado de um livro, por causa das histórias que você mesma me contou, e porque sou uma mulher.

Como Eurídice, eu muitas vezes me refugiei no papel, desenhando, escrevendo. Quando ela diz que toca piano pra se sentir invisível, eu entendo, dentro de mim. Também vejo em você e na mamãe a mesma coragem de Ana pra falar, pra brigar, pra desafiar as normas quando não tá legal.

Você lembra que encobria suas filhas nas escapadas pras festas, sem vovô saber? Igual Eurídice faz com Ana. Você também precisou trabalhar duro pra não faltar comida pros filhos, como Ana. Como Ana, mamãe também chegou em casa exausta de tanto trabalhar, muitas vezes.

Como Ana, eu também tento me divertir com os homens, que parecem meninos pedindo leite. Os homens ainda são ciumentos, inseguros, dependentes. Ainda são violentos no seu silêncio. Nos confundem para nos isolar, umas das outras.

Sabe, vó, na sessão desse filme que eu tô te contando, uma das atrizes, a Bárbara Santos, estava lá e disse umas coisas.

(A Bárbara interpreta a Filomena, que ajuda a Ana e outras mulheres da comunidade a criarem seus filhos, como você muitas vezes fez, e ainda faz. A casa dela, como a sua casa, é um útero, um enorme útero expandido pra fora do corpo, embora você seja tão pequena.)

A Bárbara, na ocasião, disse mais ou menos assim: que esse filme que eu tô te contando é sobre o patriarcado. Eu quis discordar, e continuo querendo. É porque, quando penso nessas mulheres, em você, em todas nós, só quero falar do nosso amor invisível.

A gente sabe do amor porque é nos amando que a gente sobrevive. A gente se ama há muito tempo dessa forma secreta, que é pra despistar. A gente se apoia, senão não dá. Como você ajudou uma mulher que apareceu como um filho do vovô na sua porta, certa vez.

Como você fala duro comigo às vezes, porque a dureza é um jeito de amar que você aprendeu com a vida. Como você também já perdeu uma das mamas, e com muita sabedoria me disse que, apesar da vaidade ferida, era melhor continuar viva. Como eu te amo, vovó.

Queria ter visto esse filme com você.

Feliz aniversário!

Da sua neta Carolina.

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