O barbarismo da Guerra ao Terror na série Ponto de Virada: 11/9

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Do interior de um Afeganistão destruído por décadas de guerra, corrupção, pela fúria dos EUA e pelo fanatismo religioso, um soldado americano conseguiu, com dificuldade, ligar para a família. “Eu esperava ouvir que eles estavam com saudades”, disse, “mas eles disseram que estão bem e estão se divertindo. Ninguém perguntou se eu estou bem. Percebi que ninguém dá a mínima para o que eu estou fazendo. Ninguém mais fala do 11 de setembro, e eu sinto que estou aqui por causa daquele dia que”, lamenta o jovem.

Essa sensação de abandono é o espírito da Guerra ao Terror, como mostra a série documental Ponto de Virada: 11/9, que estreou na Netflix em setembro de 2021, quando os atentados completaram 20 anos.

A triste cena fecha o quarto e penúltimo episódio da série. Já era governo Obama quando o soldado solitário percebe a falta de sentido daquela guerra. Já se somavam longos anos de ataques, vingança e erros que custaram pesados investimentos, a estabilidade no Oriente Médio e a vida de milhares.

O momento em que os operadores do Voo American Airlines 11 percebem que o avião havia sido sequestrado inicia a série. É uma longa sequência que intercala vozes dos controladores de tráfego aéreo com depoimentos de sobreviventes do World Trade Center e do Pentágono naquela terça-feira fatídica. O apelo de cada história de vida bruscamente interrompida busca a empatia do espectador. Mas a série não segue na toada de vitimizar os americanos, culpando outros povos pelos seus traumas. Mesmo que falte alguma coisa aqui ou ali, é um documento honesto em sua proposta.

Ronald Reagan postergou o problema

Logo no primeiro episódio fica claro que os EUA investiram muito em grupos armados do Afeganistão entre 1979 e 1989 para afastar os comunistas do poder. Era Guerra Fria e qualquer propaganda de que o objetivo americano era salvar a cultura daquele povo não passava de um disfarce que escondia o interesse em derrotar a URSS. Assim, dispondo de modernos armamentos, os Estados Unidos fortaleceram um grupo de jovens estudantes fundamentalistas, o Talibã. E facilitou a formação de um braço ainda mais radical e violento, a Al-Qaeda. Claro que naquela época era pedir demais que Ronald Reagan, entusiasmado com o triunfo do liberalismo no fim da Guerra Fria, se importasse com o monstro que estava criando. Ele postergou o problema.

Problema que, para os americanos, começou em outubro de 1990, quando George H. W. Bush (o pai) enviou uma enorme quantidade de soldados para a Arábia Saudita sob pretexto de libertar o Kuwait, ocupado pelo Iraque de Saddam Hussein.  Naquele contexto, a Al-Qaeda de Osama Bin Laden passou a mirar os EUA, pregando entre o Talibã o perigo de ter a cultura e as riquezas naturais do Oriente Médio saqueadas. Na esteira das desconfianças e ressentimentos provocados pela Guerra do Golfo, membros da Al-Qaeda conseguiram driblar a vigilância e se estabelecer em solo americano para dali mesmo tramar o choque que destruiria a tranquilidade daquele país.

Cowboy fora da lei

Com um saldo de 2996 mortos nos atentados de 11 de setembro, o governo de George W Bush (o filho) sentiu que era o caso de endurecer as leis e os contra-ataques. A série mostra o que já sabemos, que ele fez muito mais do que isso. Com a população em pânico, Bush e sua equipe deitaram e rolaram no desrespeito às leis, à Constituição e aos princípios humanitários e democráticos que os americanos gostam de exaltar. Parafraseando Raul, o texano Bush foi um verdadeiro “cowboy fora da lei”. E não foi só ele.

Logo em 14 de setembro o Congresso dos Estados Unidos aprovou a chamada “Autorização para o Uso da Força Militar Contra os Terroristas” que dava plenos poderes para o presidente lutar contra terroristas e nações que os abrigavam. No mês seguinte (em 26/10) Bush assinou a USA Patriot Act, ou “Lei Patriótica”, que permitia ao governo interceptar ligações telefônicas e e-mails de organizações e pessoas que eles julgassem suspeitos dentro do próprio país. A Lei de Segurança Nacional (Homeland Security Act) foi promulgada neste contexto, com amplos poderes.

