O amor de Maria que não pôde ser

… em lugar desse ideal nunca atingido em um só namorado, amante ou marido, Maria buscava um amor que, apesar de jamais admiti-lo em consciência, ela queria  um amor à semelhança do irmão gêmeo.

Diferente era o amor de que ela necessitava. Em vez de desejar astros do cinema, artistas do rádio, dos galãs à feição de Clark Gable,  Cauby Peixoto, como era comum nos desejos das mocinhas dos anos 1950, ou se apaixonar por homens ideais que misturassem, na tradução das mulheres do beco, altura, cabelos, porte e rosto do cinema ao mestiço do Brasil, ou seja, indivíduos fortes, de braços potentes, pele morena e olhos verdes, ou, quem sabe, até mesmo olhos escuros, castanhos, mas com uma conversa melosa de sentimentos amorosos – o que era o amor para as mulheres românticas de então exigiria um capítulo à parte para melhor corporificação -, em lugar desse ideal nunca atingido em um só namorado, amante ou marido, Maria buscava um amor que, apesar de jamais admiti-lo em consciência, ela queria  um amor à semelhança do irmão gêmeo. Ao modo e aparência de Maciel, o gêmeo, homossexual sem alarde. E com isso, no seu ideal, também se cruzavam vários caminhos, ou, se quiserem, o seu ideal era um cristal de muitas faces. Numa delas, na mais evidente, o amor conforme Maciel era um homem que a respeitasse, à pessoa de Maria, pois que ela era uma pessoa acima de tudo. Em sua melhor imagem, antes de se apresentar como mulher, ela se queria uma pessoa. O que para um homem, nesse vê-la como uma pessoa, seria um contato assexuado, indigno de um macho, para Maria era um plano de mais conforto e ambição, ver-se no espelho como gente humana, antes do sexo. Ela possuía suas razões, além das mais dignas e gerais.

Com Maciel, com o irmão, com o seu gêmeo de alma, ela falava e se fazia ouvir, ela ouvia e se permitia ouvir. Ou seja, havia entre eles, macho e fêmea, uma igualdade de planos e terreno. Ela o queria porque a ele falava. Ele a queria porque a ela, sua igual, ele falava, se ouvia, se respeitava. Ao diabo que Maciel fosse baixinho, necessitado, pois a procurava por não ter onde comer, almoçar, num tempo em que a carga feroz contra homossexuais era mais perseguidora, dentro do inferno em que já estavam os homens pobres e pequenos, a esse pobre-diabo ela não via, porque punha no seu lugar um homem de ternura e bigodinho, de voz suave, que a ouvia e escutava. Que lhe importava se esse Maciel não seria nem era capaz de se levantar contra a selvageria do marido? Não havia problema, porque para isso ela própria tinha força e ânimo para responder. Mas ao não ver o pobre-diabo em Maciel não lhe ocorria propriamente uma cegueira, uma miopia mágica, de não ver nada do que todos viam. Ela não era cega nem louca. Apenas, apenas, àquelas características informadas por todos Maria punha sob outros valores. Ela respondia à infâmia de outros parentes contra o irmão:

– Ele é uma pessoa de coração, ele sente.

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“Ele me ama”, ela queria dizer. E o que mais desejava o seu peito que ser amada, ainda que num terreno íntimo, particular, privado, mesmo que fossem xifópagos separados? Que viessem os bárbaros, que viessem os tártaros, ela os atacaria por mais de um flanco. No entanto, é claro, numa outra face do prisma, que esse amor à semelhança do respeito fraterno era um amor de possibilidades. Ou, numa aproximação da face nua e limpa, era um amor vicário, que não se satisfazia no vicariato. E por isso pegava dele características que seriam uma graça dos céus, mas passava por elas e seguia mais longe. Pois além de uma pessoa, pessoa geral, Maria era uma pessoa específica, certa e determinada mulher. Ela queria ser desejada e tomada e vista e acariciada como Mulher. Sim, com maiúscula no calor do seu desejo e imaginação. E, coisa estranha, apesar de Maciel ser modelo para seu coração, ele não a poderia satisfazer por um duplo impedimento. No menor deles, que Maria na consciência se falava ser o maior, ele era o seu irmão. “Está doida? Coisa de doido. Nem pensar”. E aqui, mesmo que não possamos esperar dela atos e percepções além do seu tempo e cultura, a narração pode e deve falar de Maria o que a sua pessoa não via. Ou não queria ou não podia ver.

