O desenvolvimento de cada um é o desenvolvimento de todos

Ao contrário da tese convencional que supõe a devastadora concorrência entre os indivíduos, e que ameaça a vida social, a visão materialista dialética reconhece a unidade fundamental dos fenômenos fisiológicos e psicológicos. Não há pensamento humano sem cérebro, e não há cérebro humano sem pensamento.

A psicologia materialista dialética tem enorme importância na fundamentação da visão científica da história ao enfatizar a cooperação entre os homens e rejeitar a alegada competição instintiva e pulsional.

Cada pessoa só desenvolve seu potencial humano em contato e cooperação com os demais.

Desde criança, “através da constante mediação dos adultos,” diz Luria, “processos psicológicos instrumentais mais complexos começam a tomar forma. Inicialmente, esses processos só podem funcionar durante a interação das crianças com os adultos”. (in Vygotsky: 1988).

Como esclareceu Vygotsky, são processos interpsíquicos que ocorrem nesta fase do desenvolvimento e são partilhados entre as pessoas. Os adultos são os agentes que mediam o contato da criança com o mundo e as demais pessoas. Na medida em que as crianças crescem, interiorizam aqueles processos. “É através desta interiorização dos meios de operação das informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente organizados, que a natureza social das pessoas se tornou igual à sua natureza psicológica” (in Vygotsky: 1988).

Ao contrário da tese convencional que supõe a devastadora concorrência entre os indivíduos, e que ameaça a vida social, a visão materialista dialética reconhece a unidade fundamental dos fenômenos fisiológicos e psicológicos. Não há pensamento humano sem cérebro, e não há cérebro humano sem pensamento. A psicologia dialética parte da unidade entre os processos psíquicos e fisiológicos. Como ensinou Vygotsky, a psique não é algo que está além da natureza, ou fora dela. É parte da própria natureza, ligada diretamente às funções da matéria altamente organizada que é nosso cérebro, substrato do pensamento e da consciência, resultantes da ação prática do homem. Assim como o resto da natureza, a psique não foi criada, mas surgiu através do processo de desenvolvimento em que o trabalho e a intermediação com os demais tem papel decisivo (Vygotsky: 1930).

Vygotsky vê o ser humano como resultado de duas linhas evolutivas: a biológica e a cultural, que é histórico-social. Segundo ele “a luta pela sobrevivência e a seleção natural, as duas forças motrizes da evolução biológica no mundo animal, perdem a sua importância decisiva assim que passamos a considerar o desenvolvimento histórico do homem. As novas leis que regulam o curso da história humana e que regem o processo de desenvolvimento material e mental da sociedade humana, agora tomam os seus lugares” (Vygotsky: 1930).

E explica: cada indivíduo só pode existir como ser social sendo membro de um grupo social “em cujo contexto ele segue a estrada do desenvolvimento histórico”. Por isso “a composição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento reveste-se de um caráter dependente da evolução social cujos aspectos principais são determinados pelo grupo” (Vygotsky: 1930).

Os seres humanos, que se desenvolvem com a sociedade em que vivem, podem apresentar entre si diferenças que refletem as relações sociais e de trabalho onde estão inseridos.

A divisão da sociedade em classes antagônicas se manifesta neste particular, diz Vygotsky, que aponta o caráter de classe, a natureza de classe e distinções de classe que condicionam a formação dos tipos humanos (Vygotsky: 1930).

Neste aspecto ele se baseia amplamente nos escritos de Marx e Engels que enfatizam como o desenvolvimento psíquico dos seres humanos é condicionado pela sociedade, pelo processo de trabalho.

Partindo destas premissas, Vygotsky escreveu que “a tragédia interior do capitalismo” consiste no fato de que, nesse desenvolvimento, ele próprio cria as condições para surgir seu adversário, o trabalhador consciente e socialista. O estudo objetivo da psicologia, diz ele, revela como no homem, dotado de um “potencial infinito de domínio sobre a natureza e sobre o desenvolvimento de sua própria natureza”, cresce a passo acelerado em sua vida espiritual real. Mesmo a degradação e a passagem pelo que Engels descreveu tão vividamente como a mutilação do homem (Vygotsky: 1930), são etapas desse desenvolvimento histórico e social. Desenvolvimento que não se detém sob o capitalismo, e vai além dele. O enfrentamento das contradições existentes nesta forma de organizar o trabalho e a sociedade pode levar ao surgimento do homem socialista. “Esta contradição geral entre o desenvolvimento das forças de produção e a ordem social que corresponde a este nível de desenvolvimento das forças de produção, é resolvida pela revolução socialista e uma transição para uma nova ordem social e uma nova forma de organização das relações sociais” (Vygotsky: 1930).

Ele explica: “se as relações entre pessoas sofrem uma mudança, então junto com elas as ideias, padrões de comportamento, exigências e gostos também mudarão. Como verificado pela pesquisa psicológica, a personalidade humana é formada basicamente pela influência das relações sociais, isto é, o sistema do qual o indivíduo é apenas uma parte desde a infância mais tenra” (Vygotsky: 1930).

Uma mudança fundamental nas relações sociais em que o homem está inserido, diz Vygotsky, conduzirá inevitavelmente a uma mudança em sua consciência no sentido do coletivismo, da unificação do trabalho físico e intelectual, nas relações entre os sexos, abolição da separação entre desenvolvimento físico e intelectual – estes são os aspectos fundamentais daquela mudança. “E o resultado a ser alcançado, a glória e coroamento de todo esse processo de transformação da natureza humana, deveria ser o aparecimento da forma mais alta de liberdade humana – a sociedade socialista voltada para o atendimento e desenvolvimento das múltiplas potencialidades humanas (Vygotsky: 1930).

A concorrência entre os homens não é inata nem natural – ela só existe como reflexo da forma como se vive, como a vida é organizada nas sociedades divididas em classe, caráter acentuado sob o modo de produção capitalista. Contra esse modo de ver, Vygotsky chama a atenção para o fato de que nenhum ser humano pode se desenvolver – não aprenderia sequer a falar, ou a andar em pé – sem a convivência e a cooperação com os demais. Como Marx e Engels já haviam registrado no “Manifesto do Partido Comunista”, quase cem anos antes, em 1848, antevendo o socialismo: “Em lugar da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx: 1998).

Referências

Engels, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo, Boitempo, 2015

Engels, Friedrich. “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”. In Dialética da natureza. Lisboa, Presença, 1974.

Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Editora Cortez, 1998

Vyigotsky, L. S., Luria, A. R. e Leontiev, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Editora Ícone/Edusp, 1988.

Vygotsky, L. S. A formação social da mente. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1988.

Vygotsky, Lev. La psique, la conciencia; el inconsciente. In Obras Escogidas,  tomo I. Moscou, Varnitso, 1930.

Vygotsky, Lev. A Transformação Socialista do Homem. Moscou, Varnitso, 1930. In: https://www.marxists.org/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm – Visto em 22/01/2017

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