Externamente, em 7 de outubro forças americanas e britânicas iniciaram bombardeios aéreos no Afeganistão, além de invadirem o território também com tropas terrestres, derrubando o Talibã em uma megaoperação que veiculou por todo o globo.

Guantánamo

E é aqui que começamos a falar de um capítulo crucial da barbaridade que Bush filho batizou de Guerra ao Terror: a Prisão de Guantánamo.

A série não esconde a hipocrisia e o despreparo do governo ao tratar deste assunto. Primeiro afirma que os americanos não sabiam o que fazer com os “suspeitos” apreendidos, daí a ideia de construir uma prisão em uma base naval que Washington controla na ilha do Caribe. Depois afirma que os apreendidos não poderiam ser chamados de prisioneiros, pois isso livraria os Estados Unidos de cumprir os direitos previstos na Convenção de Genebra. São muitos os depoimentos críticos à Guantánamo na série.

Os primeiros vinte homens pegos no Afeganistão pelo Exército Americano e levados para Guantánamo foram apresentados à sociedade como “o pior do pior”. Quando o mundo viu aqueles homens acuados no cenário medieval montado pelo governo e pelo Exército, entretanto, eles pareciam pessoas, camponeses, alguns “peixes pequenos”, alguns que não tinham nada a ver com a história.

No alvorecer do século 21, a terra da liberdade cujos governantes sempre evocam em seus discursos os conceitos de democracia e direitos humanos, instituiu naquela ilha a barbárie à base do abuso de poder, da força e da extorsão de informações fabricadas.

A série afirma que foi em Guantánamo que o governo extraiu, através da tortura, informações que ligavam o presidente iraquiano Saddam Hussein à Al Qaeda e a um projeto de fabricação de armas de destruição em massa. Informações falsas que, entretanto, bastaram para dar início à ocupação do Iraque em 2003. Já naquela época se sabia que a Guerra do Iraque se baseou em uma mentira. E ela durou até 2011.

Obama e a ironia do Nobel da Paz

Barack Obama, que assumiu a presidência em 2009, voltou a centrar fogo no Afeganistão, obstinado pela ideia de matar Osama Bin Laden. Foi no governo do democrata, que ironicamente recebeu o Nobel da Paz logo na largada, que a matança de afegãos, ampliada pelo uso ostensivo de drones, se intensificou.

A morte de Bin Laden em 2011, quando os americanos invadem ilegalmente o espaço aéreo do Paquistão, é outro evento nebuloso que a série apresenta. Com o rosto desfigurado pelos tiros, o cadáver do suposto Bin Laden foi reconhecido pelas orelhas e a notícia de sua morte foi apressadamente entregue à sociedade americana como troféu na guerra contra o 11/9.

Daí em diante a grande dança dos erros tornou-se indisfarçável. De um lado, um governo afegão montado na corrupção parasitava os recursos que os EUA injetaram nas forças locais, do outro, a perplexidade de combatentes americanos com a falta estratégia, com o desconhecimento sobre a missão, com a solidão e com o abandono. A guerra se arrastava e pesava sobre os soldados a sensação de que “ninguém mais falava do 11 de setembro”.

Foi o pitoresco Donald Trump que firmou com o Talibã, em fevereiro de 2020, um acordo para a retirada das tropas americanas. A série chega em Joe Biden, mas por pouco perdeu a chance mostrar as impressionantes imagens da queda de Cabul e da tomada de poder pelo Talibã em 15 de agosto de 2021.

Com cinco episódios de uma hora cada, nem tudo virou spoiler neste artigo. E nem se trata disso. Não é para saber o final desta história que vale assistir Ponto de Virada: 11/9. A série nos convida a repensar o complexo encadeamento de eventos em torno dos sequestros dos voos 11, 175, 77 e 93, que resultaram nos atentados contra as torres gêmeas, em Nova Iorque, e o Pentágono, em Washington.

O dia 11 de setembro de 2001 inaugurou a geopolítica do novo século e colocou em xeque os mais altos valores que o governo americano usa para justificar seus atos: liberdade, democracia e direitos humanos. Valores que foram distorcidos na Guerra ao Terror, sintetizada por uma política baseada em perseguição, espionagem, tortura, bombardeios e matança desenfreada.

Em 21 de setembro de 2021 Joe Biden falou na Assembleia Geral da ONU que pela primeira vez em 20 anos os EUA não estão em guerra. Até quando?

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