Em sonhos, há muito, ela estava com o marido à hora do almoço, e ele, o marido, de forma a mais carinhosa alisava-a com os pés sobre os pés dela, subia com eles até suas coxas, rodeava com o dedão o seu sexo, ao que ela respondia, em abandono, ao pezinho do seu marido:

– O que é isso? Os vizinhos podem ver.

A isso o seu marido, de pele escura, bem escura, sorria com um bigodinho que ela adorava, que a deixava sem forças para reagir com força, com raiva. Ah, que raiva ela se sentia possuída por não reagir contra aquela obscenidade! Mas como reagir àquele antimarido? Pois apesar de todos os traços exteriores, cor, cabelo, voz, olhos, apesar de toda anatomia do marido, aquele homem com quem ela almoçava era terno, delicado, atencioso, e até nos pés a ouvia como ela desejava. Havia ali, apesar de, sempre “apesar de”, apesar da presença física do marido, havia ali o marido em sua negação. E, dividida, Maria olhava aquela cena como se estivesse em um plano mais alto, a pairar sobre os dois na mesa, entre a “safadeza” de sua pessoa, pois não retirava brusca aquele dedão pecaminoso – sim, aquilo era um pecado -, e o desejo de afeto que o dedão continha. Era um pé ternura. Era um pé, que sendo sexo, pois era duro e tentava penetrá-la, era também um carinho, porque a rodeava, enredava, sim, a enredava de deixá-la em rede de pesca, e a enredava também porque lhe contava enredos, fuxicos, bisbilhotices, enquanto a alisava nos pelos íntimos, tão íntimos que existiam antes até  de serem pelos. Aquele marido, se o encarava bem, ou se a encarava, era másculo e feminino, macho e fêmea, marido e Maria. Então o sonho ia se desenvolver, e Maria não deixava, ela não o queria, pois sabia aonde o sonho a levava, levaria, o sonho ia tornar o pé em ponte de ligação, que encolhia, que se desenvolvia pelo desaparecimento, como, coisa estranha, como um crescimento que some, algo de mecânica impossível, a não ser que o pé crescesse por sumir dentro dela. E o desenvolvimento de tal absurdo era Maria abraçada ao marido, amalgamada e fundida nele como uma estátua de bronze em uma praça, enquanto o marido lhe sussurrava, “sabe, Maria?”, e tão confortável e conhecida há muito era a voz, que a Maria soava em conteúdo de “sabe, mana? sabe, maninha?”, um absurdo absoluto, pois ela acordava ao lado de um corpo estranho à sua intimidade.

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Então ela não poderia saber, ou – muro imperioso – ela não devia saber, era porta vedada a seu desejo: a pessoa de Maciel ser um irmão era o menor impedimento. O incesto era uma vedação de costumes, de cultura do tempo, uma vedação ao pensamento dos dias. Então lhe vinha um breve pigarro, como a engolir algo áspero. Porque o desejo, naquelas aprisionadas circunstâncias, era livre como projeto. De um ponto de vista anatômico, eram macho e fêmea, ou, engulho ou salvação maior, eram macho e fêmea nascidos de mesmos ventre e hora. Que mais intimidade, pecaminosa, bendito pecado, haveria? De um ponto de vista, digamos, funcional, todas as condições estavam dadas para o sucesso da vicária felicidade. Eles, ela e ele, em estatura e gênese se completavam. Vistos de um modo cru, os seus corpos eram harmônicos em acidental variedade da natureza. Maria e Maciel Deus os criou. Ali não havia um obstáculo, digamos, objetivo, se de um modo grosseiro nos expressamos. Escrevemos o adjetivo “grosseiro” porque os impedimentos na ideia, na formação de uma pessoa, também são um impedimento objetivo, mesmo que não se apresente como um muro de pedra. Mas se separamos, sempre com um método brutal, corpo e alma, matéria e espírito, o incesto não era o limite do proibido: “pecado, Maria, pecado, Maciel”. Mas com pecado, ainda que mortal, ainda que impulso animal sem freio, a penetração era possível. Poderia até ser penetrada pelo sonho, para melhor consumação da vitória sobre o impedimento.

*Do romance “O filho renegado de Deus”

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